domingo, 26 de maio de 2013
No rádio do carro - Caetano Veloso
O Globo - 26/05/2013
Os caminhos e as relações de ritmos como o funk, o maculelê, o Olodum e as baterias de escolas de samba
No rádio do carro ouço o que pinta, dentro do que, em
parte, procuro. Acabo de ouvir Fernanda Abreu cantando “Baile da
pesada” com o Monobloco. Penso nos caminhos que vem percorrendo a
percussão brasileira de rua, a carnavalesca, sobretudo desde que os
blocos afro de Salvador ganharam a definição e a notoriedade que
cresceram a partir do final dos anos 1970. Passando pelo mangue-beat, ou
bit, como se chamava originalmente (ou talvez devamos dizer que há um
mangue-beat, que caracteriza a levada de ao menos um dos grupos do
movimento mangue-bit), pelo samba-reggae e pelo samba-merengue do Olodum
(que Neguinho do Samba não tinha conseguido impor ao Ilê-Aiyê), pelo
Monobloco e pelo polêmico “funk” da bateria da Viradouro, essas
formações têm mais proximidade com as bandas estudantis americanas do
que em geral imaginamos. Podem ser vistas em alguns filmes: são bandas
de percussão informais, que reproduzem em instrumentação marcial as
levadas de funk, rhythm&blues, soul e outras modalidades de música
negra dos Estados Unidos. Há parentesco estreito entre essas bandas e a
percussão brasileira contemporânea. Mas a influência das baterias de
escolas de samba como modalidade de reprodução marcial de ritmos
nascidos da música mão-no-couro dos terreiros de candomblé sobre o
imaginário internacional está por ser avaliada. Lembro-me de ter lido,
lá pelos anos 1980, comentário de um criador americano de disco music
sobre os brasileiros não saberem o quanto a invenção do gênero devia ao
carnaval do Brasil. Ele se referia às marchinhas e a tudo o mais.
O
caminho do baile funk, ou funk carioca, é fascinante. Hermano Viana tem
milênios de crédito por ter escrito sobre o fenômeno na fase
embrionária — e vendo já tudo o que de essencial podemos ver com clareza
agora. Da eleição do repertório de hits se dando de forma totalmente
independente da programação radiofônica e dos interesses das gravadoras à
predominância da batida umbanda-maculelê sobre o Miami bass, o funk
carioca é uma história de liberdade inventiva cuja importância ainda
havemos de saber reconhecer. Ouço funk no rádio do carro com meu filho
mais novo. Ele gosta. Tem 16 anos. O fascínio cresce pelo fato (em
princípio às vezes irritante para mim) de não serem gravações que vou
encontrar em discos na livraria mais próxima da Zona Sul, cuja
comercialização não é como a tradicional. Sendo ela também um fenômeno
de inventividade, parece que devo manter num mundo algo inatingível as
peças que ela distribui. Como minha memória não é mais lá essas coisas,
fico com fragmentos de frases chulas e de sons incomuns, tudo excitando
minha capacidade de fruir e de julgar.
No começo,
era o Miami bass, sobre o qual uma tumbadora aguda gritava, ao longe, a
célula do maculelê. E logo o maculelê, exclusividade da minha cidade de
nascimento (como os festejos do 13 de Maio), foi tomando conta. Trata-se
de uma forma de dança e luta que se desenvolveu em Santo Amaro, onde e
apenas onde era conhecida, até alguns grupos folclóricos de Salvador a
adicionarem às apresentações de capoeira que mostravam ao mundo.
Os
negros na diáspora e sua conversa com o mundo. Sou um mulato nato e
repito que a bossa nova é foda. Ao som do rádio do carro, sou arrastado a
sentir essas movimentações sugestivas. Jobim/Nestrovski, Fernanda e
Monobloco, Seu Jorge e um certo surdo, Olodum, americanos, Viradouro,
baile funk. Que lugar ou momento dessas danças estamos vivendo cada vez
que votamos em eleições, abordamos questões setoriais ou imaginamos como
decidir sobre nossas vidas?
Ouço na Rádio MEC
três temas de Tom Jobim com Arthur Nestrovski ao violão e fico
impressionado com a sonoridade do instrumento. Parece que a nitidez e a
limpidez das notas nascem do sentimento que o violonista experimenta ao
defrontar-se com as ideias musicais do autor, não um conseguimento
técnico devido a treinamento exaustivo — embora treinamento exaustivo
tenha naturalmente sido necessário para que o resultado fosse esse. Ouço
na MPB FM Seu Jorge cantando divinamente um samba de andamento médio em
que um surdo sobrenatural comenta toda a história de tristeza e
superação que marca o gênero. Como é tarde, a emissora não dá os
créditos: terei de encontrar a gravação ouvindo várias outras do cantor.
Posso também simplesmente perguntar a ele ou a pessoas que conheçam bem
seu trabalho. Mas será uma pergunta vaga. Apenas a descrição desse
surdo e a definição do andamento, já que, embora na hora tenham me
impressionado também, as palavras e as frases melódicas não ficaram
registradas nessa memória já tão fraca, se comparada ao que era quando
eu tinha 26 anos.