sábado, 5 de abril de 2014

A Ucrânia e o czar da KGB - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA 05/04/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da
Academia de Letras da Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Estou em viagem que deverá ser demorada,
mas achei que devia deixar
estas notas sobre a crise que
envolveu a Ucrânia, por ter visitado aquele
país em 2011 e conhecer bastante a
Rússia. Durante a minha agradável permanência
em Kiev, a capital da Ucrânia,
e na histórica cidade de Odessa, jamais
imaginei que as relações entre os dois
países chegariam ao nível de desgaste
dos últimos meses, mas uma coisa ficou
muito clara para mim: os ucranianos detestam
a Rússia, sobretudo pelo traumático
legado do período stalinista. O mesmo
sentimento antirrusso domina hoje
os países bálticos: o comunismo soviético,
por onde passou, não deixou boas
lembranças.

Putin tem muitos admiradores na Rússia
porque, sob sua administração, o país
conseguiu superaras dificuldades econômicas
da décadade 90. Mas o resto do
mundo não se esquecede que o governante
desenvolveucarreira pregressa
no sinistro âmbitoda KGB, órgão repressor
de má fama,ligado à segurança
do estado soviético.Completam o quadro
a tradição autoritáriado czarismo e os
horrores políticos dostalinismo. As novas
lideranças ucranianas pugnavam por uma 
abertura para o Ocidente, contra a
tradição histórica do opressor garrote comunista.

Considerada um dos celeiros do mundo,
a Ucrânia sofreu na II GuerraMundial
a brutal agressão do hitlerismo durante
778 dias, como, em tempos bem mais
recuados, foi invadida por mongóis, poloneses,
lituanos, turcos e cossacos. O
neto de Gengis Khan destruiu a parte alta
da cidade, dividida, como Salvador, em
dois planos. A sobrevivência do país
diante de tantos infortúnios acentuou o
sólido nacionalismo do seu povo.

Um dos mais impressionantes monumentos
de Kiev é o museu ao ar livre da
II Guerra Mundial, repleto de murais e
esculturas, armas em geral do conflito,
além de uma imponente estátua simbolizando
a Mãe Rússia Vencedora, que
rivaliza com a maior, construída em Stalingrado,
de 85 metros de altura (o elevador
Lacerda tem 70 metros).

A Rússia começou em Kiev, antes que
Moscou se tornasse a capital do Império
Russo. A bela e agitada cidade, de largas
avenidas e elegantes bulevares, tem cerca
de 1.500 anos. Foi a capital dos rus, povo
eslavo oriental, nos séculos XIV e XV, bem
como área de influência do Império Bizantino,
que até hoje marca a vida da capital
com o rico legado da sua cultura,
patente na profusão dos esplêndidos mosaicos
das suas igrejas, notadamente na
catedral de Santa Sofia, obra-prima da igreja
ortodoxa. No centro da catedral esplende
uma impressionante imagem em mosaicos
da Virgem Maria, mais bela do que a
existente na Santa Sofia de Istambul. Relata
a lenda que o poder da sua beleza intimidou
os invasores mongóis, obrigados a
recuar diante do impacto causado pela imponência
da Virgem.

Outro monumento público grandioso
de Kiev é o Memorial Golodomor, construído
para registrar a miséria da Grande
Fome de 1932-1933, que matou mais de
quatro milhões de ucranianos pela política
de expropriações do stalinismo. Se
a reforma agrária se impunha na Rússia
pela brutal tradiçãoagrícola da escravidão
dos mujiques,foi entretanto executada
coma violênciaque caracterizava
as ações stalinistas,disseminando o terror
no celeiro ucranianoe na União Soviéticaem geral.

Visitei demoradamenteo extraordinário
parque Golodomor,sob uma emoção
que me levou às lágrimas.
Jamais poderãoser esquecidas a
exuberância da sua documentação e a comovente
profusão de monumentos denunciando
a fome coletiva na Ucrânia. Entre
estes, destaque para a estátua de uma menina
subnutrida, que abala o visitante logo
na entrada do parque, pela notável capacidade
do artista de imprimir o sofrimento
da fome na solidez do cimento. Anjos esculpidos
em pedra branca margeiam a ala
central do museu, que se completa numa
área subterrânea.

Para anexar a Crimeia, Putin evocou o
patriotismo dos russos lá radicados. Curiosamente,
foi assim que Hitler iniciou
a II Guerra Mundial: alegando defender
os alemães dos sudetos tchecos e da cidade
livre de Dantzig, na Polônia. Omundo
mudou pouco nestes setenta anos e a
violência humana continua a mesma.

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