segunda-feira, 15 de outubro de 2012

PATRIMÔNIO » Vale a pena entrar-Walter Sebastião‏


Trinta e sete instituições brasileiras ganham destaque em livro que ressalta a beleza e a riqueza dos museus do país.  

 

Walter Sebastião

MUSEUS DO BRASIL - Empresa das Artes 222 páginas, R$ 130 (preço sugerido)




Frustrado em constatar que os museus brasileiros não têm o público que merecem, o editor Fábio Ávila lançou um caprichado guia dessas instituições. “Neste país, não se faz esforço no sentido de desenvolver o turismo cultural”, critica ele.

Ávila alerta que o país tem museus espetaculares. “Se trabalhados de maneira motivante, eles são capazes de atrair jovens, adultos e até crianças”, afirma o responsável pelo lançamento do livro Museus do Brasil (Empresa das Artes).

Conduzido por fotografias de Fábio Knoll, o leitor “passeia” por 37 entidades instaladas em várias partes do país. “Nossa ideia é sensibilizar pela beleza plástica para, mais tarde, fazer um grande guia”, explica o editor. “As instituições incluídas nesse livro são imperdíveis, foram escolhidas a dedo. Mas todos os museus são importantes, não se pode desvalorizar nenhum deles”, acrescenta Fábio Ávila.

Há cerca de 2,4 mil instituições museológicas no país. Minas Gerais está bem representada no livro, com cinco. As imagens publicadas vêm dos museus de Artes e Ofícios, de Ciências Naturais da PUC Minas, do Oratório e da Inconfidência, além do Instituto Inhotim. Número modesto, mas que pontua a excelência da atuação do estado, além de abranger amplo arco de tempo e interesses – há acervos dos tempos antigos ao mundo contemporâneo.

O livro revela algo que se vem tornando evidente: os museus têm caprichado em ações, programação, reformas e projetos de ampliação. É visível o esforço dessas instituições para atrair público.

Infância Fábio Ávila conta ter adorado o que viu em Minas – especialmente o Museu de Artes e Ofícios, que funciona em Belo Horizonte. “O que encontrei ali me levou de volta à infância na fazenda. Fiquei muito feliz em ver que não deixaram tanta coisa desaparecer”, observa.

O editor também destaca o Museu Imperial de Petrópolis (RJ). “Ele oferece emocionante passeio ao período imperial, uma ocasião para entendermos o Brasil daquela época”, elogia.

Fascinado pela dimensão social “e pelo acervo belíssimo” do museu de arte que funciona na Santa Casa de Misericórdia, em Salvador (BA), Fábio também é fã da Pinacoteca, em São Paulo, pela programação permanente de alto nível oferecida – inclusive de fotografia.

O editor adverte: “Belém do Pará precisa ser levada em consideração. Tem 11 museus espetaculares que ninguém conhece”. O Brasil conta com bom conjunto de instituições, acredita ele, mas ainda é preciso priorizar algo fundamental: “Falta sensibilizar o público para o importante trabalho que eles desenvolvem, além de mais verba”. Fábio sugere à iniciativa privada estabelecer parcerias com essas instituições.

O especialista tanto critica quanto elogia o público. “Estão faltando paciência e reflexão para discernir o que é conhecimento verdadeiro. Museu não é lugar para ir com pressa. Você tem de visitá-lo devagar, com calma, para admirar o trabalho alheio”. Ele chama a atenção para importância de iniciativas “de pessoas apaixonadas pela vida cultural do país, formadoras de opinião e fiéis à busca de conhecimento na área cultural”. Mas sente falta de mais museus voltados para questões brasileiras, “de modo a salvar as manifestações culturais mais profundas do país”.

A Empresa das Artes foi criada em 1986. A maior parte de seus lançamentos é formada por livros de arte. “Não se trata de luxo. Eles têm o papel de encantar por meio dos conteúdos que abordam”, defende. A editora está preparando um livro sobre a Serra do Espinhaço e o volume Brasil nação multicultural.

Virou hábito

Na Europa e nos Estados Unidos, o hábito de visitar museus se incorporou ao cotidiano da população. Na Alemanha, por exemplo, calcula-se que 100 milhões de pessoas frequentem habitualmente essas instituições – o país tem cerca de 81 milhões de habitantes.

Em 2009, o Cadastro Nacional de Museus estimou em 82 milhões de pessoas o público de instituições brasileiras, país com 193,9 milhões de habitantes. Só para efeito de comparação: o complexo museológico Smithsonian, que funciona nos Estados Unidos, recebe cerca de 30 milhões de visitantes por ano.

As instituições brasileiras estão concentradas no Sudeste (1.151) e Sul (878), informa o Cadastro Nacional de Museus de 2009. Em seguida vêm Nordeste (632), Centro-Oeste (218) e Norte (146).

Mesmo assim, novos espaços vêm surgindo no Brasil, propondo perspectivas inovadoras da memória e da história do país, ressaltam especialistas. Exemplos disso são o Museu dos Povos Indígenas do Oiapoque (AP), Museu Casa de Chico Mendes (AC), Casa de Memória do Centro Espírita (AC) e o Ecomuseu da Amazônia (PA).

MINEIROS NO GUIA
» INHOTIM
Arte contemporânea. Em Brumadinho, acesso pelo km 500 da BR-381. De terça a sexta, das 9h30 às 16h30; sábado, domingo e feriado, das 9h30 às 17h30. Informações e visitas agendadas: (31) 3571-9700. Entrada franca na terça. Quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Sexta, sábado, domingo e feriado: R$ 28 (inteira) e R$ 14 (meia). Crianças até 5 anos não pagam. Assinantes do Estado de Minas têm 50% de desconto na compra de dois ingressos. Transporte interno: R$ 15. 

» MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS
Acervo representativo do universo do trabalho. Praça da Estação, s/nº, Centro,(31) 3248-8600. De terça e sexta, das 12h às 19h; quarta e quinta, das 12h às 21h; sábado, domingo e feriado, das 11h às 17h. R$ 4 (inteira). Entrada franca aos sábados, às quartas e quintas, das 17h às 21h. 
» MUSEU DE CIÊNCIAS NATURAIS
Acervo científico. Fósseis de mamíferos e coleções da fauna brasileira. PUC Minas. Av. Dom José Gaspar, 290, Coração Eucarístico, (31) 3319-4152. Terça, quarta e sexta, das 8h30 às 17h; quinta, das 13h às 21h; sábado e feriados, das 9h às 17h. R$ 4. 

» MUSEU DA INCONFIDÊNCIA
Acervo relativo à história de Minas. Praça Tiradentes, 139, Centro Histórico de Ouro Preto, (31) 3551-6023. De terça-feira a domingo, das 12h às 18h. R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia-entrada).

» MUSEU DO ORATÓRIO
Acervo religioso. Adro da Igreja do Carmo, 28, Centro Histórico de Ouro Preto,(31) 3551-5369. Diariamente, das 9h30 às 17h30.
 A Pinacoteca, em São Paulo é considerada exemplar pelo fato de ter programação permanente de alto nível e espaço para a fotografia


Minas não acredita em Minas? - ALCIONE ARAÚJO

Herdamos a tão propalada desconfiança dos nossos antepassados do Ciclo do Ouro. A riqueza súbita convivia com roubos e traições 
 

ALCIONE ARAÚJO


“Sempre me intrigou o jeito blasé, de quem não se impressiona com nada, assumido por nós, mineiros. Acho folclórica a imagem de desconfiado, usurário e sonegador que o Brasil tem de nós. Mas sempre tive curiosidade de saber por que, diante do extraordinário, do extravagante ou do maravilhoso, há em Minas um esmerado empenho em exibir uma fria naturalidade, como se fosse familiar e corriqueiro. Com que propósito se escamoteia que uma coisa, uma pessoa, uma obra é impressionante, inesperada, deslumbrante?

Depois de tantos anos vivendo fora de Minas, quando encontro um amigo mineiro e comento, por exemplo, o extraordinário romance do Saramago, a reação é uma pálida e silenciosa concordância, que não vai além de um balançar de cabeça. Tão constrangida que parece esboçada apenas para não me desapontar, como convém à nunca assaz louvada hospitalidade mineira. Se, com outro amigo, comento o fantástico espetáculo de Aderbal Júnior sobre Vargas, a resposta é, quando muito, um gélido e circunspecto “... interessante”. E vá agora você elogiar o último filme de Wim Wenders: receberá de volta um olhar superior, acompanhado de um sorriso blasé, seguido de um lacônico “... é.”, pronunciado depois de amarga indecisão.

Qual seria a origem de um comportamento tão singular? A frieza e a discrição diante do inesperado talharam a conduta de celebrados políticos mineiros, que, sem perder as oportunidades, souberam conter paixões e entusiasmos na avaliação objetiva do quadro de forças. Há quem diga que as montanhas criam uma propensão ao ensimesmamento, que é parte da psicologia mineira refrear a empolgação. Um mineiro eufórico – dizem – morreria de solidão depois de devidamente secado pelo olhar demolidor do vizinho mais próximo.

Consta que herdamos a tão propalada desconfiança dos nossos antepassados do Ciclo do Ouro. A riqueza súbita convivia com roubos e traições: o contrabando tinha que driblar a repressão implacável. Nesse ambiente, quem não fosse astuto, velhaco e manhoso não rapava nada. Mais do que ser desconfiados, ali aprendemos a ser sonsos: jurar lealdade e fé e, ao mesmo tempo, encher de ouro o oco da santinha”.

Essa crônica, escrita em 1992 – lá se vão 20 anos! – foi publicada em revista de circulação nacional. Esquecera-me totalmente, até me chegar às mãos a prova de língua portuguesa e literatura brasileira do vestibular da UFMG. Lá estava ela, junto aos textos de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Darcy Ribeiro. Sobre a crônica, a prova tinha quatro questões com quatro opções cada. Não me pareceram difíceis, mas estou certo de que o angustiado vestibulando deve ter enxovalhado a memória da minha mãe. Republico-a aqui, tantos anos depois, para indagar se os mineiros foram mesmo assim, se a atitude persiste, e também como provocação, à luz de fatos políticos recentes, a ver se os mineiros mudaram, ou se, nos dias de hoje, ainda se pode dizer que os mineiros não acreditam em Minas.
 
ESTADO DE MINAS
15/10/2012 

Salvem os botos! - Eduardo Tristão Girão‏

Pesquisadores mineiros se dedicam a estudar relação dos animais com os humanos, uma das atrações turísticas no Amazonas 
 

Eduardo Tristão Girão 



Curiosamente, são biólogos mineiros de Juiz de Fora dois dos mais relevantes pesquisadores dedicados ao bem-estar do boto-vermelho, espécie também conhecida como boto-cor-de-rosa, que habita, entre outras regiões, a Bacia do Rio Amazonas. Ele não está ameaçado de extinção, mas certas populações da espécie sofrem por conta de interação inadequada com turistas, habituados a tocá-lo e alimentá-lo em margens fluviais. É justamente disso que se ocupam Mariana Frias, mestranda pela Universidade Federal de Juiz de Fora, e Luiz Cláudio Pinto de Sá Alves, doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 

Luiz é um dos pioneiros no estudo dessa questão, tendo iniciado pesquisa em 2008. Hoje ele é conselheiro do Instituto Aqualie, que tem sede em Cabo Frio (RJ) e mantém o projeto Inia, cujo objetivo é estudar o caso da alimentação artificial de botos-vermelhos (Inia geoffrensis, daí o nome) como atração turística na Amazônia Central brasileira. O comportamento dos animais é analisado durante essa atividade (o que inclui nadar com humanos) e questionários são aplicados aos turistas e pescadores locais, sempre no interior do Parque Nacional de Anavilhanas (AM), às margens do Rio Negro. 

“Agora estou me aprofundando nas pesquisas para chegar a modelo que possibilite boa qualidade de vida para os animais e mantenha a renda dos ribeirinhos que trabalham com essa atividade. Quero pensar a regulamentação dessa forma de turismo”, afirma Mariana, que teve como ponto de partida o trabalho já desenvolvido na área por Luiz Cláudio. Sua dissertação recebeu o título “Percepção de turistas sobre atividade/interação com botos-vermelhos no estado do Amazonas, Brasil”. 

Ela já visitou a região três vezes e, em julho, iniciou a aplicação de 200 questionários a turistas que interagiram com botos em dois locais, o Recanto do Boto (em Novo Airão, à beira do Rio Negro) e a Pousada Uacari (na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá), ambos no Amazonas. Sem interferência dos proprietários desses estabelecimentos ou de seus instrutores, os turistas relatam exatamente o que fizeram e se tocaram, alimentaram ou nadaram com os animais, entre outras questões. 

Segundo ela, em função do hábito é difícil pensar num modelo de interação entre humanos e botos que não inclua o contato físico, daí a preocupação em evitar que essa prática seja disseminada em outros locais onde a atividade é realizada. “É importante que mais animais não sejam acostumados a isso. Só o ventre dele deve ser tocado, pois o contato no dorso o incomoda e nele está o orifício respiratório. O melão, órgão ecolocalizador que fica na cabeça, também é muito sensível e os dentes podem ferir”, diz. 

Entidades como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e o Ibama vêm estabelecendo diretrizes que ajudarão na regulamentação dessa atividade turística, vital para a assegurar mínima qualidade de vida aos animas que já estão habituados ao contato humano. “A alimentação descontrolada afeta a habilidade de caça do animal e pode causar danos à saúde dele, como obesidade e doenças provocadas pelo acondicionamento incorreto do alimento até o momento da visitação”, observa Mariana.

Três perguntas para...
Luiz Cláudio Pinto de Sá Alves
biólogo e doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 

O boto está em extinção? Há registro de crescimento ou diminuição da população em certas áreas?
Atualmente, o boto está classificado pela International Union for Conservation of Nature (IUCN) como espécie com deficiência de dados depois de ter figurado entre 1988 e 1996 como espécie vulnerável no livro Lista vermelha de animais ameaçados, elaborado pela mesma instituição. Contudo, a IUCN esclarece que as espécies classificadas com deficiência de dados devem receber a mesma atenção que as espécies ameaçadas até que um estudo de risco de extinção seja realizado. Na maioria de sua área de distribuição não há estudos realizados sobre o tamanho de população da espécie. Mas, em alguns locais onde há estudos, sabe-se que a caça para uso como isca ou a matança indiscriminada de botos causam diminuição nas populações. 

 Qual é a principal ameaça ao animal? Por quê?
A espécie encontra diversas ameaças no Brasil, entre elas o uso de suas carcaças como isca em atividades de pesca e a matança indiscriminada devido a lendas regionais, conflitos com atividades de pesca (captura e morte acidental em redes), aumento no tráfego de embarcações, perda e degradação de seu habitat, mortalidade em projetos de prospecção de petróleo e construção de hidrovias e barragens e aumento de atividades turísticas potencialmente causadoras de impactos negativos aos animais. Na região de Manacapuru (AM), os botos são extremamente indesejados, até mesmo odiados, sendo considerados uma peste devido ao fato de atrapalharem atividades de pesca. A mais recente e talvez maior ameaça é seu uso como isca para a pesca da piracatinga, peixe que tem sido muito exportado para a Colômbia na última década.

Sobre o contato entre boto e turista, há uma maneira ideal para que essa relação ocorra? Quais são os pontos negativos e positivos dessa atividade?
O maior ponto positivo é o fato de os botos serem vistos como atrativo turístico, percebidos pela população local como fonte de renda. Isso pode mudar a percepção negativa que as pessoas da região têm da espécie. Os maiores pontos negativos são o fato de os animais comerem peixes mortos (quando só comem vivos), o risco de contraírem doenças de humanos e diversas alterações comportamentais, como aumento na agressividade, mudanças na estrutura social e dependência de alimento dado pelo ser humano. Fora os riscos para os seres humanos, que podem se machucar, pegar doenças e acreditar que condicionar animais silvestres ao contato humano através da alimentação artificial é correto. Seria necessário implementar um programa de educação para que turistas aprendam a apreciar somente comportamentos naturais, tornando-se parte de atividade turística sustentável. 
 

ESTADO DE MINAS
15/10/2012 



Teste identifica falhas genéticas em dois dias - Bruna Sensêve‏

Indicado para recém-nascidos internados em UTIs, exame mapeia todos os genes em busca de problemas que possam resultar em doenças 
 

Bruna Sensêve


As doenças genéticas estão entre as causas mais comuns de mortalidade em unidades de terapia intensiva (UTIs) neonatais. A dificuldade para a diferenciação dos sintomas e um diagnóstico rápido é o fator de maior angústia de pais e médicos na urgência em salvar recém-nascidos. Também focados no atendimento emergencial dessas crianças, pesquisadores americanos desenvolveram a primeira aplicação clínica do sequenciamento genômico completo. Em cerca de 50 horas, a técnica é capaz de mapear todos os genes do bebê e apontar a possível causa genética para graves manifestações clínicas. O teste tenta ainda atravessar o primeiro obstáculo entre os 13 anos de desenvolvimento do Projeto Genoma e a aplicação clínica das descobertas de forma rápida e bastante cara.

“Todos nós já ouvimos, talvez por 15 anos, que o sequenciamento completo do genoma estava prestes a transformar a prática médica. Para aqueles que, como nós, têm decodificado genomas, isso tem sido fenomenalmente frustrante por realmente não ter acontecido até agora”, afirma o principal autor do estudo, Stephen Kingsmore, diretor do Centro para a Medicina Genômica Pediátrica no Hospital Infantil da Misericórdia, na cidade do Kansas (EUA). Ele aponta três motivos para o atraso. O primeiro e mais importante deles é a lentidão do processo, seguido da complexidade de interpretação do genoma. Juntos, os dois fatores impedem um prazo de processamento relevante para que os dados genéticos possam ser aproveitados em pacientes graves. Outro ponto é o altíssimo custo dos procedimentos.

Os cientistas envolvidos no desenvolvimento do exame contam que, atualmente, a análise completa do genoma de um recém-nascido feita por eles custa quase US$ 14 mil, aproximadamente R$ 28 mil. Isso se o maquinário tecnológico estiver disponível no país. A esse valor somam-se os gastos necessários para manter um bebê na UTI, cerca de US$ 8 mil nos Estados Unidos e entre R$ 5 e R$ 10 mil no Brasil por dia de permanência. Há ainda os medicamentos e outros procedimentos, o que deixa o exame distante da realidade da maioria da população mundial.

Experimentos Publicado recentemente na revista Science Translational Medicine, o estudo baseia-se em testes experimentais feitos com famílias voluntárias durante cerca de seis meses no Hospital Infantil de Misericórdia, nos Estados Unidos. No total, participaram do diagnóstico sete bebês, sendo dois para uma análise retrospectiva (após o óbito) e cinco para o diagnóstico em tempo real. Em apenas um deles, não foi possível obter o resultado definitivo para identificação do distúrbio genético.

Os pesquisadores detalham no artigo que o motivo principal teria sido a descrição errada e muito limitada dos sintomas da criança. Essas primeiras manifestações clínicas observadas pelos médicos neonatais são inseridas em um software e vão delimitar qual parte do genoma sequenciado pode estar relacionada a uma possível mutação. A criança em questão não resistiu aos efeitos da doença genética e morreu antes que um diagnóstico preciso pudesse ser feito. A equipe de pesquisadores ressalta que, ainda assim, a identificação da doença genética é extremamente importante.

A neonatologista Carol Saunders trabalha diretamente com as famílias que participaram do estudo. Segundo ela, a principal angústia dos pais é saber se existe risco de que a desordem genética ocorra de novo e qual seria a exata probabilidade disso. “Ter o diagnóstico definitivo é útil para as famílias, mesmo nos casos em que não existe um tratamento eficaz. Saber o defeito molecular pode fornecer algumas informações sobre o prognóstico e a família sabe o que esperar”, analisa.

A ferramenta permite também que pediatras, neonatologistas e geneticistas façam um aconselhamento genético preciso às famílias sobre o risco de ter outro bebê afetado. Dessa forma, é possível tomar decisões sobre o futuro reprodutivo. “Por exemplo, trabalhamos com uma família para encontrar um diagnóstico (no bebê). Agora, os pais conhecem o gene que causou dois nascimentos com distúrbios nas únicas duas gestações que tiveram”, relata Saunders. Segundo a especialista, os pais buscam agora o diagnóstico de manifestações do gene para que possam ter um bebê saudável.

Dificuldades no Brasil Nos Estados Unidos, estima-se que 20% das mortes em UTIs neonatais ocorram por desordens genéticas que acometem as crianças desde o nascimento. Segundo a presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, Lavinia Schuler Faccini, o Brasil caminha para índices ainda mais altos com o aprimoramento dos centros de saúde e do atendimento médico. 

Desordens genéticas já são consideradas a segunda maior causa de morte em UTIs neonatais brasileiras. A primeira, segundo Lavinia, tem origens desconhecidas. Ela acredita, no entanto, que a dificuldade de diagnóstico dos males genéticos em recém-nascidos provavelmente insere essas desordens também nesse primeiro grupo.

“Antigamente, as infecções eram os problemas que mais levavam crianças às UTIs. Agora, países de alto poder aquisitivo já resolveram essas questões e as desordens genéticas surgiram como uma das maiores causas da mortalidade perinatal. No Brasil, o número de infecções está caindo e começamos a nos aproximar disso”, avalia Faccini. Ela detalha que, em maternidades especializadas, principalmente na Região Sul do país, é possível chegar a 40% das mortes neonatais causadas por distúrbios genéticos. 

Mesmo com o aumento da incidência, os pais brasileiros precisarão esperar certo tempo para a tecnologia chegar à América Latina. Não há previsão para isso. Os pesquisadores pretendem oferecer o serviço ao público americano até o fim do ano. “Achamos que poderemos oferecer esse serviço para os médicos do país (EUA) que possam nos enviar uma amostra de DNA dos recém-nascidos. Isso ocorrerá em algum momento no início do ano que vem”, prevê Kingsmore. 


SAIBA MAIS: Patologias monogênicas
O exame relatado pelos pesquisadores americanos trata apenas de doenças consideradas monogênicas, ou seja, causadas por um único gene. Segundo os médicos do Hospital Pediátrico de Misericórdia, do Kansas (EUA), as primeiras análises escolheram especificamente doenças genéticas em que a herança familiar age de forma clara. Eles consideram que as doenças monogênicas são as únicas em que as mutações são deterministas. Se você tem a mutação, tem a doença. No entanto, um grupo internacional de cientistas publicou, no mês passado, um artigo que mostra a variabilidade genética das doenças e aponta a possibilidade de distúrbios primeiramente atribuídos a um único gene serem, na verdade, manifestações de um conjunto de distúrbios genéticos localizados em diferentes partes do DNA. Stephen Kingsmore, principal autor do estudo americano, acredita, no entanto, na linha escolhida pelo seu grupo para desvendar os mistérios da genética. “Acho que olhar para doenças de um único gene é o caminho para desenvolver o nosso conhecimento”, avalia. 

ESTADO DE MINAS
15/10/2012

A força redentora da música - Carlos Alberto Di Franco

Frequentemente, a informação veiculada na mídia provoca um travo na alma. Violência, crise, trânsito caótico e péssima qualidade da educação e da saúde, pautas recorrentes nos cadernos de cidade, compõem um mosaico com pouca luz e muitas sombras. A sociedade desenhada no noticiário parece refém do vírus da morbidez. Crimes, aberrações e desvios de conduta desfilam na passarela da imprensa. A notícia positiva, tão verdadeira quanto a informação negativa, é uma surpresa, quase um fato inusitado. Redescobri, no entanto, que a sociedade violenta não inibe comoventes iniciativas de solidariedade. Foi o que pude constatar em recente apresentação da Camerata Bachiana do maestro João Carlos Martins em evento em comemoração aos 40 anos da Escola de Direito do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS) em São Paulo.

Jovens nascidos nas zonas sombrias da exclusão, mas carregados de talento e esperança, mostraram que a solidariedade pode virar o jogo e transformar a vida. O jovem tenor Jean Willian, criado pelos avós, ele boia-fria e ela faxineira, foi aplaudido de pé. Descoberto pela Fundação Bachiana, apoiado e estimulado pelo maestro João Carlos Martins, Willian está estudando em Milão. Seu nome, estou certo, ocupará lugar de destaque no cenário da música erudita mundial. 

A Fundação Bachiana apostou na música como instrumento de inclusão social. E os resultados comovem e impressionam. A Bachiana Filarmônica Sesi é uma formidável ferramenta de democratização da música clássica. Recebida calorosamente pela crítica e pelo público no Carnegie Hall e no Lincoln Center, no coração de Nova York, a Bachiana é um belo exemplo da força redentora da música. Jovens infratores da Fundação Casa escreveram, recentemente, uma carta ao maestro João Carlos Martins. Conheceram, todos, o fundo do poço das drogas e da criminalidade, mas foram tocados pela magia da música. “A música venceu o crime.” Assim terminava o recado dos adolescentes ao maestro. Impressionante! 

Iniciativas, inúmeras, algumas quase anônimas e cimentadas na força da solidariedade, comprovam o papel redentor da arte. Basta pensar no magnífico trabalho de resgate social desenvolvido pela Fundação Bachiana. Favelas, frequentemente, ocupam a crônica policial. A música, no entanto, transportou o universo das periferias esquecidas para as páginas de cultura. Jovens, abandonados pelos governos e teoricamente predestinados para uma vida de crime, drogas, prostituição, miséria e dor, encontraram na música o passaporte para o resgate da dignidade e da esperança.

Jornais, frequentemente dominados pelo noticiário enfadonho do país oficial e pautados pela síndrome do negativismo, não têm “olhos de ver”. Iniciativas que mereceriam manchetes sucumbem à força do declaratório. Reportagens brilhantes, iluminadoras de iniciativas que constroem o país real, morrem na burocracia de um jornalismo que se distancia da vida e, consequentemente, dos seus leitores. O negativismo gratuito é, sem dúvida, uma das deformações da nossa profissão. “O rabo abana o cachorro” – o comentário, frequentemente esgrimido em seminários e debates sobre a imprensa, esconde uma tentativa de ocultar algo que nos incomoda: nossa enorme incapacidade de trabalhar em tempos de normalidade.

“Quando nada acontece”, dizia Guimarães Rosa, “há um milagre que não estamos vendo”. O jornalista de talento sabe descobrir a grande matéria que se esconde no aparente lusco-fusco do dia a dia. A mídia, argumentam os aguerridos defensores do jornalismo realidade, retrata a vida como ela é. Teria, contudo, o cotidiano do brasileiro médio nada além de tamanhas e tão frequentes manifestações de violência e de tristeza? Penso que não. 

Por mais que a sociedade tenha mudado, tenho a certeza de que o pretenso realismo que se alardeia para sustentar o excesso de violência e mau gosto que, diariamente, desaba sobre leitores e telespectadores não retrata a realidade vivida pela maioria esmagadora da população. Na verdade, ainda há muita gente que cultua os valores éticos, os quais dão sentido e dignidade ao ato de viver. A grandeza humana bem vale uma matéria.

 Carlos Alberto Di FrancoDoutor em comunicação pela Universidade de Navarra (Espanha)

ESTADO DE MINAS
15/10/2012 

DIA DO PROFESSOR » Eles criam para ensinar - Márcia Maria Cruz‏

Educadores de diferentes escolas mineiras inovam em processos pedagógicos. Vale usar música, teatro e até costura para que alunos se envolvam mais com as disciplinas 
 

Márcia Maria Cruz
 

Alunos do Colégio Santa Marcelina, na Pampulha, tiveram aulas de corte e bordado para estudar a ditadura militar 

A composição Sonho impossível, de Chico Buarque, é apresentada na afinação certa, apesar de as estudantes Maria Gabriela Vieira, Lígia Alves, ambas de 13 anos, e Nayla Guerra, de 14, não conseguirem conter as lágrimas enquanto cantam. Os versos “lutar quando é fácil ceder. Vencer o inimigo invencível. Negar quando a regra é vencer. Sofrer a tortura implacável. Romper a incabível prisão” não soam apenas como rimas ricas para elas, mas são a expressão de um dos maiores compositores brasileiros, eternizada também na voz de Maria Bethania, sobre período de repressão no país. A paixão das adolescentes por Chico, Geraldo Vandré, Caetano Veloso e Gilberto Gil nasceu durante aulas de aprofundamento em história, ministradas pela professora da disciplina no Colégio Santa Marcelina Kátia Peifer, de 46. Ontem, o EM mostrou o perfil de docentes que são referência em Minas. Hoje, data em que se comemora o Dia do Professor, a reportagem traz exemplos de processos pedagógicos que rendem frutos.

Kátia mudou toda a rotina da escola quando propôs ensinar história usando métodos nada convencionais: levou para a sala de aula um violão, desafiou os alunos a soltarem a voz e a veia de interpretação. Também os colocou diante de uma máquina de costura para confeccionarem figurino para uma instalação, que iria usar música e teatro para falar sobre o período da ditadura militar no Brasil. A inspiração para as roupas foram as coleções da estilista mineira Zuzu Angel, que lutou contra o assassinato do filho, Stuart Angel Jones, por meio da moda. “Muita gente pensa que o Colégio Santa Marcelina é uma escola rígida, a Kátia veio inovar. A escola toda se envolveu, do 7º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio. Ela é uma professora diferente”, afirma Maria Gabriela. No começo, apenas três se interessaram pelo grupo de aprofundamento em história, uma vez que a maioria deu prioridade a matérias como matemática. Aos poucos, o grupo atraiu a atenção dos colegas e o trabalho começou a dialogar com outras disciplinas. 

HISTÓRIA Ao criar figurinos para a peça de teatro, as meninas costuravam os pássaros que marcaram as roupas produzidas por Zuzu. Nos corredores, cantarolavam as músicas de Chico e comentavam os documentários nas horas do intervalo. Não teve quem não quisesse descobrir que história estava sendo construída por aquela turma empolgada. “Alguns alunos odiavam história, mas passaram a gostar”, lembra Laís Nogueira, de 13. Sentados em roda ao lado de Kátia, sempre com o violão à mão, todos querem falar da experiência. “O diferencial da Kátia é que ela mostra os vários lados da história”, garante Anna Carolina Coutinho. 

Ao chegar à sala de aula, Kátia começa com um sonoro “bom-dia, vida!”. Procura saber as particularidades de cada um de seus alunos e inclusive extrapola a relação para as mídias sociais. A professora descobriu o prazer em ensinar quando fazia o magistério e teve o primeiro encontro com a obra de Paulo Freire. “Pensei que queria ensinar. Entendi que ser professor é ter uma função social”, pontua. Mas nem tudo são flores. Kátia reconhece que a relação entre aluno e professor não deve ser apenas de consensos. “Faço questão de preservar a identidade de cada um. Garanto a palavra a todos”, completa. 

DIDÁTICA Kátia se destaca pela inovação nas práticas pedagógicas. Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG) Amarilis Coelho Coragem, a didática é o modo que se organiza o conteúdo e o conhecimento na sala, de maneira a proporcionar o encontro entre professor e aluno. “A arte abre canal para a construção de uma relação de sensibilidade, com espaço para a subjetividade. Não tem resposta única. Com arte, cada caso é um caso. Não tem certo ou errado”, diz. A especialista lembra que nem sempre é fácil gerenciar essa forma de dar aula, mas a ousadia na implementação da didática pode dar abertura para a promoção do aluno. 

É o que faz a professora do Colégio Dona Clara, Gisele Pedrosa, de 42. Conhecida entre os alunos como Tia Fadinha, ela acredita que, por meio de músicas, teatro e artes plásticas consegue se comunicar melhor com seus alunos. Meninos com idades de 3 a 10 anos são apresentados a obras clássicas como os Doze girassóis numa jarra, de Van Gogh. Na sequência, são instigados a fazer releituras dos quadros e com isso aprendem noções de cor, perspectiva e de história das escolas de arte. “Não são cópias. Os meninos são muito autônomos. Até por isso, alguns demoram para se soltar.” A professora pede aos alunos que construam um portfólio com imagens, ingressos e fotos de todas atividades de entretenimento de que participam extraclasse, seja uma visita ao zoológico, a um museu ou a uma exposição de quadros.

Gisele Pedrosa, a Tia Fadinha, usa música, teatro e artes plásticas para se comunicar com os alunos

Aprendizado com prazer

A professora Cássia Regina Puff de Oliveira, de 39 anos, pega todos os folhetos de ofertas de supermercados e shoppings que encontra pela frente. Também não deixa escapar lacres de latas de refrigerantes. Tudo é material didático. A partir dos produtos apresentados nas propagandas, trabalha com seus alunos a aplicação de unidades de medidas, como litro, quilo, metro entre outros. Também ensina multiplicação e outras raciocínios lógicos ao propor problemas a partir dos anúncios. 

Cássia leciona na Escola Municipal Desembargador Loreto Ribeiro de Abreu, no Bairro Ribeiro de Abreu, na Região Nordeste de Belo Horizonte. A escola está em uma área de vulnerabilidade social e ela procura oferecer aos seus alunos a mesma oportunidade de aprendizado de crianças que estudam em instituições privadas. “A matemática tem que chegar até eles de forma prazerosa”, diz. Para isso, procura relacionar fórmulas e contas à vida dos estudantes. As turmas são falantes, mas isso para ela não significa indisciplina. “A turma que conversa muito não engole qualquer coisa. Por isso, tenho que inovar. Se eles compram a ideia, o trabalho será superbacana”, diz.

Em São Tiago, no Campo das Vertentes, a atenção de Alda Paiva de Castro, de 35, e Ronaldo Antônio de Castro, de 37, às demandas dos alunos fez com que a Escola Estadual Afonso Pena Júnior criasse um projeto de robótica. Sob a orientação dos dois professores, que são casados, a equipe Café-com-Byte-Júnior conquistou dois troféus em uma das maiores competições de robótica do mundo: a RoboCup 2012, realizada no México, em junho. 

Para conseguir os primeiros kits para montagem de robôs (que custam em média R$ 1,8 mil), os professores mobilizaram toda a comunidade escolar para arrecadar fundos. Construíram o primeiro e participaram de uma competição em Varginha. Como os alunos se destacaram, o projeto se ampliou, o grupo participou de outras competições e o número de alunos passou de quatro para 26 no período desde que o projeto começou. 


ENTREVISTA: AMARILIS COELHO CORAGEM, PROFESSORA DA fACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS gERAIS

“Vale investir na docência”

Amarilis Coelho Coragem é professora de outras professoras na Faculdade de Educação da UFMG. A experiência em sala de aula a levou a pesquisar o discurso didático do educador de artes visuais no seu doutorado. A pesquisa aponta caminhos sobre como tornar o encontro entre alunos e professores favorável para a construção do conhecimento.

A docência é uma vocação?
A vocação é algo construído. Não tinha intenção de ser professora. Não me achava desenvolta. Foi na sala de aula que me descobri. Quando se dedica a alguma coisa e tem uma resposta positiva, satisfatória, você investe. O sucesso de uma aula é dividido entre professor e aluno. Não é somente o professor responsável e alvo de todas as glórias de uma aula bem-sucedida. É uma relação. Daí que a adequação da proposta da aula é importante. O professor deve se organizar levando em conta o interesse e necessidade do aluno. Certamente, terá um bom diálogo.

Como é ser professora de professoras?
É muito interessante. Muitos vão ao curso de formação sem a intenção de ser professora. Matriculam na licenciatura em um segundo momento da vida. Muitas vezes querem formação universitária, mas sem intenção de ir para a sala de aula. Procuro mostrar a necessidade e a função social do trabalho de professor. Tenho tido bons resultados ao final do curso. Muitos me dizem: ‘Poxa, professora, estou gostando de ensinar.’ O melhor resultado é quando ele, um futuro professor, vê valor nisso. Percebe que a docência é algo importante e que vale investir.

A relação entre aluno é professor é pautada na ética e em valores. Como construir essa relação no dia a dia?
Procurando respeitar o diferente. Nunca vou para a sala com uma proposta fechada. A relação se constrói ao longo do curso. Levo propostas e não modelos. 

Alguns professores se queixam de não ser valorizados. Você concorda com isso?
Não do ponto de vista das relações pessoais. Sinto que o bom professor cria amigos para sempre. Também constrói respeito e admiração. Muitos alunos dizem que o professor mudou a vida dele. Ser professor é ter oportunidade de marcar a vida das pessoas. É uma grande responsabilidade.


ESTADO DE MINAS
15/10/2012 

Ah! Há a à - Caetano Veloso

Marcos Bagno propõe, no curto trecho que dedica, em seu livro de mil páginas, à crase do artigo “a” com a preposição “a”, que simplesmente passemos a pôr um acento grave na preposição. Pronto. Ele se demora em explicar vários outros casos de crase mas faz questão de mostrar posudo desprezo pelo caso mais famoso, mais popular, aquele que é conhecido como a crase. Qualquer pessoa medianamente letrada fala na crase. A frase atribuída a Otto Lara Resende (mas que parece que foi criada por Ferreira Gullar), “A crase não foi feita para humilhar ninguém”, faz sucesso porque todo mundo quer saber o que é a crase, quais as “regras da crase”. Enquanto vários professores de gramática tentam orientar os milhões de sedentos de saber, o sociolinguista prefere despachar o assunto e subscrever certas placas de estrada (peças postas ali pelo poder público) que exibem coisas como “Retorno à 500 metros”. Recebo e-mails com indicação indevida de crase enviados por jornalistas, doutores e universitários. Encontrei ocorrências nos dois livros que estou lendo ao mesmo tempo: a autobiografia de Edir Macedo e as entrevistas de Mangabeira para a série Encontros. Na dúvida, o inseguro revisor ou missivista pespega um acento grave em qualquer “a” que não seja um mero artigo. Às vezes até mesmo quando ele é um mero artigo.

Parece que a opção de Bagno se deve a um desejo de livrar quem escreve de preocupar-se com o assunto. Apegando-se a um texto de Alencar (em que se fala de uma “operação intelectual que se opera com rapidez”), ele propõe que a gente vá “à São Paulo” como quem vai à Bahia. Um comentário (mais bem escrito do que o de José de Alencar) de Millôr Fernandes sobre a inexistência fonética do “a craseado” no Brasil leva Bagno ainda mais a fingir que solta as amarras. Para mim ele soa esnobe. Os gramáticos ou estudantes desejosos de entender como funciona a língua — coisa que Bagno deve ter sido desde sempre, dada a minúcia com que ele entra em observações históricas, lógicas, filosóficas, sociais, econômicas e políticas sobre as formas de expressão verbal —, esses gramáticos e estudantes, eu dizia, chegaram com amor ao entendimento da crase dos “as”. Não podem ser apontados como os que desejam parecer estar acima do comum dos mortais. Quem quer mostrar que um maior conhecimento científico o leva a se sentir superior a quem ele julga que se sente superior deve ser reconhecido como, no mínimo, igualmente presunçoso.

Nos livros que estou acabando de ler, encontrei também casos tipo “leis que no final do século XIX tinham sido superadas há mais de 10 anos”. Ou seja, quem escreve não tem em mente que esse “há” aí é um verbo — se tivesse, o conjugaria no passado. O “há” passou a funcionar como uma preposição. Há tanta gente que se enrola com a crase dos “as” quanto as que se enrolam com “daqui a cem anos” e “isso se passou há muito tempo”. Recebo o mesmo número de e-mails de gente letrada com confusão entre “a” e “há” quanto entre “a” e “à”. Seria o caso de considerar o “há” de “há muito tempo” como uma preposição e grafá-lo, à Bagno-Alencar, com um acento grave: “ouço essa conversa à décadas”. Aliás, já encontrei isso também.

Bagno propõe que se ensine aos alunos as formas tidas como corretas pela gramática convencional, mas como opção alternativa, que o aluno usará se e quando achar necessário. As forças centrífugas da
mudança constante da língua são mais intensas do que as forças centrípetas da organização gramatical. Assim, num país desesperado por letramento, aconselha- se que professores ensinem complexas relações hierárquicas entre formas que ele já usa e formas que só conhecerá na escola.

Além de tudo isso, desagrada-me que a conjugação dos verbos na segunda pessoa do plural seja tida como algo morto por só se encontrar na Bíblia. Conheço enorme número de pessoas que só leem a Bíblia. E que o fazem sempre. Se a solenidade de que se reveste a religião levou os editores do Livro Sagrado, em português como em inglês, a manter velharias como o “vós” e o “thy”, os milhões de receptores das palavras reveladas deveriam entrar na conta sociológica do linguista de maneira diferente.

Afora isso, comove-me ouvir Chrissie Hynde cantando “The Empty Boat”. Sonhei ou tive a visão de uma menina loura no adro da igreja no dia do aniversário de minha mãe? Ela me dizia algo sobre daqui a três anos. Como achá-la no Brasil, no mundo? Cartas à redação. Bagno dá uma dica boa sobre a crase. Tenho uma melhor.

Ele ressalta palavra feminina. Mas eu quero que meu aluno entenda. Sugiro pensar em “ao”. E confesso que prefiro “aa” (que se usa na fala, para esclarecer) a um “à” indiscriminado.


O GLOBO
14/10/2012