sábado, 13 de abril de 2013

É nosso, o Maraca? - Arnaldo Bloch


 O Globo - 13/04/2013

 

Ali era o centro do mundo. Será que voltará a ser? Ou será só um equipamento a mais a orbitar o estranho sol da Fifa e seus consórcios?

Na quinta-feira passada, dia de abertura dos envelopes para a concessão do novo Maracanã, o Escobar (Alex, apresentador do GloboEsporte), comentou, com sua careca e seu sorrisão, como todos estavam ansiosos para ver um grande jogo no estádio demolido e retrofitado (ou retrofifado, para os íntimos).
O programa exibia o quadro “O Maraca é nosso”, espécie de contagem regressiva com espírito otimista sobre o futuro do ex-maior do mundo, com um apelozinho patriótico que procura recuperar algo que um dia existiu, mas, hoje, soa como nova utopia.

Quem viu, viu, quem viveu, viveu: o nosso Maraca morreu. A vontade de ir ao Maraca, paradoxalmente, sobrevive e aumenta, reavivando memórias e criando estes sonhos ingênuos de redenção e amor renovado.
Mas o medo de entrar lá e ser assaltado por uma terrível e fatal saudade vai permancer até a hora de “adentrar” as arquibancadas e olhar o panorama da tarde azul.

Será que virá aquele susto de sempre? Aquela impressão de que, por mais nosso que fosse, o Maracanã era, a cada jogo, um acontecimento mítico, causador de um espanto estranho, metafísico.
Já dá para imaginar, daqui a uns meses, o pessoal, mais cedo, tomando cerveja em frente à mesma estátua do Bellini, só que cercada por equipamentos urbanos, shoppings, Mickeys e, talvez, um índio perdido nos entornos da Aldeia Maracanã, onde ficava o museu e que terá novo uso, ou abuso.
O torcedor vai ter ainda o privilégio de escalar as antigas rampas anguladas, que, felizmente, serão mantidas, não sei se em azul e branco ou com novos revestimentos.

As arquibancadas, lá adiante, surgirão como intrusas nascidas do vazio da demolição e estão a moldar novos ângulos e curvas, desconhecidos de quem durante décadas sentou no cimento e correu acima e abaixo pelos gigantes degraus livres de divisores, cadeiras, vidro.

Ali era o centro do mundo. Será que voltará a ser? Ou será só um equipamento a mais a orbitar o estranho sol da Fifa e seus consórcios?

Qual será o melhor envelope? A que estilo de exploração o Maraca será submetido? Com que preços o torcedor vai se confrontar? Há alguma rachadura incontornável no corpo reencarnado de Mário Filho?
Deve-se saudar quem houver decidido pela manutenção do nome que, junto com as rampas, e com os pedaços da antiga fachada que porventura se revelarem, formarão alguma massa de memória capaz de fazer o povo sentir-se, ao menos em parte, no “seu Maraca”.

Porque, lá dentro, é tudo novo, tudo, absolutamente tudo, um grande espetáculo de luz espera por todos, e todos esperam também que a nova cobertura fique mais bonita que a aparência de lona usada e suja que se tem visto nos jornais, nos sites e na TV. Coisa feia pra quem olhava o anel superior, majestoso, com suas janelas.

Faltará aquele gramado cujos vértices tocavam um piso circular que ficava ao centro do grande arco superior, e, lá no centro dos acontecimentos, o centro do gramado, e, acima do céu, o Rio, o Brasil, o Mundo, o Universo e o que mais houvesse a girar numa conjunção geocêntrica. Coisa de arrepiar os cabelos de Copérnico.

Todos estarão mais próximos do gramado, criando um intimismo que não existia no Maraca (a não ser no lindo caos da Geral), mas acabando com a monumentalidade que caracterizava o estádio e dava a ele um ar ancestral; que o fazia de todos e de ninguém, palco de guerras púnicas e batalhas romanas, Coliseu carioca e matéria de criação rodriguiana.

Naquele tempo o Maraca era nosso, apesar das incongruências da administração pública. Por mais caída que fosse, a voz de pato que saía dos alto-falantes dizendo “A Suderj informa” integrava um grande teatro formado por bandeirões, vibração no cimento, morteiros e massa humana de domingo, estática de rádio de pilha e assovios, batuques desencontrados esquentando o descompasso que precedia o jogo, como uma orquestra a afinar seus instrumentos.

O que virá no lugar dessa explosão dos sentidos? Terá restado, no espaço que o Maraca ocupa, algum ar essencial, uma energia de lenta dispersão, que, sorrateiramente, venha a reinstituir o diapasão da tribo que balançou-o por mais de meio século, evocando forças milenares, migratórias, brasileiras?

É possível que, num fenômeno, as novas estruturas sejam remodeladas, tendo como pivô o inconsciente da galera, de modo que da destruição nasça uma resultante cognitiva capaz de plugar corpo e alma na nuvem da memória: mesmo sem saber, estaremos, e nossos filhos, lá, suspensos, na onda do Maraca eterno.
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Depois de anos só trocando e-mails, tive a alegria de conhecer pessoalmente Aldir Blanc, no lançamento do bonito livro que o jornalista Luiz Fernando Vianna, o popular “Orelha”, escreveu sobre o poeta. Aldir apareceu-me como figura bíblica, mosaica, trágica e risonha. Abraçou-me com drama, chorou lamentos e celebrou a vida, como um deus.

E-mail: arnaldo@oglobo.com.br

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