O comandante Hugo Chávez Frías pertencia à robusta tradição dos
caudilhos que, embora mais presentes na América Latina que em outras
partes, não deixaram de se assomar a toda parte, até em democracias
avançadas, como a França. Ela revela aquele medo da liberdade que é uma
herança do mundo primitivo, anterior à democracia e ao indivíduo, quando
o homem ainda era massa e preferia que um semideus, ao qual cedia sua
capacidade de iniciativa e seu livre-arbítrio, tomasse todas as decisões
importantes de sua vida.
Cruzamento de super-homem e bufão, o caudilho faz e desfaz a seu bel
prazer, inspirado por Deus ou por uma ideologia na qual, quase sempre,
se confundem o socialismo e o fascismo - duas formas de estatismo e
coletivismo - e se comunica diretamente com seu povo mediante a
demagogia, a retórica, a espetáculos multitudinários e passionais de
cunho mágico-religioso.
Sua popularidade costuma ser enorme, irracional, mas também efêmera, e
o balanço de sua gestão, infalivelmente catastrófico. Não devemos nos
impressionar em demasia pelas multidões chorosas que velam os restos de
Hugo Chávez. São as mesmas que estremeciam de dor e desamparo pela morte
de Perón, de Franco, de Stalin, de Trujillo e as que, amanhã,
acompanharão Fidel Castro ao sepulcro.
Os caudilhos não deixam herdeiros e o que ocorrerá a partir de agora
na Venezuela é totalmente incerto. Ninguém, entre as pessoas de seu
entorno, e certamente em nenhum caso Nicolás Maduro, o discreto
apparatchik a quem designou seu sucessor, está em condições de aglutinar
e manter unida essa coalizão de facções, de indivíduos e de interesses
constituídos que representa o chavismo, nem de manter o entusiasmo e a
fé que o defunto comandante despertava com sua torrencial energia nas
massas da Venezuela.
Uma coisa é certa: esse híbrido ideológico que Hugo Chávez urdiu
chamado revolução bolivariana ou socialismo do século 21, já começou a
se decompor e desaparecerá, mais cedo ou mais tarde, derrotado pela
realidade concreta: a de uma Venezuela, o país potencialmente mais rico
do mundo, ao qual as políticas do caudilho deixaram empobrecido,
dividido e conflagrado, com a inflação, a criminalidade e a corrupção
mais altas do continente, um déficit fiscal que beira a 18% do PIB e as
instituições - as empresas públicas, a Justiça, a imprensa, o poder
eleitoral, as Forças Armadas - semidestruídas pelo autoritarismo, a
intimidação e a submissão.
Além disso, a morte de Chávez coloca um ponto de interrogação na
política de intervencionismo no restante do continente latino-americano
que, num sonho megalomaníaco característico dos caudilhos, o comandante
defunto se propunha a tornar socialista e bolivariano a golpes de talão
de cheques. Persistirá esse fantástico dispêndio dos petrodólares
venezuelanos que fizeram Cuba sobreviver com os 100 mil barris diários
que Chávez praticamente presenteava a seu mentor e ídolo Fidel Castro? E
os subsídios e as compras de dívida de 19 países, aí incluídos seus
vassalos ideológicos como o boliviano Evo Morales, o nicaraguense Daniel
Ortega, as Farc colombianas e os inúmeros partidos, grupos e grupelhos
que por toda a América Latina lutam para impor a revolução marxista?
O povo venezuelano parecia aceitar esse fantástico desperdício
contagiado pelo otimismo de seu caudilho, mas duvido que o mais fanático
dos chavistas acredite agora que Maduro possa vir a ser o próximo Simon
Bolívar. Esse sonho e seus subprodutos, como a Aliança Bolivariana para
as América (Alba), integrada por Bolívia, Cuba, Equador, Dominica,
Nicarágua, San Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda, sob a direção da
Venezuela, já são cadáveres insepultos.
Nos 14 anos que Chávez governou a Venezuela, o preço do barril de
petróleo ficou sete vezes mais caro, o que fez desse país,
potencialmente, um dos mais prósperos do planeta. No entanto, a redução
da pobreza nesse período foi menor que a verificada, por exemplo, no
Chile e no Peru no mesmo período. Enquanto isso, a expropriação e a
nacionalização de mais de um milhar de empresas privadas, entre elas 3,5
milhões de hectares de fazendas agrícolas e pecuárias, não fez
desaparecer os odiados ricos, mas criou, mediante o privilégio e o
tráfico, uma verdadeira legião de novos ricos improdutivos que, em vez
de fazer progredir o país, contribuiu para afundá-lo no mercantilismo,
no rentismo e em todas as demais formas degradadas do capitalismo de
Estado.
Chávez não estatizou toda a economia, como Cuba, e nunca fechou
inteiramente todos os espaços para a dissidência e a crítica, embora sua
política repressiva contra a imprensa independente e os opositores os
reduziu a sua expressão mínima. Seu prontuário no que respeita aos
atropelos contra os direitos humanos é enorme, como recordou, por
ocasião de seu falecimento, uma organização tão objetiva e respeitável
como a Human Rights Watch.
É verdade que ele realizou várias consultas eleitorais e, ao menos em
algumas delas, como a última, venceu limpamente, se a lisura de uma
eleição se mede apenas pelo respeito aos votos depositados e não se leva
em conta o contexto político e social no qual ela se realiza, e na qual
a desproporção de meios à disposição do governo e da oposição era tal
que ela já entrava na disputa com uma desvantagem descomunal.
No entanto, em última instância, o fato de haver na Venezuela uma
oposição ao chavismo que na eleição do ano passado obteve quase 6,5
milhões de votos é algo que se deve, mais do que à tolerância de Chávez,
à galhardia e à convicção de tantos venezuelanos que nunca se deixaram
intimidar pela coerção e as pressões do regime e, nesses 14 anos,
mantiveram viva a lucidez e a vocação democrática, sem se deixar
arrebatar pela paixão gregária e pela abdicação do espírito crítico que o
caudilhismo fomenta.
Não sem tropeços, essa oposição, na qual estão representadas todas as
variantes ideológicas da Venezuela está unida. E tem agora uma
oportunidade extraordinária para convencer o povo venezuelano de que a
verdadeira saída para os enormes problemas que ele enfrenta não é
perseverar no erro populista e revolucionário que Chávez encarnava, mas a
opção democrática, isto é, o único sistema capaz de conciliar a
liberdade, a legalidade e o progresso, criando oportunidades para todos
em um regime de coexistência e de paz.
Nem Chávez nem caudilho algum são possíveis sem um clima de ceticismo
e de desgosto com a democracia como o que chegou a viver a Venezuela
quando, em 4 de fevereiro de 1992, o comandante Chávez tentou o golpe de
Estado contra o governo de Carlos Andrés Pérez. O golpe foi derrotado
por um Exército constitucionalista que enviou Chávez ao cárcere do qual,
dois anos depois, num gesto irresponsável que custaria caríssimo a seu
povo, o presidente Rafael Caldera o tirou anistiando-o.
Essa democracia imperfeita, perdulária e bastante corrompida, havia
frustrado profundamente os venezuelanos que, por isso, abriram seu
coração aos cantos de sereia do militar golpista, algo que ocorreu, por
desgraça, muitas vezes na América Latina.
Quando o impacto emocional de sua morte se atenuar, a grande tarefa
da aliança opositora presidida por Henrique Capriles será persuadir esse
povo de que a democracia futura da Venezuela terá se livrado dessas
taras que a arruinaram e terá aproveitado a lição para depurar-se dos
tráficos mercantilistas, do rentismo, dos privilégios e desperdícios que
a debilitaram e tornaram tão impopular.
A democracia do futuro acabará com os abusos de poder, restabelecendo
a legalidade, restaurando a independência do Judiciário que o chavismo
aniquilou, acabando com essa burocracia política mastodôntica que levou à
ruína as empresas públicas. Com isso, se produzirá um clima estimulante
para a criação de riqueza no qual empresários possam trabalhar e
investidores, investir, de modo que regressem à Venezuela os capitais
que fugiram e a liberdade volte a ser a senha e contrassenha da vida
política, social e cultural do país do qual há dois séculos saíram
tantos milhares de homens para derramar seu sangue pela independência da
América Latina. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
Músico que uniu o salão e a rua é homenageado com vasta programação que contempla sua obra nas faces erudita e popular
Leonardo Lichote
Ilustração de Leo Martins
Arte O Globo
RIO - Na virada do século XIX para o XX, algo fervia no Rio de
Janeiro — as elites da capital federal emulando a elegância europeia,
batuques ecoando pelas vielas ocupadas por escravos recém-libertos. Como
pianista demonstrador da Casa Vieira Machado & Cia, na Rua do
Ouvidor, ou como atração da sala de espera do Cinema Odeon, Ernesto
Nazareth ouvia tudo. E, mais que isso, traduzia para seu instrumento o
processo em curso — a cultura urbana que se formava, a tal fervura que
deu as bases para a produção brasileira ao longo das décadas seguintes —
misturando os dois universos: o salão e a rua, Chopin e os chorões, o
negaceio rítmico e a complexidade técnica. Agora, quando são celebrados
os 150 anos de seu nascimento (no dia 20 de março de 1863, no Morro do
Pinto), Nazareth é homenageado em suas faces erudita e popular, lembrado
como o que foi em ambos os terrenos: um fundador.
Meu mestre em História da Igreja, Eduardo Hoornaert, de quem fui aluno no curso de Teologia, faz uma proposta ousada, mas não descabida: uma Igreja Católica sem Papa!
À
primeira vista, soa como uma heresia. Tão assustadora como se propor,
no século XIX, um Brasil sem imperador, uma Rússia sem czar, uma Áustria
sem rei.
O papado não é uma instituição de origem cristã. A
palavra “Papa” não figura no Novo Testamento. Derivar o papado do
versículo de Mateus 16, 18 — “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei
minha igreja”— é isolar o texto do contexto. Nada indica nos Evangelhos que Jesus pensou em instituir uma dinastia apostólica.
Foi
o bispo Eusébio de Cesareia, mentor da política “globalizada” do
imperador Constantino, que, no século IV, teve a iniciativa de redigir
listas de sucessivos bispos para as principais cidades do Império
Romano, de modo a adaptar a estrutura da Igreja ao modelo imperial de sucessão de poderes. Eusébio criou a imagem de Pedro-Papa.
A
palavra “Papa” (Pope), do grego popular do século III, deriva de
“pater” (pai) e expressa a estima dos cristãos por determinados bispos e
sacerdotes. Chamar o sacerdote de “padre” (pai) e o chefe religioso de
“Pope” (Papa) tornou-se costume nas Igrejas católica e ortodoxa. Ainda
hoje, na Rússia, o pastor da comunidade é chamado de Pope.
Cipriano,
bispo de Cartago (248-258), foi o primeiro a ser chamado de Papa. Em
Roma, o termo só passou a ser aplicado a seu bispo a partir do século
VI, com o Papa João I. Já o Colégio de Bispos — o episcopado ou a
conferência episcopal — tem raiz cristã. Bispo significa “supervisor” e é
citado diversas vezes no Novo Testamento (1 Tm 3, 2; Tito 1, 7; 1 Pd 2,
25; At 20, 29). Assim como o substantivo “episcopado” (1 Tm 3,1).
Todo
poder centralizado gera rivalidades. A partir do século III, teve
início uma acirrada disputa entre as quatro principais metrópoles do
Império Romano — Constantinopla (atual Istambul), Roma, Antioquia e
Alexandria. Os bispos dessas cidades eram conhecidos como “patriarcas”.
Cipriano
não admitiu que o bispo de Roma exercesse autoridade sobre ele, bispo
de Cartago. Insistiu que, entre bispos, deveria vigorar “completa
igualdade de funções e poder”.
Porém, Roma conseguiu se impor,
sobretudo a partir de sua aliança com o imperador germânico Carlos
Magno, em 800. Isso tensionou suas relações com os patriarcas do Oriente
e tornou inevitável o primeiro grande cisma da Igreja, ocorrido em 1052, que marca o início do que hoje se conhece por Igreja Católica (romana), de um lado, e Igreja Ortodoxa, de outro.
O
papado, herdeiro do legado imperial de Constantino, tornou-se uma
monarquia absoluta (ainda hoje), com poderes sobre reis e imperadores
(não mais). Essa estrutura piramidal de poder passou a não diferir de
todas as outras análogas na esfera civil, marcadas por intrigas,
traições, subornos, negociatas, nepotismo, utilizando uma linguagem
inacessível aos fiéis (o latim) e trocando a arte de convencer (e
converter) pela força da coerção (aterrorizar): culpa, inquisição,
inferno, medo, venda de indulgências etc.
Dizem que Stalin teria
perguntado de quantas divisões de exército dispunha o Papa. De fato,
Roma, por sua habilidade diplomática, saiu vitoriosa em inúmeros embates
com os principais poderes do Ocidente. Toynbee chegou a afirmar que a Igreja ficou afetada pela “embriaguez da vitória”.
Trancado
no Vaticano, o Papa passou a viver numa esfera irreal, refém de uma
cúria mais interessada no apego ao poder que na missão evangélica de
levar aos povos a palavra de Jesus.
A modernidade balançou os alicerces da Igreja.
A liberdade de consciência, o avanço das ciências, as novas
tecnologias, o pluralismo ideológico, tudo isso desmistificou o papado.
Pio IX, num gesto de desespero, chegou a promulgar o controvertido dogma
da infalibilidade papal, como se a História não registrasse tanta
falibilidade em Papas que aprovaram torturas, sentenças de morte,
assassinatos, simonia, adultério etc.
Leão XIII mudou a estratégia da Igreja
e aliou-a aos mais fortes, ao lado dos quais Bento XV comemorou o fim
da Primeira Guerra Mundial. Pio XI apoiou Mussolini, Hitler e Franco.
Pio XII se omitiu frente aos crimes de lesa-Humanidade do nazifascismo.
O
ciclo mereceu uma pausa com João XXIII e, de certo modo, com Paulo VI,
que condenou a Guerra do Vietnã e a ditadura militar brasileira. Mas
prosseguiu com o apoio de João Paulo II à ditadura Pinochet no Chile e à
política agressiva de Reagan contra a Nicarágua sandinista. Bento XVI
se omitiu frente aos recentes golpes de Estado em Honduras e Paraguai.
Ao
contrário da instituição do papado, a do episcopado merece aplausos,
sobretudo na América Latina entre 1960-1990, com bispos mártires
(Angelelli e Romero) e confessores (Hélder Câmara, Casaldáliga, Proaño,
Evaristo Arns, Padim, Mendez Arceo, Samuel Ruiz).
O Concílio
Vaticano II pretendeu valorizar os poderes dos bispos e reduzir o do
Papa. Hoornaert pergunta: “Pode a França subsistir sem rei; a
Inglaterra, sem rainha; a Rússia, sem czar; o Irã, sem aiatolá? A
própria História se encarrega de dar a resposta”, diz ele.
Cedo ou tarde, a Igreja
terá de democratizar sua estrutura de poder. Torná-la mais colegiada. O
que se discute não é a figura do Papa, é a estrutura do papado. Em suas
cartas escritas durante o Vaticano II, e hoje publicadas, dom Hélder
diz ter sonhado que o Papa enlouqueceu, jogou sua tiara no Rio Tibre e
ateou fogo no Vaticano.
Na opinião do ex-arcebispo de Olinda e
Recife, o Papa deveria doar o Vaticano à Unesco, como Patrimônio
Cultural da Humanidade, e passar a residir em lugar mais condizente com a
sua condição de sucessor de um pescador da Galileia e representante na
Terra daquele que não tinha uma pedra onde recostar a cabeça.
Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.
Mais importante que a estratégia ou o sistema tático é a falta de um craque no meio-campo
Apesar
de Ronaldinho brilhar no Atlético-MG, como no jogo contra o Strongest, e
Kaká ser reserva no Real Madrid, vejo Kaká com mais chances de atuar
bem e de ajudar, coletivamente, a seleção. Se fosse escolher pelo que
joga no clube, Zé Roberto, do Grêmio, mereceria ser titular do Brasil,
mesmo com 38 anos.
A atuação excepcional do meia Modric, também
reserva no Real Madrid, ao entrar no segundo tempo, após a absurda
expulsão de Nani, do Manchester United, mostra porque Kaká não é titular
da equipe espanhola. Os dois seriam destaques em quase todos os outros
times do mundo.
Antes das vitórias sobre Barcelona e Manchester
United, muitos diziam que a causa da má campanha do Real Madrid no
Espanhol eram as brigas entre o técnico Mourinho e os jogadores. Ninguém
mais fala nisso. Mourinho sempre adotou a tática do terrorismo, da
pressão e do confronto com os atletas. Infelizmente, pelo comportamento
infantil, a maioria dos jogadores, mais ainda no Brasil, desde que o
técnico seja brilhante, como é Mourinho, gosta de treinadores
autoritários, que punem e que, depois, premiam.
A Constituição governa quem governa. Governa de modo permanente quem governa de modo transitório
Comecemos
por uma afirmação óbvia: o Poder Executivo de qualquer das quatro
unidades da nossa federação tem um chefe. Estrutura-se ele, Poder
Executivo, sob a chefia ou autoridade máxima de um agente político.
Prefeito, governador, presidente da República, todos dirigem
superiormente uma dada Administração Pública e daí se postam aos olhos
do povo como a própria encarnação do governo. A face mais visível do
poder público. Estamos a falar, portanto, de um tipo de agente que é
popularmente eleito para ficar no topo de um dos poderes elementares do
Estado. Poder, esse, mais fisicamente próximo do conjunto da população,
por lhe competir implementar as políticas públicas mais cotidianamente
significativas dos interesses e valores juridicamente qualificados como
próprios dessa população mesma. Interesses e valores que mais de perto
viabilizam a sobrevivência, o equilíbrio e a evolução do conjunto da
sociedade, por conseguinte. Donde a instantânea identificação entre
chefe do Poder Executivo e o governo de toda pessoa estatal-federada:
União, Estados, Distrito Federal e municípios.
O
baseball é aquele esporte em que os jogadores passam mais tempo
ajustando o boné do que jogando. E o cricket consegue ser ainda mais
chato. Claro, esta é a opinião de um preconceituoso assumido, que
prefere a plasticidade e a ação contínua do futebol. E mesmo sendo jogos
aborrecidos, o baseball e o cricket têm histórias curiosas, num
contexto que tem menos a ver com esporte do que com política,
imperialismo e os paradoxos do colonialismo cultural.
Os dois
países americanos em que o baseball é mais popular, além dos Estados
Unidos, são Cuba e Venezuela. Fidel foi jogador de baseball, Chávez não
sei se jogou, mas era fã. Nos dois países mais anti-Estados Unidos da
região o esporte nacional é o mais típico dos esportes dos Estados
Unidos. É verdade que o gosto pelo baseball antecede os acidentes
históricos que deram no antagonismo de hoje. O baseball de Cuba teve
origem na ocupação do país pelos americanos no fim do século dezenove.
Sobreviveu ao fim da ocupação e, mais tarde, ao fim da influência
norte-americana, com a expulsão de Batista e a ascensão de Fidel. O
baseball cubano nunca ligou para a História. Na Venezuela não houve
ocupação norte-americana mas houve anos de intenso colonialismo cultural
numa elite e numa classe média voltadas para exemplos e hábitos
norte-americanos, parte da mentalidade desafiada pelo bolivarismo
chavista. Mas a popularidade do baseball permaneceu intocada. Bolívar,
presume-se, também seria fã.
O cricket e o futebol são –
simplificando – os esportes da aristocracia e do proletariado inglês.
Era de se esperar que em todo o “commonwealth” que restou do
imperialismo britânico o cricket fosse execrado como símbolo da presença
imperial e da prepotência do homem branco. Mas por toda a Ásia e a
Oceania, até em lugares em que o império nunca esteve, o cricket é
popular. Seus melhores jogadores são ídolos nacionais. Suas regras e
excentricidades, como partidas que duram uma tarde inteira com intervalo
para o chá, são as mesmas da ex-metrópole. E os times do ex-império
constantemente humilham times ingleses, e ninguém chama de vingança. Vá
entender.
Decidiram
fazer um churrasco para as famílias se conhecerem. Do lado da Bea havia
seu pai, sua mãe, um irmão mais moço e uma tia solteira. Do lado do
noivo, Carlos Alberto, mãe viúva, duas irmãs mais velhas, sendo uma com
uma namorada, e um irmão com a mulher e dois filhos menores. O churrasco
seria na casa da Bea, que tinha um pátio grande com churrasqueira, e o
Carlos Alberto se prontificou: seria o assador.
Acertaram a
logística do encontro. Os donos da casa forneceriam as saladas e a
cerveja, os visitantes trariam a carne, a sobremesa e os refrigerantes,
inclusive zeros para quem estivesse controlando a glicose. E o assador.
Tudo transcorreu bem. LEIA AQUI
No
futuro próximo, os recém-nascidos, ainda na maternidade, terão vários
chips implantados no cérebro e serão conectados antes de aprenderem a
falar, talvez numa rede social especializada
Esse negócio de
Google tirou a graça de muitas coisas. E dificultou a vida dos que
mourejam nas letras, obrigados por profissão e ganha-pão a escrever com
regularidade, fazendo o que podem para atrair o interesse de leitores e
mostrar serviço, pois bem sabem que a mão que afaga é a mesma que
apedreja e o quem-te-viu-quem-te-vê será o destino inglório daqueles que
dormirem no ponto. Antes do Google, o esforçado cronista recorria a
almanaques e enciclopédias e deles, laboriosamente, extraía novidades
para motivar ou adornar seu texto. Agora todo mundo pode fazer isso num
par de cliques. Além do mais, o cronista podia também exibir-se um
pouco, o que talvez trouxesse algum benefício ao combalido Narciso que
carrega n’alma, além de realçar-lhe a reputação. Somente alguns poucos,
entre os quais ele, tinha tal ou qual informação, ou lembrava certos
pormenores, em relação ao assunto comentado. O Google acabou com isso e
quem hoje em dia chegar ao extremo de escrever algo do tipo “você
sabia?” se arrisca a desmoralização instantânea.
Ghost writer eu conhecia, é claro. Mesmo porque já me
propuseram vestir lençol branco e arrastar correntes literárias,
bancando a primeira pessoa em lugar de uma terceira, menos disposta às
chatices da escrita. O que eu não conhecia é ghost book - até que me
aparecesse um. Não qualquer um: livro fantasma de "minha" autoria.
Falo sério: tempos atrás, soube na Estante Virtual que um sebo de
Belo Horizonte tinha à venda, por R$ 10, algo intitulado "O perfil no
jornalismo", de Humberto Werneck. O abantesma ficou um tempo ali, depois
sumiu - e eis que agora surge outro (ou será o mesmo?) em Simões Filho,
município grudado em Salvador, à disposição de quem vá ao site
Todaoferta e pague 25 reais. Um consolo saber que na Bahia me valorizei
150%.
Eu achava que Humberto Werneck era eu. Na verdade, é também eu. Só no
Facebook tem mais dois - e, sendo um deles Júnior, há de haver ou ter
havido um Sênior. No caso de "O perfil no jornalismo", cheguei a pensar
no homônimo de quem falei na crônica "O Céu pode esperar", sobre o dia
em que ouvi no rádio a notícia do falecimento de Humberto Werneck. Por
pouco não faleci também - no ato ou tempos depois, quando topei com
"meu" túmulo no Bonfim, em Belo Horizonte. Mas é pouco provável que o
ocupante da tumba 143 da quadra 49 tenha escrito livros. Como 2º
sargento da Polícia Militar de Minas, tinha mais o que fazer.
Vai ver então que sou xará de mim mesmo, cogitei - e estava certo: na
Estante Virtual, informava-se que a obra à venda consistia em material
utilizado em workshop, e workshops tenho feito por aí. Impossível saber
quem foi o malandro que pegou meus textos de trabalho, distribuídos numa
dessas ocasiões, e os vendeu no sebo. Imagino que tenha juntado as
folhas com espiral, para dar à coisa um ar de livro. E eu que me julgava
merecedor de encadernação menos vulgar. Ou será que acabei, ai de mim,
na brochura? Para sabê-lo, só se adquirir "O perfil no jornalismo", de
Humberto Werneck.
Comprar livro meu seria algo inédito na minha vida de autor.
Paciência, alguém teria de fazê-lo. Que meu gesto vos sirva de exemplo!
Como a transação seria feita na internet, eu não teria de passar pela
cruel experiência de me encontrar espremido numa estante, regurgitante
de ácaros e assolado pelos fungos. Já me aconteceu tantas vezes que
criei calo na alma. Estou até pensando em lançar meu próximo livro num
sebo, para queimar etapas. A vantagem, para o leitor, é não precisar
ler, pois nesse tipo de comércio o livro em princípio já vem lido.
A primeira vez no sebo um autor não esquece. Não há como não pensar
em rejeição, em não sentir-se como o bebê Moisés a boiar nas águas num
cestinho. Não, é pior do que isso, pois quem abandona um recém-nascido
não quer nada em troca, sejam 25 ou mesmo 10 reais.
Decidido: vou comprar. Pode vir a ser um bom investimento, se depois
de morto alguém jogar sobre mim esta pá de cal literária: "De tudo o que
publicou o finado, salva-se apenas 'O Perfil no jornalismo'". Mas será
que valho 25 reais, minha atual cotação em Simões Filho, Bahia?
Não é pergunta que um autor se faça. Algo mais valioso está em jogo.
Conta-se a história de um literato do terceiro ou quarto time que se
deparou num sebo com uma de suas obras-primas. Trêmulo, pescou o volume e
caiu em cima da dedicatória que fizera para um confrade, também do
terceiro ou quarto time, ao qual era ligado não só pela subliteratura
como por um recíproco rancor empapado de inveja - sentimento que entre
escribas muitas vezes toma a forma de sorrisos e amabilidades. O
desapreço pelo concorrente transparecia na espinhenta gelidez do
advérbio: "Para fulano de tal, atenciosamente..." Razão de sobra,
convenhamos, para que o destinatário tenha posto o presente à venda.
Ultrajado, o autor comprou o refugo e o despachou de volta para o
desafeto, "com renovadas atenções".
Será que o ex-proprietário de "O Perfil no jornalismo" deixou nome e endereço na folha de rosto dessa maçaroca?
O pranto de Marighella e as queixas de Dolores Duran
Lendo a biografia de Dolores Duran, escrita por Rodrigo Faour, revivi
toda a minha frustração por não ter podido encontrar essa cantora e
compositora excepcional quando de minha vinda para o Rio com Bethânia.
Dolores tinha morrido, aos 29 anos, cinco anos antes de eu chegar aqui
com minha irmã. Na noite do dia em que ela morreu, eu e Chico Motta, meu
melhor amigo de infância e adolescência (e irmão para sempre), fizemos
uma homenagem à sua memória: percorremos as ruas de Santo Amaro na
madrugada, em silêncio, tendo inclusive nos separado, cada um para sua
casa quando chegamos à esquina mais próxima das duas, sem dizer nem “té
manhã”. O fato é que estávamos profundamente comovidos com a notícia
sobre aquela mulher que tinha cantado “Não se avexe não” e escrito “Por
causa de você”.
Chico sabia que eu a tinha visto em carne e osso,
no auditório da Rádio Nacional, três anos antes. Mas quando isso se deu
eu tinha 13 anos: admirava a cantora e sentia simpatia extrema pela
pessoa, apenas já quase sabia que a amaria tanto. Seja como for, a
figura vital e engraçada que surge da pesquisa de Faour não me
surpreende: a “fossa” dos sambas-canções era uma exigência, por assim
dizer, natural; a letra de “Estrada do Sol” representava o mais radical
contraste com essa exigência; “Por causa de você” é exceção pioneira de
canção de amor otimista em português; o canto cômico dos baiões de Chico
Anysio e dos sambas de Billy Blanco — assim como a voz heterônima das
canções americanas que ela gravou — provinha de uma alma amante da vida.
Uma
cena me emocionou de forma única na narrativa (sempre em tom quase
exageradamente informal) de Faour: a presença de Dolores numa palestra
de Marighella em reunião organizada por Jorge Goulart e Nora Ney. Esse
casal — de quem tive a sorte de me fazer amigo nos anos que se seguiram à
explosão de Bethânia no cenário nacional, amizade que perdurou até
minha prisão e exílio em 1968/69 — era comunista e atuava no ambiente de
músicos e artistas como divulgadores e propagandistas do projeto do
socialismo mundial. Dolores era simpatizante da causa. Por essa razão (e
por seus dotes vocais e cênicos) foi convidada a unir-se ao grupo de
músicos brasileiros que iriam (inclusive por interesse do presidente JK)
se apresentar na União Soviética.
Imagino essa sala na Zona Sul
do Rio em que os dois mulatos coincidiram. Já contei aqui que Marighella
chorou copiosamente ao tomar conhecimento dos horrores do stalinismo,
mas, como se sabe, ele nunca abandonou o sonho comunista e terminou
morrendo por ele. Dolores (que, tal como ele, na época nem tinha sua
condição de mulata como informação que viesse pegada a seu nome) não era
ligada diretamente ao Partidão. Voltou da União Soviética indignada com
o que viu. E era a URSS de Kruschev. Um texto de Jorge Goulart defendeu
o mundo comunista das acusações de Dolores. E no depoimento que dá a
Faour critica branda mas maliciosamente Dolores: diz que ela reagiu mal à
experiência russa por preferir beber na embaixada americana a fazer os
passeios e visitas propostos pelos organizadores soviéticos. As
entrevistas de Dolores publicadas à época soam um tanto irresponsáveis. A
má vontade com o que viu pode confirmar algo daquilo que Goulart
insinua: que ela, identificada com o mundo decadente do Ocidente
capitalista, ouviu a versão corrente na embaixada dos Estados Unidos. A
acusação que vem velada na fala de Goulart, mas tem semelhança com o que
esquerdistas de então e de hoje dizem de críticos e dissidentes de
países socialistas. Segundo Faour, Paulo Moura (que também voltou da
Rússia antes do previsto) compartilhava do desconforto de Dolores.
Imagino
essa moça talentosa e boêmia, aos 27 anos, vendo a vida acinzentada do
socialismo do Leste europeu. Orgulho-me de que ela tenha sido desabrida
ao expor sua decepção na volta. Mas sempre vejo a complexidade de
situações como essa. Os membros do Conjunto Farroupilha dizem que
adoraram tudo na URSS e que Dolores estava fora de sintonia. Nora Ney
nunca mais foi sua amiga. O socialismo jamais desaparecerá do horizonte:
lutamos com o mundo pela justiça e pela grandeza. Mas o pranto de
Marighella e as queixas de Dolores continuam tendo muito a dizer.
Dolores, uma das maiores artistas que temos tido. Uma suburbana carioca
descendente de nordestinos semi-iletrados que exibiu de modo exuberante a
potência criativa deste país. Quando penso nesse conjunto de coisas, em
Dolores e Marighella na mesma sala, em Nora e Jorge versus Paulo Moura,
sinto o quanto o Brasil tem que fazer. Capto a energia de uma
reviravolta suave ou brusca mas imensa que devemos cobrar deste país.