REVISTA VEJA 08/04/2013
Religião
VEJA publica, com exclusividade, trechos dos diálogos entre Jorge
Bergoglio, o então arcebispo de Buenos Aires e hoje papa Francisco, e o
rabino Abraham Skorka. O resultado é um duelo de inteligências.
Não havia tema proibido nos encontros realizados semanalmente, ao
longo de 2010, entre as duas maiores autoridades religiosas da
Argentina — o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, e o
rabino Abraham Skorka, doutor em química, professor de Bíblia e de
literatura rabínica no Seminário Rabínico Latino-Americano. As
conversas, quase sempre na catedral portenha, muitas vezes no
escritório de Skorka, trataram de ateísmo, celibato, homossexualidade,
aborto e divórcio. O resultado foi transformado no livro Sobre o Céu e a
Terra (tradução de Sandra Manha Dolinsky; Paralela; 208 páginas: 24,90
reais). Não há guia mais adequado para entender a cabeça do papa
Francisco, o jesuíta com comportamento franciscano.
Ateísmo
Jorge Bergoglio - Quando me encontro com pessoas ateias, compartilho
com elas as questões humanas, mas não toco de cara no problema de
Deus, exceto no caso de falarem comigo sobre o assunto. Quando isso
acontece, eu lhes conto por que acredito. O humano é tão rico para
compartilhar, para trabalhar, que tranquilamente podemos complementar
mutuamente nossas riquezas. Como sou crente, sei que essas riquezas são
um dom de Deus. Também sei que o outro, o ateu, não sabe disso. Não
encaro a relação para fazer proselitismo com um ateu, eu o respeito e
me mostro como sou. Na medida em que haja conhecimento, aparecem o
apreço, o afeto, a amizade. Não tenho nenhum tipo de reticência, não
diria que sua vida está condenada, porque tenho certeza de que não
tenho direito de julgar a honestidade dessa pessoa. Muito menos quando
me mostra virtudes humanas, essas que engrandecem as pessoas e me fazem
bem. De qualquer forma, conheço mais gente agnóstica que ateia; o
primeiro é mais dubitativo, o segundo está convencido. Temos de ser
coerentes com a mensagem que recebemos da Bíblia: todo homem é imagem
de Deus, seja crente ou não. Por essa única razão, ele conta com uma
série de virtudes, qualidades, grandezas. E caso tenha baixezas, como
eu também as tenho, podemos compartilhá-las para nos ajudar mutuamente a
superá-las.
Abraham Skorka - Concordo com o que o senhor disse: o primeiro passo
é respeitar o próximo. Mas eu acrescentaria um ponto de vista: quando
uma pessoa diz "eu sou ateu", acredito que está assumindo uma postura
arrogante. A posição mais rica é a daquele que duvida. O agnóstico
pensa que ainda não encontrou a resposta, agora o ateu tem certeza,
100%, de que Deus não existe. Tem a mesma arrogância de quem garante
que Deus existe, tal como existe esta cadeira sobre a qual estou
sentado. Nós, religiosos, somos crentes, não damos por cena Sua
existência. Podemos percebê-la em um encontro muito, muito, mas muito
profundo, mas nunca O vemos. Recebemos respostas sutis. A única pessoa
que, segundo a Torá, explicitamente falava com Deus, cara a cara, era
Moisés. Aos outros — Jacó, Isaac —, a presença de Deus chegava em
sonhos ou em refrações. Dizer que Deus existe, como se fosse mais uma
certeza, também é uma arrogância, por mais que eu acredite que Deus
existe. Não posso afirmar superficialmente Sua existência porque tenho
de ter a mesma humildade que exijo do ateu. O exato seria dizer — como
Maimônides enuncia em seus treze princípios da fé — "eu acredito com fé
plena que Deus é o Criador". Seguindo a linha de Maimônides, podemos
dizer o que Deus não é, mas não podemos assegurar o que Deus é. Podemos
mencionar suas qualidades, seus atributos, mas de jeito nenhum podemos
lhe dar forma. Eu recordaria ao ateu que há uma perfeição na natureza
que está enviando uma mensagem: podemos conhecer suas fórmulas, mas
nunca sua essência.
Celibato
Bergoglio - Faço um esclarecimento: o sacerdote católico não se casa
na tradição ocidental, mas pode fazê-lo na oriental. Ali casa-se antes
de receber a ordenação; se já foi ordenado, então não pode se casar. E
o laico católico, que vive em plenitude, está metido no mundo até o
pescoço, mas sem se deixar levar pelo espírito do mundo. E isso é muito
difícil. Agora, o que acontece conosco, os consagrados? Somos tão
fracos que sempre há a tentação da incoerência. Queremos tudo, o bom da
consagração e o bom da vida laica. Antes de entrar no seminário, eu
andava por esse caminho. Mas depois, quando se cultiva essa escolha
religiosa, encontra-se força nesse outro caminho. Eu, pelo menos, vivo
assim, o que não impede que se conheça uma garota por aí. Quando eu era
seminarista, fiquei deslumbrado por uma garota que conheci no
casamento de um tio. Fiquei surpreso com sua beleza, sua luz
intelectual... e, bem, andei confuso um bom tempo, pensava sem parar.
Quando voltei ao seminário, depois do casamento, não consegui rezar ao
longo de uma semana inteira, porque, quando me dispunha a orar, a
garota aparecia em minha cabeça. Tive de voltar a pensar no que estava
fazendo. Ainda era livre porque era seminarista, podia voltar para casa
e tchau. Tive de repensar a opção. Tomei a escolher — ou a me deixar
escolher — o caminho religioso. Seria anormal se não acontecessem
coisas desse tipo. Quando isso acontece, temos de nos situar novamente.
Temos de ver se voltamos a escolher ou dizemos: "Não, isso que estou
sentindo é maravilhoso, tenho medo de que depois eu não seja fiel a meu
compromisso. Vou deixar o seminário". Quando acontece algo assim com
algum seminarista, eu o ajudo a ir em paz, a ser um bom cristão e não
um mau padre. Na Igreja ocidental, à qual pertenço, os padres não podem
se casar como nas igrejas católicas bizantina, ucraniana. russa ou
grega. Nelas, os sacerdotes podem se casar; os bispos não, têm de ser
celibatários. Eles são muito bons padres. Às vezes debocho deles, digo
que têm mulher em casa, mas que não perceberam que também compraram uma
sogra. No catolicismo ocidental, o tema é discutido impulsionado por
algumas organizações. Por enquanto, a disciplina do celibato se mantém
firme. Há quem diga, com certo pragmatismo, que estamos perdendo mão de
obra. Se, hipoteticamente, o catolicismo ocidental revisasse o tema do
celibato, acredito que o faria por razões culturais (como no Oriente),
não tanto como opção universal. Por ora, sou a favor de que se
mantenha o celibato, com seus prós e contras, porque são dez séculos de
boas experiências, mais que de falhas. O que acontece é que os
escândalos se veem logo. A tradição tem peso e validez. Os ministros
católicos foram escolhendo o celibato pouco a pouco. Até o ano 1100,
havia quem optasse por ele e quem não. Depois, no Oriente se seguiu a
tradição não celibatária como opção pessoal, e no Ocidente o contrário.
É uma questão de disciplina, não de fé. Isso pode mudar. Pessoalmente,
nunca passou por minha cabeça me casar. Mas há casos. Veja o do
presidente paraguaio Fernando Lugo, um sujeito brilhante. Mas, sendo
bispo, teve um deslize e renunciou à diocese. Nessa decisão foi
honesto. Às vezes surgem padres que caem nisso.
Skorka - E qual é a sua postura?
Bergoglio - Se um deles vem e me diz que engravidou uma mulher, eu o
escuto, procuro fazer com que tenha paz e, pouco a pouco, faço-o
perceber que o direito natural é anterior a seu direito como padre.
Portanto, ele tem de deixar o ministério e assumir esse filho, mesmo
que decida não se casar com essa mulher. Porque, assim como essa
criança tem direito a ter uma mãe, tem direito a ter o rosto de um pai.
Eu me comprometo a cuidar de toda a papelada em Roma, mas ele deve
deixar tudo. Agora, se um padre me diz que se entusiasmou, que teve um
deslize, eu o ajudo a se corrigir. Alguns padres se corrigem, outros
não. Alguns, lamentavelmente, nem contam ao bispo.
Skorka - Que significa se corrigir?
Bergoglio - Fazer penitência, respeitar seu celibato. A vida dupla
não nos faz bem. não gosto disso, significa substanciar a falsidade. Às
vezes lhes digo: "Se não puder superar isso, decida-se".
Culpa
Bergoglio - A culpa pode ser entendida em duas acepções: como
transgressão e como sentimento psicológico. Essa última não é
religiosa; mais ainda, eu me atreveria a dizer que pode inclusive
suprir um sentimento religioso, algo assim como a voz interior que diz
que me enganei, que agi mal. Algumas pessoas são "culpogênicas", porque
precisam viver em culpa; esse sentimento psicológico é doentio. Além
disso, entender-se com a misericórdia de Deus parece muito mais fácil
tendo esse sentimento de culpa, porque vou me confessar e pronto: o
Senhor já me perdoou. Mas não é tão fácil, porque foi simplesmente para
que lhe tirassem a mácula. E a transgressão é algo mais sério que uma
mera mácula. Há pessoas que brincam com isso de culpa, e, então,
transformam o encontro com a misericórdia de Deus em algo como ir à
tinturaria, é só limpar a mancha. E assim vão degradando as coisas.
Skorka - Concordo totalmente. Uma coisa é o anedótico — os conselhos
populares, a imagem da mãe judia "culpogênica" —, mas isso não tem
nada a ver com a essência da concepção judaico-cristã da culpa, porque,
quando alguém comete uma transgressão, existe uma possibilidade de se
redimir. A pessoa tem de mudar para não tornar a cometer essa
transgressão. Não basta dizer: "Eu me enganei", e acabou a história. É
claro que ajuda fazer uma oração, realizar uma doação como um ato de
caridade profundo, mas desde que sejam manifestações de uma elaboração
sincera. Quando se fala que as religiões jogam com a transmissão da
culpa judaico-cristã é uma incompreensão imensa, pois, nessa concepção,
o fato de cometer uma transgressão não é o fim do mundo. Todo mundo
pode se equivocar. mas é preciso reparar, consertar. E, acima de tudo,
não tomar a cometer a falta.
Bergoglio - A mera culpa pertence ao mundo do idolátrico. É mais um recurso humano. A culpa sem reparação não me deixa crescer.
Aborto
Bergoglio - O problema moral do aborto é de natureza pré-religiosa,
porque, no momento da concepção, está ali o código genético da pessoa.
Ali já há um ser humano. Separo
o tema do aborto de qualquer concepção religiosa. É um problema
científico. Não deixar avançar o desenvolvimento de um ente que já tem
todo o código genético de um ser humano não é ético. O direito à vida é
o primeiro dos direitos humanos. Abortar é matar quem não pode se
defender.
Skorka - O problema de nossa sociedade é que ela perdeu, em grande
medida, o respeito pela sacralidade da vida. O primeiro ponto
problemático é falar do aborto como se fosse um tema simples e o mais
normal do mundo. Não é assim: por mais que seja uma célula, estamos
falando de um ser humano. Portanto, o tema merece um âmbito muito
especial de discussão. Vê-se frequentemente que todo mundo dá a sua
opinião, sem informação exata, sem conhecimentos. O judaísmo, em termos
gerais, condena o aborto, mas há situações em que é permitido. Por
exemplo, quando a vida da mãe está em perigo. Há diversos casos em que
se autoriza o aborto. Mas o interessante é que os antigos sábios judeus
do Talmude o proibiram absolutamente nos outros povos quando
analisaram as leis dos gentios, o que seria o jus gentium no Talmude.
Minha interpretação é que, como sabiam do que acontecia em Roma,
queriam evitar ter de discutir a possibilidade do abono em uma
sociedade na qual a vida não era muito respeitada. Podemos encontrar no
Talmude uma análise exaustiva da pena de morte. Embora esse castigo
apareça na Torâ, alguns sábios são da opinião de que deve ser
restringida até tomar impossível sua aplicação. E há quem defenda com
argumentos uma postura menos restritiva. Os sábios de cada geração é
que, com base nas conjunturas que enfrentarão, aplicarão a pena de
acordo com um critério ou outro. Algo semelhante ocorre com o aborto. E
claro que o judaísmo o abomina e condena, salvo no caso claro, como
explica a Mishná, de que a mãe corra um inquestionável perigo de morte.
Nessas ocasiões, privilegia-se sua vida.
União homossexual
Skorka - O modo como se tratou o tema do casamento homossexual foi,
em meu entender, deficiente no que diz respeito à profundidade da
análise que o assunto merece. Embora de fato já existam muitos casais
do mesmo sexo que coabitam e merecem uma solução legal em questões como
pensão, herança etc. — que bem podem se enquadrar em uma figura
jurídica nova —, equiparar o casal homossexual ao heterossexual já é
outra coisa. Não é só uma questão de crenças, e sim de ter consciência
de que estamos tocando em um dos elementos mais sensíveis da
constituição de nossa cultura. Faltaram mais análises e estudos
antropológicos sobre a questão. Paralelamente a isso, é claro que se
deveria ter dado maior espaço de informação aos credos, como portadores
e formadores de cultura. Deveriam ter sido organizados debates no seio
dos próprios credos, com suas variadas tendências, para formar um
espectro completo de opiniões.
Bergoglio - A religião tem direito de opinar, pois está a serviço
das pessoas. Se alguém pede um conselho, tenho direito de dá-lo. O
ministro religioso às vezes chama a atenção sobre certos pontos da vida
privada ou pública porque é o condutor dos fiéis. Mas não tem direito
de forçar nada na vida privada de ninguém. Se Deus, na criação, correu o
risco de nos fazer livres, quem sou eu para me meter? Nós condenamos o
assédio espiritual, que acontece quando um ministro impõe de tal modo
as normas, as condutas, as exigências, que priva a liberdade do outro.
Deus deixou em nossas mãos até a liberdade de pecar. Temos de falar
muito claro dos valores, dos limites, dos mandamentos, mas o assédio
espiritual, pastoral, não é permitido.
Skorka – (...) A lei judaica proíbe relações entre homens.
Estritamente, o que diz a Bíblia é que os homens não devem ter relações
no estilo das que homens têm com mulheres. Disso se deduz toda uma
postura. O ideal do ser humano, desde o Gênesis, é unir um homem e uma
mulher. A lei judaica é clara: não pode haver homossexualidade. Por
outro lado, eu respeito qualquer indivíduo, desde que mantenha uma
atitude de recato e intimidade. Em relação à nova lei, não me convence
do ponto de vista antropológico. Ao reler Freud e Lévi-Strauss quando
se referem aos elementos formadores daquilo que conhecemos como
cultura, e o valor que dão à proibição das relações incestuosas e à
ética sexual, como base do processo de civilização, preocupam-me os
resultados que essas mudanças podem produzir no seio de nossa
sociedade.
Bergoglio - Penso exatamente a mesma coisa. Para defini-lo, eu
utilizaria a expressão "retrocesso antropológico", porque seria
debilitar uma instituição milenar criada de acordo com a natureza e a
antropologia. Há cinquenta anos, o concubinato não era uma coisa
socialmente tão comum como agora. Era até uma palavra claramente
pejorativa. Depois, a situação foi mudando. Hoje, coabitar antes de se
casar, embora não seja o correto do ponto de vista religioso, não tem o
peso social pejorativo de cinquenta anos atrás. É um fato sociológico,
que certamente não tem a plenitude nem a grandeza do casamento, que é
um valor milenar que merece ser defendido. Por isso, alertamos sobre
sua possível desvalorização, e, antes de modificar uma jurisprudência, é
preciso refletir muito sobre tudo o que está em jogo. Para nós também é
importante o que o senhor acaba de apontar, a base do direito natural
que aparece na Bíblia, que fala da união do homem e da mulher. Sempre
houve homossexuais. A ilha de Lesbos era conhecida porque ali viviam
mulheres homossexuais. Mas nunca ocorreu na história que se tentasse
dar a essa relação o mesmo status do casamento. Era tolerada ou não,
admirada ou não, mas nunca equiparada.
Divórcio
Bergoglio - O tema do divórcio é diferente daquele do casamento de
pessoas do mesmo sexo. A Igreja sempre repudiou a Lei de Divórcio
Vincular, mas é verdade que há antecedentes antropológicos diferentes
nesse caso. Nessa oportunidade, nos anos 1980, deu-se um debate mais
religioso, porque o casamento até que a morte os separe é um valor
muito fone no catolicismo. Hoje, entretanto, na doutrina católica
recordamos a nossos fiéis divorciados e casados de novo que não estão
excomungados — embora vivam em uma situação à margem daquilo que a
indissolubilidade matrimonial e o sacramento do casamento exigem —, e
lhes pedimos que se integrem à vida paroquial. As igrejas ortodoxas
ainda têm uma abertura maior em relação ao divórcio. Naquele debate
houve oposição, mas com matizes. Houve posições extremas que nem todos
compartilhavam. Alguns diziam que era melhor que não se aprovasse o
divórcio, mas também havia outros mais abertos ao diálogo do ponto de
vista político.
Skorka - Na religião judia, a instituição do divórcio existe, sendo
aplicada na Halachá, a legislação rabínica. É claro, é um drama. Não é
uma questão de fé, como no catolicismo, porque sua posição deriva da
leitura dos Evangelhos, que dizem que Jesus teve uma postura dura em
relação ao divórcio, como a adotada pela casa de Shamai, conforme
atesta o Talmude. Para o judaísmo, quando o casamento não dá certo,
quando depois de muitos esforços para conciliar as partes as
incompatibilidades persistem, então ajudamos a formalizar o ato de
divórcio. Exponho o tema nesses termos porque, no judaísmo, o rabino ou o
tribunal rabínico não declaram nem decretam o novo estado das panes,
só supervisionam para que a dissolução seja de acordo com as normas.
São o homem e a mulher que assumem e declaram seu novo estado, assim
como quando se casam. É um ato íntimo do casal, supervisionado por um
conhecedor da lei para confirmar que o realizado é correto. Por isso não
foi tão conflituoso aquele debate. Algo parecido aconteceu quando
foram discutidos os métodos de reprodução assistida. O judaísmo era a
favor porque era uma maneira de ajudar Deus para que uma mulher pudesse
ser mãe, para melhorar a condição do indivíduo sofredor. É uma postura
mais dinâmica que a católica. O catolicismo é mais duro, tem posturas
mais restritivas nesses temas. Mas, quando se levantam todas essas
questões no seio de uma sociedade democrática, é preciso tentar chegar a
consensos.
segunda-feira, 8 de abril de 2013
CASAMENTO GAY
Veja - 08/04/2013
A REVELAÇÃO PÚBLICA DE DANIELA
Ao anunciar a união com uma jornalista de televisão, a quem chama de esposa, a cantora baiana Daniela Mercury tomou obrigatória a discussão sobre o casamento gay no Brasil.
Cada sociedade tem seu próprio tempo para maturar (ou não) mudanças sociais. Nos EUA, ao contrário do Brasil, a aceitação dos gays vem disparando — mas isso é recente
É um caso raro, talvez único: o presidente dos Estados Unidos assina uma lei e, depois de apear do poder, diz que ela é inconstitucional. Em 1996, pouco antes de concorrer à reeleição, Bill Clinton sancionou a lei que define o casamento como união "entre um homem e uma mulher". Queria o voto dos conservadores e temia desagradar aos liberais, mas assinou — na calada da noite, faltando dez minutos para 1 da madrugada, sem foto nem cerimônia, mas assinou. Ganhou a reeleição, cumpriu seu segundo mandato e, no mês passado, defendeu a ideia de que o documento que leva sua assinatura fere o princípio da igualdade entre os cidadãos da Constituição.
A inflexão de Clinton se explica numa aritmética elementar. Em 1996, só 27% dos americanos apoiavam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Hoje, são mais da metade. O apoio cresce tanto que a Suprema Corte, numa audiência pública sobre a constitucionalidade do casamento gay, deu a impressão de que prefere não legislar sobre o assunto, deixando que cada estado decida o que julgar mais apropriado. A decisão final da Corte sai até junho. Pode deixar o assunto para os estados, como transpareceu na audiência, mas pode surpreender, aprovando o casamento gay para o país todo. Nem os militantes gays ficaram incomodados com a aparente cautela dos juízes, pois, cada vez que sai um plebiscito sobre o assunto, vencem. Em novembro, ganharam em quatro estados: Washington, Maine, Maryland e Minnesota. (Mais a eleição, por Wisconsin, da primeira senadora abertamente gay.) A revista Time colocou na capa um casal homossexual beijando-se na boca sob a seguinte chamada: "O casamento gay ganhou. A Suprema Corte ainda não decidiu, mas o país já".
Cada sociedade tem seu ritmo próprio para aceitar (ou não) novos comportamentos sociais. No Brasil dos anos 50, o cardeal de São Paulo, dom Carmelo Motta, achava que a aprovação do divórcio era motivo para pegar em armas, e as desquitadas eram comparadas com "mulheres da vida". Até o fim dos anos 60, os gays americanos se reuniam às escondidas em bares que pagavam propina à polícia para evitar batidas. Percorreram uma longa trajetória em busca de aceitação. Até 2004, a maioria dos americanos era contra o casamento homossexual. Desde então, o apoio entrou numa espiral ascendente. Por dois motivos. Os jovens que estão chegando à idade adulta são francamente favoráveis aos gays. O outro motivo é que as pessoas mudam de ideia, inclusive as mais velhas. Na "geração silenciosa", formada pelos nascidos entre 1928 e 1945, apenas 17% apoiavam o casamento gay há dez anos. Hoje, são 31%. Pois é, as coisas mudam devagar, mas mudam tanto que fazem até presidente dizer que assinou lei inconstitucional.
André Petry de Nova York.
Contra a "engenharia social"
Mais da metade dos franceses não vê com bons olhos a instituição do casamento gay. Mas o movimento não é reacionário: conta com homossexuais e tem algo de 1968.
Em maio de 1968, Paris foi palco de manifestações estudantis contra a velha ordem. "A imaginação no poder" e "Seja realista, exija o impossível" eram dois dos slogans que transbordaram para países do Ocidente e da América Latina, com variações locais que sopravam na mesma direção de modernizar hábitos — e, no extremo, transformar o sistema. O arco aqui ia da ressurreição do anarquismo à improvável mutação do marxismo em ideologia libertária. Maio de 1968 transformou as relações familiares e amorosas, mas propiciou o surgimento de grupos terroristas e causou a substituição dos paralelepípedos por asfalto nas ruas parisienses, a fim de evitar que os estudantes os arrancassem para jogar nos policiais. Uma pena do ponto de vista estético. Quase meio século depois, as maiores manifestações ocorridas em Paris parecem ir na direção contrária em relação a novidades comportamentais. São contra a legalização do casamento gay nos moldes propostos pelo governo. Uma delas reuniu quase 1 milhão de pessoas, em janeiro. A outra, realizada em março, mobilizou peno de 500 000 cidadãos e acabou em pancadaria. depois que um grupo tentou sair dos limites geográficos estabelecidos pelas autoridades. Agora, protestos menores e diários pressionam o Senado a emendar o projeto de lei aprovado pelos deputados.
O movimento, contudo, não pode ser definido como reacionário, embora a Igreja seja forte patrocinadora. Não é incorreto dizer que em diversos aspectos, ele é fruto de 1968. Sua líder, por exemplo, é a comediante Frigide Baijot (trocadilho com o nome da atriz famosa que significa Frígida Doidona) — católica, mas não uma carola de bigode ligada ao Opus Dei. Esse movimento abriga famílias com recasamentos, aglutina homossexuais avessos ao padrão heterossexual e conta com a simpatia de mais da metade da população, em boa pane desobediente aos ditames do Vaticano. Seus integrantes não são contrários à união de gays perante a lei. O que não querem ver aprovada é uma legislação que iguale casais homossexuais a heterossexuais, em especial quanto à reprodução médica assistida. Não acham bom que bebês nasçam de dois pais (por meio de barriga de aluguel, obviamente) ou de duas mães, porque essas crianças teriam problemas psicológicos. A lei abre brecha para os gays "gerarem" filhos. "Ao abolir a distinção entre héteros e gays, no que se refere à reprodução, o governo mostra o seu viés autoritário. O nome disso é engenharia social. Viva a diferença!", diz Frigide Baijot. Parece a fala de uma manifestante de 1968.
Mario Sabino, de Paris.
A REVELAÇÃO PÚBLICA DE DANIELA
Ao anunciar a união com uma jornalista de televisão, a quem chama de esposa, a cantora baiana Daniela Mercury tomou obrigatória a discussão sobre o casamento gay no Brasil.
"Seja o que Deus quiser, Malu.”
Daniela Mercury olhou para a companheira, em um quarto de hotel de
Lisboa, onde esteve na semana passada para uma série de shows, tocou no
ícone compartilhar do Instagram e pôs no ar uma colagem de fotos dela
com a jornalista Malu Verçosa, editora na TV Bahia, afiliada da Globo.
No cabeçalho, escreveu a frase que provocaria mais de 17000 reações de
“curtir” coladas à revelação: “Malu agora é minha esposa, minha
família, minha inspiração pra cantar”. E o Brasil inteiro ficou sabendo
que ela saíra do armário, como se diz no jargão popular para definir a
pessoa que assume sua homossexualidade, e que decidira trocar alianças
— mas ainda não assinar papéis no cartório — com a namorada recente,
de apenas dois meses e meio (na cronometragem oficial, descontado o
período de segredo). Houve estardalhaço — saiu no Jornal Nacional.
Daniela — mãe de dois filhos já adultos, do primeiro casamento, e de
outros três adotados, do segundo, ambos relações convencionais — nunca
admitira sua orientação sexual. Seja o que Deus quiser, portanto.
Mas Deus vai querer? Se depender da
hierarquia das igrejas que falam em nome Dele, a resposta será um
sonoro “não" dos líderes evangélicos brasileiros, um “sim” enfático dos
anglicanos e um “sim” condicional dos católicos. “Se Deus, na criação,
correu o risco de nos fazer livres, quem sou eu para me meter?”, foi a
reação do jesuíta Mario Bergoglio, o papa Francisco, sobre o casamento
gay em seu diálogo com o rabino Abraham Skorka (veja a reportagem na
pág. 94). Bergoglio elabora sua resposta e diz que o papel do pastor é
alertar o fiel para os perigos de pecar e nunca induzi-lo a determinado
tipo de ação na vida privada. Mas pelo menos até que Ele a convoque
para um acerto de contas, Daniela tem pouco com que se preocupar com as
repercussões religiosas de seu anúncio. O casamento gay tem hoje mais
implicações de ordem prática do que de consciência.
Depois do anúncio, Daniela divulgou
uma nota na qual citou o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), presidente
da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Escreveu a cantora: “Numa
época em que temos um Feliciano desrespeitando os direitos humanos,
grito meu amor aos sete ventos. Quem sabe haja alguma lucidez no
Congresso Brasileiro”. Ao misturar seu relacionamento com política,
Daniela prestou um desserviço ao mesmo tempo ao romantismo e à sua
seriedade de propósitos. O presidente do STF, Joaquim Barbosa, ajudou a
por a questão em sua real perspectiva durante uma palestra na UNB: “É
simples: o deputado Marco Feliciano foi eleito pelos seus pares para
assumir determinado cargo dentro do Congresso Nacional. Perfeito.
Agora, a sociedade tem direito de se exprimir contrariamente à presença
dele nesse cargo. Isso é democracia”.
É natural e positivo que as
instituições tratem as mudanças comportamentais radicais com a cautela
devida. É natural e positivo também que as pessoas possam ter tempo
para se acostumar com esses novos ordenamentos sociais e avanços
comportamentais. É assim que as mudanças se legitimam, superando a
intolerância, que se dilui com o tempo em formas cada vez mais brandas
de rejeição até se tomarem invisíveis. Confrontada com a questão do
casamento gay, a Suprema Corte dos EUA optou pela cautela. Pediu mais
tempo para que os juizes avaliem todas as repercussões de um vez mais
provável reconhecimento legal de uma situação de fato.
No Brasil, o STF reconheceu a união
estável gay em 2011. A partir de parceiros do mesmo sexo numa relação
contínua e duradoura, com o objetivo principal de constituir família,
podem receber herança em caso de morte de um dos dois, receber pensão
alimentícia, optar pela comunhão parcial de bens, e também adotar
crianças. Em seis estados brasileiros (Alagoas, Bahia, Ceará, Mato
Grosso do Sul, Paraná e São Paulo) os cartórios já fazem o casamento
civil homossexual, o que põe os casais juridicamente um degrau acima do
status de união estável. Cerca de 400 casais gays brasileiros
conseguiram a certidão de matrimônio desde o “sim” do STF. Esse número
só tende a crescer.
É discernível uma tendência
evolutiva rumo à aceitação no que diz respeito aos homossexuais. O que
já foi visto como doença física no passado foi em uma fase posterior
encarado como comportamento desviante provocado por defeito de criação —
ou seja, produto de lares com mães superprotetoras e pais ausentes e
violentos. As concepções erradas davam origem às reações sociais
desastradas. A "rebelião de Stonewall”, os seis dias de confronto entre
policiais e gays, em Nova York, ocorreu há pouco mais de quarenta
anos. Desde então os gays deixaram de ser caso de polícia. Os
estudiosos desvendaram o peso da determinação genética, o que esvaziou
as falsas considerações morais sobre eles. Recentemente a
homossexualidade tem sido descrita como uma adaptação evolutiva da
espécie. Isso significa que muitas sociedades não apenas deixaram de ser
hostis aos gays como passaram a ver contribuições positivas para o
grupo na existência deles.
“A homossexualidade representa
diversidade e ela é sempre positiva para a sociedade”, diz Edward
Wilson, o grande biólogo americano de Harvard. autor de um livro
recente, A Conquista Social da Terra, que funde de maneira inédita as
análises genéticas e culturais do comportamento humano (veja a Carta ao
Leitor, na página 12). Wilson põe a homossexualidade em campo
diametralmente oposto, por exemplo, ao do incesto, este, sim, um desvio
comportamental que não apenas abala o edifício moral das sociedades
como empobrece a diversidade genética tão necessária para a
sobrevivência sadia da espécie humana. Wilson diz que isso explicaria
as razões da crescente aceitação da homossexualidade em contraste com a
existência consentida do incesto somente em alguns pontos isolados da
África e da Ásia — ainda assim com aceitação apenas ritualística em
casamentos de chefes tribais. O mesmo processo sociogenético-cultural
que, como demonstra Edward Wilson, vem chancelando a homossexualidade
atua fortemente na rejeição da pedofilia e da poligamia. O que a
biologia evolutiva constatou pelo método científico as pessoas percebem
no cotidiano. Quanto mais jovem o grupo, menos seus integrantes
consideram homossexualidade um assunto polêmico. Os jovens em quase
todas as partes são cada vez mais o que os sociólogos chamam de “gender
blind” — ou seja, eles olham uma pessoa, percebem que tipo de roupa
ela usa, que corte de cabelo, mas se a pessoa é gay ou não é um ponto
que não chama atenção.
O casamento gay coloca um desafio de
outra ordem. Não se trata mais da simples aceitação pelo grupo de
adolescentes ou jovens adultos — mas do reconhecimento pelas
instituições de que os direitos civis podem ser automaticamente
aplicados aos relacionamentos homossexuais duradouros. Isso é mais
complexo. Esse processo exige que vanguardas e maiorias conservadoras
realizem uma tensa dança do acasalamento até que a intolerância se
dissolva em rejeição e essa em aceitação legal — o que não significa
que os dois lados vão despeitar um dia depois da aprovação da eventual
legalização do casamento gay concordando sobre todas as questões. Mas
esse processo de negociação é inevitável.
É da natureza humana que as minorias
liderem as transformações, na vanguarda, e que as maiorias, sempre
mais apegadas ao que já existe, se incomodem. Impossível é fugir da
existência de uma novidade que exclui a indiferença. Foi assim com o
divórcio e com o movimento em defesa do voto feminino, no início do
século XX, nos EUA e na Inglaterra. As mulheres já tratavam de política
dentro de casa, opinavam sobre o cotidiano com o marido — mas o salto
só se deu com a aprovação legal do voto. É o que ocorre agora com o
ingresso do casamento gay nos tribunais.
Se a aprovação da união homossexual
fosse simplesmente a institucionalização de uma postura que já estava
acontecendo entre quatro paredes, seria mais fácil crer que essa
transformação se daria de modo ainda mais acelerado. Mas há um
complicador. Como estender aos gays as proteções legais dadas ao
casamento pelo simples fato de ele, ao fim e ao cabo, propiciar a
perpetuação da espécie pela procriação? As pesquisas de opinião no
Brasil mostram que nem mesmo a adoção de crianças ou o recurso a
barrigas de aluguel ou inseminação artificial demovem a maioria
heterossexual da convicção de que os casais gays são incapazes de criar
um lar estável. Nos EUA a resistência é bem menor, mas a questão ainda
está longe de ser unanimidade. “Parece-me que os gays estão lutando
pelo casamento. Eu receio que isso signifique rebaixar o que é o
casamento”, disse o ator inglês Jeremy Irons ao site noticioso
Huffington Post.
Além da intolerância e agressividade
dos militantes, há descontentamento de bom número de pessoas com a
redução de questões éticas de alta complexidade — caso também do abono e
da eutanásia — a uma simples luta por direitos. Escreveram os
especialistas em ética Claire Andre e Manuel Velasquez: “Muitas
controvérsias morais hoje se expressam na linguagem dos direitos. Há
uma explosão de recursos pelos direitos dos homossexuais, direitos dos
prisioneiros, direitos dos animais, direitos dos não fumantes e dos
fumantes, direitos dos fetos e direitos dos trabalhadores”. O
reconhecimento do direito dos homossexuais perante as leis é, portanto,
apenas um aspecto de uma questão social de conseqüências ainda não
totalmente conhecidas. Mas apenas fingir que o novo não existe é
insuficiente para preservar o velho.
Com reportagem de Álvaro Leme, Bela Megale, Carlos Giffoni, Carolina Melo e Kalleo Coura.
E pensar que já foi assim...
Cada sociedade tem seu próprio tempo para maturar (ou não) mudanças sociais. Nos EUA, ao contrário do Brasil, a aceitação dos gays vem disparando — mas isso é recente
É um caso raro, talvez único: o presidente dos Estados Unidos assina uma lei e, depois de apear do poder, diz que ela é inconstitucional. Em 1996, pouco antes de concorrer à reeleição, Bill Clinton sancionou a lei que define o casamento como união "entre um homem e uma mulher". Queria o voto dos conservadores e temia desagradar aos liberais, mas assinou — na calada da noite, faltando dez minutos para 1 da madrugada, sem foto nem cerimônia, mas assinou. Ganhou a reeleição, cumpriu seu segundo mandato e, no mês passado, defendeu a ideia de que o documento que leva sua assinatura fere o princípio da igualdade entre os cidadãos da Constituição.
A inflexão de Clinton se explica numa aritmética elementar. Em 1996, só 27% dos americanos apoiavam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Hoje, são mais da metade. O apoio cresce tanto que a Suprema Corte, numa audiência pública sobre a constitucionalidade do casamento gay, deu a impressão de que prefere não legislar sobre o assunto, deixando que cada estado decida o que julgar mais apropriado. A decisão final da Corte sai até junho. Pode deixar o assunto para os estados, como transpareceu na audiência, mas pode surpreender, aprovando o casamento gay para o país todo. Nem os militantes gays ficaram incomodados com a aparente cautela dos juízes, pois, cada vez que sai um plebiscito sobre o assunto, vencem. Em novembro, ganharam em quatro estados: Washington, Maine, Maryland e Minnesota. (Mais a eleição, por Wisconsin, da primeira senadora abertamente gay.) A revista Time colocou na capa um casal homossexual beijando-se na boca sob a seguinte chamada: "O casamento gay ganhou. A Suprema Corte ainda não decidiu, mas o país já".
Cada sociedade tem seu ritmo próprio para aceitar (ou não) novos comportamentos sociais. No Brasil dos anos 50, o cardeal de São Paulo, dom Carmelo Motta, achava que a aprovação do divórcio era motivo para pegar em armas, e as desquitadas eram comparadas com "mulheres da vida". Até o fim dos anos 60, os gays americanos se reuniam às escondidas em bares que pagavam propina à polícia para evitar batidas. Percorreram uma longa trajetória em busca de aceitação. Até 2004, a maioria dos americanos era contra o casamento homossexual. Desde então, o apoio entrou numa espiral ascendente. Por dois motivos. Os jovens que estão chegando à idade adulta são francamente favoráveis aos gays. O outro motivo é que as pessoas mudam de ideia, inclusive as mais velhas. Na "geração silenciosa", formada pelos nascidos entre 1928 e 1945, apenas 17% apoiavam o casamento gay há dez anos. Hoje, são 31%. Pois é, as coisas mudam devagar, mas mudam tanto que fazem até presidente dizer que assinou lei inconstitucional.
André Petry de Nova York.
Contra a "engenharia social"
Mais da metade dos franceses não vê com bons olhos a instituição do casamento gay. Mas o movimento não é reacionário: conta com homossexuais e tem algo de 1968.
Em maio de 1968, Paris foi palco de manifestações estudantis contra a velha ordem. "A imaginação no poder" e "Seja realista, exija o impossível" eram dois dos slogans que transbordaram para países do Ocidente e da América Latina, com variações locais que sopravam na mesma direção de modernizar hábitos — e, no extremo, transformar o sistema. O arco aqui ia da ressurreição do anarquismo à improvável mutação do marxismo em ideologia libertária. Maio de 1968 transformou as relações familiares e amorosas, mas propiciou o surgimento de grupos terroristas e causou a substituição dos paralelepípedos por asfalto nas ruas parisienses, a fim de evitar que os estudantes os arrancassem para jogar nos policiais. Uma pena do ponto de vista estético. Quase meio século depois, as maiores manifestações ocorridas em Paris parecem ir na direção contrária em relação a novidades comportamentais. São contra a legalização do casamento gay nos moldes propostos pelo governo. Uma delas reuniu quase 1 milhão de pessoas, em janeiro. A outra, realizada em março, mobilizou peno de 500 000 cidadãos e acabou em pancadaria. depois que um grupo tentou sair dos limites geográficos estabelecidos pelas autoridades. Agora, protestos menores e diários pressionam o Senado a emendar o projeto de lei aprovado pelos deputados.
O movimento, contudo, não pode ser definido como reacionário, embora a Igreja seja forte patrocinadora. Não é incorreto dizer que em diversos aspectos, ele é fruto de 1968. Sua líder, por exemplo, é a comediante Frigide Baijot (trocadilho com o nome da atriz famosa que significa Frígida Doidona) — católica, mas não uma carola de bigode ligada ao Opus Dei. Esse movimento abriga famílias com recasamentos, aglutina homossexuais avessos ao padrão heterossexual e conta com a simpatia de mais da metade da população, em boa pane desobediente aos ditames do Vaticano. Seus integrantes não são contrários à união de gays perante a lei. O que não querem ver aprovada é uma legislação que iguale casais homossexuais a heterossexuais, em especial quanto à reprodução médica assistida. Não acham bom que bebês nasçam de dois pais (por meio de barriga de aluguel, obviamente) ou de duas mães, porque essas crianças teriam problemas psicológicos. A lei abre brecha para os gays "gerarem" filhos. "Ao abolir a distinção entre héteros e gays, no que se refere à reprodução, o governo mostra o seu viés autoritário. O nome disso é engenharia social. Viva a diferença!", diz Frigide Baijot. Parece a fala de uma manifestante de 1968.
Mario Sabino, de Paris.
Maiorias e Minorias
Uma reportagem desta edição de VEJA fala das ondas de choque provocadas pela decisão da cantora baiana Daniela Mercury de, depois de dois casamentos convencionais, proclamar publicamente pelo Insta-gram sua paixão por uma mulher, Malu, a quem chama de esposa. Se havia alguma possibilidade de a questão do casamento homossexual no Brasil ficar restrita aos militantes e seus adversários da bancada religiosa do Congresso, ela se evaporou na quarta-feira passada. O post de Daniela espalhou-se rapidamente pelas redes sociais, virou notícia no Jornal Nacional e na rede internacional CNN, onde a cantora já foi descrita como a “Madonna brasileira”. Daniela colocou o assunto no horário nobre da televisão brasileira e, mesmo subtraindo o senso de oportunismo de promoção pessoal, a tendência agora é que a discussão se alastre.
O
assunto é complexo e convida à discórdia. Pessoas sem nenhum sentimento
de rejeição aos homossexuais são contra o reconhecimento legal da união
marital entre indivíduos do mesmo sexo. Boa parte se irrita mesmo é
com a agressividade de militantes dos movimentos gays e sua fúria
implacável dirigida a quem quer que ouse divergir minimamente deles. Mas
é fato que muita gente intelectualmente honesta, despida de dogmas
religiosos e indiferente ao tipo de atividade sexual que adultos
pratiquem consensualmente entre quatro paredes, não vê com naturalidade a
união homossexual ao amparo da lei. São pessoas que dificilmente
dariam seu apoio a uma mudança no artigo 226 da Constituição
Brasileira, no qual está estabelecido que, “para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar”.
A
reportagem de VEJA contribui para o debate racional do tema. Ela lembra
que o racismo, infelizmente, sobreviveu mesmo depois de o conceito de
raça como critério de diferenciação humana ter sido destroçado pelos
avanços genéticos recentes. Por isso, é de esperar que a condenação da
homossexualidade continue em certos círculos, a despeito da constatação
de que ela é apenas uma adaptação da espécie, como lembra o grande
biólogo evolutivo americano Edward Wilson em seu mais recente livro, A
Conquista Social da Terra. Diz Wilson: “A homossexualidade pode ser
vantajosa para os grupos humanos pelos indivíduos de talentos especiais e
qualidades incomuns de personalidade e pelas profissões especializadas
que cria”.
Para
encarar esses assuntos com serenidade, é bom ter em mente que quem
amplia as fronteiras sociais são as vanguardas comportamentais,
invariavelmente formadas por minorias. Quem mantém a coesão da sociedade
são as maiorias, conservadoras por definição. Por isso, as relações
entre os dois grupos de pessoas, mesmo quando não há conflito aberto ou
intolerância, são sempre tensas. Se a vanguarda minoritária não força a
barra, as relações sociais ficam congeladas no tempo. Sem alguma
resistência da maioria, as mudanças de comportamento nunca se legitimam.
Mantida no plano civilizado, portanto, essa tensão é não apenas
natural, mas necessária e positiva.