domingo, 14 de julho de 2013

Escapismo - CAETANO VELOSO


 O GLOBO

14/07/2013

Pedro Almodóvar, ao optar escancaradamente pela comédia nesse seu “Amantes passageiros”, disse que era natural querer rir das coisas, quando a Espanha está com problemas tão difíceis de resolver

Quando eu escrevia crítica de cinema em Salvador — e só andava com cinéfilos — a gente ouvia sempre que, durante a depressão dos anos 1930, Hollywood se voltou para as comédias: era um modo de fugir da realidade sombria. Pedro Almodóvar, ao optar escancaradamente pela comédia nesse seu “Amantes passageiros”, disse que era natural querer rir das coisas, quando a Espanha está com problemas tão difíceis de resolver (embora ele tenha enfatizado o aspecto alegórico da trama em que um punhado de gente não sabe onde vai parar). O filme foi mal recebido pela crítica, tanto aqui quanto na Espanha natal — e, quem sabe, em outras paragens —, mas eu fui assistir e gostei.

Não diria que tenho motivos para defendê-lo criticamente. Apenas gostei de como ele é filmado. As cores são fotografadas de modo incrivelmente elegante. O movimento de câmera que vai da visão do avião de meio-perfil (e em contre-plongé) até a espiral que gira no centro da turbina é muito bonito — e essa firmeza de composição, por incrível que pareça, se mantém por todo o filme. É verdade que a gente ri mais no que resulta engraçado em meio aos melodramas do diretor do que nesta comédia que finge gritar “eu sou uma comédia” desde as primeiras imagens. Digo que finge porque a estilização irrealista e as caracterizações caricatas são pensadas para dar esse grito, mas o gosto refinado com que elas são realizadas (um ultracolorido diferente do ultracolorido dos outros filmes de Almodóvar) o amortece. Não de todo — e seguramente não de modo desagradável. Ao contrário: os debruados das poltronas do avião e das roupas dos aeromoços compõem sempre visões relaxantes e doces ao olhar. Mas a unidade com que isso se mantém através do filme, invadindo ruas e casas de Madri, aonde a película desce através de telefonemas de passageiros que falam com amantes em terra (na parte que talvez seja a mais quente de um filme suavemente frio), não ajuda a produzir gargalhadas.

Estou em Curitiba, onde acabo de fazer show num teatro muito bom de acústica. Depois saí para jantar com os caras da banda. Na TV do restaurante (é muito comum hoje em dia restaurantes terem aparelhos de televisão nas salas) vi imagens de pneus sendo queimados em estradas, líderes do MTST e da Força Sindical dando entrevistas, reincidência de truculência da polícia carioca, nesta quinta-feira de greve geral. Os pensamentos que se esboçavam em minha mente diante dessas imagens me faziam lembrar da tese do escapismo do cinema diante de crises. Pensei em Almodóvar e no que senti diante do filme dele. Mas pensei no sucesso de “Minha mãe é uma peça”, filme muito mais engraçado do que o do meu amigo espanhol, que vem reafirmando a tendência do público brasileiro para fruir comédias. Terá tal tendência prefigurado uma crise que parecia não existir faz um mês? Que, na verdade, parecia impossível de eclodir? Nada no filme de Pedro me deixou triste. Não é um bom filme, mas, mais importante, não é um filme mau. É bondoso. Mas tudo me deixa alegre no filme de André Pellenz. As risadas espontâneas que ele provoca, o sucesso que faz, a surpresa que é ver Paulo Gustavo fazer uma mulher na telona e nunca o fato de ser um cara travestido se sobrepor à credibilidade das situações, mesmo as mais naturalistas. E Niterói! Que beleza ver Niterói tão poeticamente captada num filme! Fiquei emocionado e me lembrei de quando conheci Paulo Gustavo, por intermédio de Luana Piovani, atuando ao lado de Fábio Porchat. E, bem depois, de quando vi “Minha mãe é uma peça” ainda no teatro, aonde fui mais de uma vez com meu filho Tom, que era ainda bem pequenininho e adorava o espetáculo (hoje ele tem 16 anos: já foi ver o filme e me disse que gostou e achou engraçadaço). Tudo isso me enternece. Se é para escapar das preocupações que a pergunta sobre a entrada dos sindicatos e dos grupos sociais organizados na onda de protestos põe para os políticos, as novas cores de Almodóvar servem de calmante, mas as falas da mãe niteroiense (e de seus irresistíveis filhos, amigos, parentes, ex-marido e desafetos) nos arrancam da cadeira e nos sacodem (no sentido pernambucano da palavra) os grilos fora.

No caso Ecad, só digo que Fernando Brant, na reunião, sentou-se com conforto, ao lado da advogada que foi com ele, em posição central, com visão ampla de todos os que estavam na sala. Inverdade o que ele diz quanto a isso no texto que espalhou. Eu já disse isso a ele. Tendo agora a crer que a ida de minha turma a Brasília afina mais com o clamor das ruas do que contrasta com ele. Mas não quero tratar aqui de coisas complicadas. Só quero pensar em Paulo Gustavo, Niterói, Tom e o cinema que faz rir.


O capitão Horácio - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

ESTADÃO - 14/07/2013



Tive um caso com o capitão Horácio por anos. Até resolver me curar

— Esta é a minha esposa, Rute...

— Humm. Simpática. — Ela é uma mulher fantástica. Estamos casados há 25 anos.

— E estes são...— Os filhos. Gustavo e Leinha. Foi a Leinha que nos deu a única neta. Olha só, que amor...

— Que beleza!

— Maria Rita. Três anos. A queridinha do vovô.

— E este?

— Ah, este é o capitão Horácio.— Capitão Horácio?— O amor da minha vida.

— O quê?— Do tempo em que eu era homossexual. Tivemos um caso durante sete anos, até eu resolver me curar.

— Você era homossexual e se curou?— Sim. Foram sete anos intensos com o capitão Horácio, mas senti que aquilo não era pra mim.

— E como você se curou?— Não foi fácil. Procurei psicólogos, psicanalistas, grupos de apoio, orientação religiosa... Finalmente me sugeriram que experimentasse a homeopatia.

— Homeopatia?!— Chá de cipó amarelo. — E deu certo?— Tiro e queda.— Esse chá...

— Tomo todos os dias, depois do almoço. O cipó amarelo vem da Amazônia. Os índios tomam desde pequenos, para prevenir.

— Mas...você carrega uma foto do capitão Horácio na carteira...

— Foi um período importante na minha vida, que eu não quero esquecer.— E como foi a separação?

— Amigável. Ele era uma pessoa muito distinta. Espiritual. E atlético, maratonista. Ou era, quando nos conhecemos.

— Não foi um rompimento traumático, então?

— Não. Ele entendeu minha posição, nos despedimos... E nunca mais se viram?

— Nunca. Não sei que fim ele levou. Ou que cara tem hoje. Certamente não é mais a da foto.

— Quer dizer que existe cura para o homosexualismo? — Existe. As pessoas ficam fazendo pouco desse deputado Feliciano, mas existe. Chá de cipó amarelo da Amazônia. Dou a receita para quem quiser.

— E é tiro e queda?

— Tiro e queda.

domingo, 7 de julho de 2013

Dois cafés e a conta com... Betty Faria


PAULO SANT’ANA - A insônia do poeta

ZERO HORA - 07/07/2013

O poeta Luiz de Miranda, morador de POA, manda-me uma mensagem comovente. Ele passa por intransponíveis dificuldades, relacionadas com sua velhice e pobreza.

É de cortar o coração. Sua mensagem para mim é bem curta, por isso vou transcrevê-la, tenho a finalidade de que alguém o ajude, o poder público ou a sociedade.

Eis o apelo lancinante de Luiz de Miranda, que não tem emprego nem aposentadoria:

“Querido Paulo Sant’Ana. Estou vivendo em completa miséria. Vivo há vários anos fazendo uma refeição por dia. Escolhi jantar. Não tenho nenhuma fonte de renda, pois poesia não dá dinheiro. Agora, sou candidato ao Nobel de Literatura 2013, o primeiro gaúcho num Nobel. Estou sofrendo há algum tempo uma ação de despejo, a qualquer momento posso ser colocado na rua.

O prefeito Fortunati ficou de me dar uma pensão mensal, mas se passaram mais de dois anos e nada aconteceu. O governo do Estado nada fez. Tenho problema de saúde: diabetes, pressão alta, insônia crônica. A cada mês, tenho que arrumar dinheiro com meus amigos. Devo ser o único candidato a um Nobel que não tem onde comer e morar. Mando-te o abraço amigo do sul do mundo. (ass.) Luiz de Miranda.”.

Não há poeta no mundo que produza mais textos que Luiz de Miranda, sua capacidade de poetar é admirável, em quantidade ele bate todos os outros poetas. E em qualidade se equipara a muitos deles e supera tantos e tantos.

Não sei, mas imagino o que o poeta está passando, disse-me na mensagem que só faz uma refeição por dia, que está sendo despejado. A vida é mesmo cruel, um poeta semifaminto, ameaçado de ser expulso do lar que mantém a custo, doente, resistindo, resistindo e sempre poetando.

Se fosse moço, teria esperança, mas com 68 anos de idade não compreendo como ainda não lhe faltaram as forças para sobreviver.

Suponho que Luiz de Miranda passa por essa dificuldade física, material e espiritual porque se entregou loucamente à poesia durante toda a sua vida e não teve previdência quanto a seu futuro.

Há poetas, como Miranda, que não se importam com seu destino, querem é dar vazão à sua inspiração. E escrevem, escrevem, cantam como uma cigarra da fábula, sem precaver-se com o inverno.

Tenho esperança que alguém o ajude, o prefeito, os vereadores, os deputados estaduais.

Ele é um conterrâneo que merecia pelo menos um lar decente com duas refeições por dia.

Será que comovo com esta coluna algumas autoridades?

Porto Alegre e o Rio Grande não podem deixar finar-se um poeta sem o nosso auxílio.

Ritmo - Caetano Veloso


O GLOBO

07/07/2013

Decidi aderir à campanha de apoio ao PLS129 porque, engolfado pelo entusiasmo de tantos colegas, percebi que a situação amadurecera muito em muito pouco tempo

Os compositores e cantores que vieram a Brasília para apoiar o PLS 129 estavam muito cheios de vida. De Roberto Carlos a Emicida, de Nando Reis a Gaby Amarantos, de Rogério Flausino a Carlinhos Brown, todos pareciam dotados de uma grande energia, o que para mim era surpreendente. Suponho que é porque eu próprio tenha estado tanto tempo remoendo dúvidas e buscando uma concórdia entre os colegas que sentem a necessidade de questionar o Ecad e os que atuam nas sociedades arrrecadadoras a que ele serve de guarda-chuva. Dias antes, no Rio, Lenine me disse que minha dúvida é que o tinha motivado a agir na direção da aprovação do PLS. Ontem, na sala da presidência do Senado, ele, utilizando a melodia do refrão da irresistível canção de Roberto, liderava o coro: “Esse Ecad sou eu”.

Decidi aderir à campanha porque, engolfado pelo entusiasmo de tantos colegas, percebi que a situação amadurecera muito em muito pouco tempo: insatisfações acumuladas chegaram a um ponto que meus chamados ao diálogo se tornaram irrealistas. Cheguei a conseguir ouvir as duas partes discutindo. Mas a essa altura já estava mais dedicado a entender os motivos dos questionamentos do que a deplorar a discórdia entre amigos criadores. Temos no Brasil uma entidade que, tendo sido criada por lei, detém o monopólio da arrecadação e distribuição de direitos. Essa entidade foi criada juntamente com o Conselho Nacional de Direito Autoral, que a fiscalizava. Este foi extinto (sob Collor) e nada veio ocupar o seu lugar.
Ou seja: há um monopólio sem regulação. Daí, zero transparência. O grande pleito dos autores não é receber mais, é poder saber por que recebem o que recebem — e, mais sério, por que tantos colegas seus não recebem nada. Para mim, esse tema ressurgiu quando, ao receber um manifesto intitulado “Vivo de música” — em que compositores eram convidados a assinar um texto em defesa cega do Ecad, contra a condenação, de parte do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, por formação de cartel — senti, sem conversar com ninguém sobre o assunto, que devia esperar, pensar mais, enfim, não assinar automaticamente. Não foi uma intuição sobrenatural. Foi instantânea lembrança de várias conversas mantidas ao longo dos anos. Nesse clima, recebi um e-mail de Fernando Salem com apenas uma pergunta: “Você entende isso?” e a cópia de um artigo de Sérgio Ricardo, dizendo que a suspeita de que a condenação do Ecad pelo Cade fosse do interesse de grandes grupos de mídia não poderia impedi-lo de reafirmar as queixas que ele próprio tinha contra o órgão de arrecadação. E indicava a leitura de um texto de Ivan Lins, em que este dava conta de quanto desaprovava o Ecad em seus modos de operar. Fiquei de orelha em pé.

A ministra Marta pediu ao senador Randolfe (que eu já conhecia da campanha do Freixo e que foi estimulado pelo grupo Fora do Eixo) que contactasse Paula Lavigne. O senador foi a ela com membros do Gap (Leoni, Fernanda Abreu, Tim Rescala, Frejat e outros). Depois recebi Marta no meu camarim em Sampa. Todas as conversas que se seguiram foram muito racionais por parte deles e muito inquietantes para mim: havia colegas nos dois lados. Eu desejava que os dois grupos dialogassem antes de eu me posicionar. E foi isso que escrevi aqui na coluna. O mero fato de eu dizer que não tinha assinado o manifesto e de sugerir tal diálogo fez com que, de um lado, a turma do Gap marcasse encontros para explicar que se tratava de exigir transparência, e, de outro, a turma do Ecad me enviasse e-mails alertando contra o perigo de “estatização” e de “caos”.

Quando fui ao Senado (em cujo plenário ninguém faz silêncio, o que me causou mal-estar) e acompanhei meus amigos num encontro com a presidente Dilma, eu já estava seguro de que não havia risco de “estatização”: os artistas definirão a estrutura do órgão, e a presidente concorda que este tem de ser composto por maioria de autores.

Houve reuniões na casa de Gil e de Paula Lavigne. Chico Buarque, que tinha assinado o manifesto do Ecad, foi a três delas. Pensei que ele fosse ser meu companheiro de dúvidas e exigências intermináveis. Mas ele chegou em casa e pediu que seu nome fosse retirado do manifesto. Daí em diante só vi crescer a vontade de mudança. Djavan mostrou tanto entusiasmo que queria que fôssemos à Cinelândia e fizéssemos um show-protesto. As manifestações de rua ainda não tinham começado. Lenine acha que tem tudo a ver. Há quem tema o contrário. Penso no ritmo das coisas no tempo. Os Racionais MCs tiveram seus créditos retidos pelo Ecad. É hora de mudar.


Eu teria mesmo de vir a Brasília: tenho show marcado aqui hoje. Meu destino eu não traço.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Os órfãos no mundo político - Marcos Coimbra

Revista Carta Capital - 01/07/2013

 POR MARCOS COIMBRA


 A CLASSE MÉDIA ANTIPETISTA NÃO SE SENTE REPRESENTADA PELA OPOSIÇÃO.

Sua tentativa de controlar as ruas é prova desse vazio


 Enquanto perdem fôlego e amainam as manifestações que afetaram o País nas últimas semanas, está na hora de procurar entender seu significado. Uma das maiores dificulades para compreende-las está no fato de os protestos não terem sentido único, salvo talvez nos primórdios, quando usuários de transportes públicos foram às ruas em São Paulo para reclamar do aumento no preço das passagens, Naquele momento ainda tínhamos o cenário capaz de explicaras mobilizações sociais mais características: causa concreta, indivíduos diretamente afetados, reivindicações claras.As manifestações seguintes, muito se diz, foram novas. Diferentes, por exemplo, daquelas conduzidas pela direita em busca da deposição de João Goulart nos anos 60 do século passado.

Mas será que a "horizontalidade" e a "difusão" das atuais as tornam mesmo originais? Não terá existido, nas manifestações deste mês de junho, um segmento com um papel definidor análogo àquele dos anticomunistas e dos conservadores católicos nas marchas de 1964? Entre os muitos tipos presentes nas ruas, nenhum forneceu personalidade ao "movimento"?

Para identificar o sentido dos protestos de agora, temos o perfil mais típico dos participantes, suas bandeiras mais características e as reações mais comuns suscitadas.

Nada ilustra melhor a mudança do perfil socioeconômicodos manifestantes do que a imagem veiculada pela TV Globo nos primeiros jogos do Brasil na Copa das Confederações: madames vestidas a caráter e cheias de balangandãs com cartazes de apelo ao "fim da corrupção" e com propaganda de um endereço noTwitter. Os jovens tornados astros dos "insatisfeitos" no YouTube parecem seus filhos ou irmãos.

No conteúdo, o elemento central da "ideologia das ruas" foi a crítica à reprerentação políticae às instituições, particularmente os partidos políticos. Os manifestantes gritaram País afora não se sentirem representados por ninguém, foram à rua para denunciar os "políticos" e "fazer política com as próprias mãos". As vagas perorações em favor de "mais verbas para a educação e a saúde" ou contra os "gastos exagerados na Copa do Mundo" não passaram de pretextos para externar sua aversão ao sistema político e ao governo.

Quem monitorou as redes sociais durante esses dias percebeu: os defensores mais entusiastas das passeatas foramos antipetístas radicais. Esses se senti ram em íntima comunhão com os participantes e torceram para as manifestações escalarem a ponto de enfraquecer o governo e prejudicar as chances de reeleição de Dilma Rousseff.

Para dizer o óbvio, quem deu o sentido das manifestações foi a classe média antipetista, predominantemente de direita. Nem sempre, nem todos os participantes, mas em seu núcleo característico. Ou seja: embora tenham participado do movimento desde punks neonazistas até adolescentes apenas curiosos (e mesmo gente genuinamente progressista), seu rosto é nítido.

A classe média antipetista tem motivos reais para estar insatisfeita com a sua representação. Ao contrário do cidadão simpatizante do PT e de outros partidos de esquerda, eque majoritariamente aprova o governo, ela se sente mal representada.Faz tempo Fernando Henrique Cardoso lhe dá razão. Em texto de 2011, em que tentava explicar a vitória de Dilma e definia novos caminhos para a oposição, o ex-presidente propunha ao PSDB deixar o "povão" para o PT e procurar a classe média: "É a essa que as oposições devem dirigir suas mensagens prioritariamente". O partido precisava, segundo FHC, "mergulhar na vida cotidiana" e encontrar "1igações orgânicas com grupos que expressem as dificuldades e anseios do homem comum" (leia-se de classe média).

Lembrava a existência de "toda uma gama de classes médias", empresários jovens, profissionais, "novas classes possuidoras", "ausentes do jogo político-partidário, mas não desconectadas das redes de internet, Facebook, YouTube, Twitter etc." A considerar seu "pragmatismo", o discurso para atraí-las não deveria ser "institucional", mas centrado em temas como a corrupção, o trânsito, os problemas urbanos, os serviços públicos.

FHC queria uma oposição pronta a suscitar o interesse da classe média e que lhe "oferecesse alternativas". Se não conseguisse ser "uma alternativa viável de poder, u m caminho preparado por lideranças nas quais confie", nem sequer adiantaria "se a fagulha da insatisfação produzisse um curto-circuito".

Falou, mas não fez. Nesta, como em outras oportunidades, as oposições brasileiras mostraram-se mais competentes na conversa do que na ação. Perceberam os desafios, mas não lhes deram resposta.

Foram de José Serra, quando precisavam renovar-se. Apresentam Aécio Neves como continuador da "herança de FHC". Nada fizeram para "organizar-se pelos meios eletrônicos, dando vida a debates verdadeiros sobre os temas de interesse dessas camadas", como sugeria o ex-presidente.Presas de seus paradoxos, as oposições criaram a crise de representação dos setores da sociedade a quem pretendiam (e deveriam) expressar. Talvez principalmente tenha sido a impaciência das classes médias antipetístas com a oposição que as levou às ruas.

Depois, é claro, de um ano de ataque da mídia conservadora ao governo. Seus estrategistas acharam ter conseguido, por meio de incursões cirúrgicas, eliminar apenas as lideranças do PT. Terminaram, porém, por ferir valores fundamentais da democracia.

FHC PEDIA AOS SEUS UM MERGULHO "NA VIDA COTIDIANA" E A BUSCA DE "LIGAÇÕES ORGÂNICAS COM GRUPOS QUE EXPRESSEM AS DIFICULDADES E OS ANSEIOS DO HOMEM COMUM". COMO DE COSTUME. NÃO FOI OUVIDO
 

As ruas empurram o poder - CYNARA MENEZES

Revista Carta Capital - 01/07/2013

Dilma Rousseff exerce a Política, o Congresso vota vários projetos e até o Supremo se mobiliza

Sem foco, pobres de conteúdo, “moda”, desvirtuadas pela direita ou infiltradas por vândalos. É possível apresentar todo tipo de crítica às manifestações das úl ti mas semanas, mas é inegável o efeito das ruas nos gabinetes da política. Se o tal gigante acordou, como dizia m os cartazes em inúmeras cidades, foi para dar uma chacoalhada e tirar da letargia principalmente o Congresso Nacional. O recesso do meio do ano foi cancelado e os parlamentares entraram em um frenesi legislativo a ponto de aprovar medidas às pencas sem ma iores reflexões a respeito de seus resultados.
Projetos de Lei e Propostas de Emendas Constitucionais que se arrastavam nas duas casas do Legislativo havia meses, anos até, saíram da gaveta. Para não ficar atrás no esforço cívico, o Supremo Tribunal Federal mandou prender o de putado federal Natan Donadon (PMDB-RO), condenado em 2010 por peculato e formação de quadrilha. A presidenta Dilma Rousseff, após um pronunciamento em cadeia nacional, reuniu-se com líderes dos protestos em São Paulo, sindicalistas, representantes da sociedade civil, governadores, prefeitos de capitais eaté integrantes da oposição. Lançou uma série de medidas e tenta dar forma aos desejos das ruas. Sua principal proposta é um plebiscito para definir as bases de uma reforma do sistema político e eleitoral.


Na terça-feira 25, os senadores mal saíram da reunião da Comissão de Constituição e Justiça e foram obrigados a correr ao plenário, onde o presidente da Casa, Renan Calheiros, lia atropeladamente os 16 itens que pretendia colocar na pauta de votação, "em resposta à sociedade”. No d ia seguinte, um fato inédito: o Senado não parou para assistir à vitória do Brasil sobre o Uruguai na Copa das Confederações. Preferiu votar os projetos Listados por Calheiros nas áreas de Saúde, Educação, Combate à Corrupção. Mobilidade Urbana e Segurança Pública, todos diretamente conectados com os protestos.


A PEC dno Trabalho Escravo, 11 anos de tramitação e sempre barrada pela bancada ruralista, foi aprovada na CC J e vai a plenário. O Senado aprovou ainda o projeto que transforma corrupçãoe homicídio em crimes hediondos, uma inutilidade legal, pois o problema está em levar corruptos e corruptores a julgamento. Os royalties do petróleo serão investidos em educação (75%) e saúde (25%). Na Câmara, a CCJ aprovou o fim das votações secretas durante processos de cassação de parlamentares e a PEC de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP) que iguala o transporte público aos direitos sociais na Constituição, ao lado de educação e saúde, abrindo caminho para a gratuidade. A polêmica PEC 37, limitadora do poder de investigação do Ministério Público, sucumbiu.


Outro reflexo das manifestações foi a criação de CPIs do Transporte Público em quatro cidades até agora: São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Maringá. Em Santa Mar ia (RS), manifest antes ocuparam a Câmara de Vereadores ao vir à tona uma gravação em que integrantes da CPI para apurar o incêndio na boate Kiss, que vitimou 242 jovens em janeiro, sugeriam a "blindagem" do prefeito Cezar Schirmer. O protesto pedia a renúncia dos vereadores flagrados na gravação.
O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, cancelou a bilionária licitação dos ônibus para discuti r com a população e prometeu abrir as planilhas dos custos do transporte. “ Não podemos assinar contratos de 15 anos sem participação popular. O momento em que estamos exige a participação da sociedade.” O governador Geraldo Alckmin, que se havia unido ao prefeito e voltado atrás no reajuste da tari fia de metrô e trens, cancelou o aumento de 6,5% no valor do pedágio das estradas paulistas previsto para julho,


Na próxima terça-feira 2, Dilma Rousseffvaí enviar ao Congresso uma mensagem com ao menos dois itens fundamentais no plebiscito da reforma política: financiamento público, privado ou misto de campanha e o modelo de voto (distrital, distrital misto ou proporcional). O governo propõe um calendário apertado. O Pla nalto gostaria de realizar plebiscito em 5 de outubro, assim as mudanças valeriam para as eleições de 2014. Antes disso, o Congresso precisa, porém, transformar a mensagem em decreto legislativo e aprovar. Seriam necessárias no mínimo duas semanas de campanha antes do voto popular.


Embora o Planalto tenha anunciado na quinta-feirüa 27 um acordo inicial com a base aliada, a resistência na Câmara dos Deputados ao plebiscito é forte. Os parlamentares mais influentes, aliados inclusive, preferem o referendo: o Congresso primeiro aprovaria a lei e só depois a população opinaria se concorda ou d iscord ade cada item. Para o governo, não funcionaria, pois a reforma política está na pauta faz muitos anos e sofre feroz resistência no Parlamento. O último projeto, de autoria do deputado petista Henrique Fontana, nunca foi debatido em plenário, apesar de sua inegável qualidade. Fontana defende a votação de sua proposta, seguida por um referendo.
Com o anúncio na segunda-feira 24, e posterior desistência, da proposta de uma Assembleia Constituinte exclusiva para cuidar da reforma política, Dilma atraiu a resistência de parte do Congresso, à exceção dos partidos de esquerda. A ideia foi descrita pela oposição como um "golpe", um arroubo chavista. Fernando Hen rique Cardoso mais uma vez esqueceu as próprias ideias e atacou a Constituinte, embora tenha proposto algo muito semelhante em 1999.0 PMDB também não gostou. Resultado: Ca1hei ros deu uma canja ao senador mineiro Aécio Neves, autorizado a discursar por uma hora e meia enquanto o presidente do Senado presidia a sessão. O GloboNews, canal de notícias da Globo, deu outra mão: transmitiu ao vivo boa parte do discurso do tucano, centrado em críticas duras à presidenta.


Ironicamente, a única capital onde os protestos mantêm vigor (40 mil na quarta 26) é a Belo Horizonte do senador mineiro. E a notícia não é boa para a oposição. Uma pesquisa entre os manifestantes realizada pelo instituto Innovare mostrou que os mineiros nas ruas têm rejeição menor à presidenta do que ao governador tucano Antonio Anastasia e ao prefeito de Belo Horizonte. Mareio Lacerda, do PSB. Enquanto Dilma teve sua administração considerada negativa por 47,7% dos entrevistados, Anastasia foi rejeitado por 70,4% e Lacerda por 71,6%.


a quarta-feira 26, do lado de fora do Mineirão, uma manifestação descambou para uma batalha campal após um grupo ter rompido a barreira de proteção que fixava um limile imposto pela PM em torno do estádio. Envoltos pela fumaça do gás lacrimogêneo, manifestantes com o rosto encoberto invadiram uma concessionária e atearam fogo em vários veículos no meio da rua. No centro de BH. correria e con fusão.


A BASE ALIADA NÃO RECEBEU BEM A PROPOSTA DO PLEBISCITO PARA A REFORMA POLÍTICA E AMEAÇA RETALIAR. CONTRA DILMA HÁ QUEM QUEIRA ACABAR COM A REELEIÇÃO EM 2014


A mídia, por seu lado, segue ao sabor das ondas. No início condenou os protestos e chamou seus participantes de “vândalos”. Embarcou depois em uma “onda cívica” com o claro intuito de desestabilizar o governo federal. Diante da impossibilidade de domar o cavalo brabo das ruas conforme seus interesses, passou a emtir sinais de cansaço. Ou talvez tenha recuado por temer a possibilidade de o Palácio do Planalto transformar o limão em limonada. Em editoriais, os principais jornais do País condenaram ora o açodamento das decisões tomadas em Brasília, ora o “populismo” de algumas medidas e a própria reforma política. “Pesquisas feitas entre manifestantes, antes da reunião de segunda, não detectaram o desejo por uma reforma política”, contrapôs O Globo. Para o diário da família Marinho, seria “contorcionismo” aliar a reforma a algum dos itens das man i festações. Aparentemente os editoriais ignoram um fato: segundo especialistas, a reforma política, e em especial o financiamento público de campanha, seria fundamental para coibir a corrupção, tão lembrada nas manifestações.


Quem saiu em defesa da reforma foi o presidente do STF, Joaquim Barbosa. Após encontro com Dilma, Barbosa colocou em dúvida a capacidade do Congresso de aprovar a reforma. “Em um momento de crise grave como o atual, a propositura de reformas via emenda constitucional seria viável? Essas propostas já não tramitam no Congresso Nacional há anos? Houve em algum momento demonstração de vontade política de levar adiante essas reformas?” O presidente do Supremo fez algumas sugestões, entre elas a possibilidade de revogação do mandato (recall) e, curioso de sua parte, de candidaturas avulsas, independentes de partido. Barbosa e o vice-presidente da República, Michel Temer, demoveram Dilma da ideia da Constituinte. A discussão sobre a cons titucionalidade da proposta poderia durar meses, argumentaram. A presidenta recuou, mas vai insistir no plebiscito.


m efeito colateral do sopro das ruas foi desnudar de vez a resistência da base na Câmara a Dilma, não só por parte do PMDB como do próprio PT. As ameaças agora começam a ser feitas à luz do dia. O líder do PP, Arthur Lyra, acenou com a proposta do fim da reeleição em 2014, prejudicando-a, e o líder do PMDB, Eduardo Cunha, foi além e defendeu a inclusão do debate sobre o sistema de governo em uma possível consulta popular. “Se estivéssemos no parlamentarismo, este governo já teria caído.” Uma fonte do Palácio compara a crise atual com o Congresso àquela vivida por Lula quando explodiu a denúncia do chamado “mensalão”, em 2005. Naquela época, a saída encontrada por Lula foi se reaproximar dos movi mentos sociais. Nos últimos dias, Dilma, frequentemente criticada por não receber entidades representativas da sociedade, abriu as portas do Planalto aos jovens do Movimento Passe Livre, organizador dos primeiros protestos contra o aumento da tarifa em São Paulo. Estiveram com ela ainda representantes dos moradores de rua, da Central Única das Favelas, dos Trabalhadores Sem-Teto e da Pastoral Carcerária. Pode ser a hora de reencontrar velhos aliados.

 

O significado ainda obscuro - Mino Carta

Revista Carta Capital - 01/07/2013

 Só mesmo a direita reacionária afirma suas certezas

QUEM ENTENDE que as manifestações dos últimos dez ou mais dias mudam o Brasil? Justifica-se ainda a incerteza quanto ao real sign ificado do protesto, mas a direita já proclama a sua verdade. Deste ponto de vista, exemplares são Veja e Epoca da semana passada. Esmeram-se em edições retumbantes, uma histórica, outra especial, e invocam o suporte do "auriverde pendão de minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança", desfraldado em suas capas. E o conluio da retórica, do pieguismo e da h ipocrisia, bem ao contrário dos versos de Castro Alves, extraídos do poema O Navio Negreiro, repto contra acasa-grande e seus desmandos e prepotências.

Não é preciso ser de esquerda para entender que este nosso trópico tanto se inclina facilmente à festa quanto à ilusão. Para não cair no engodo, basta a razão, mercadoria raríssima, no entanto, nas nossas latitudes, como diz
Thomaz Wood na sua magistral coluna, publicada à página 43. A razão, fruto resplandecente do Iluminismo, do qual brotou a Revolução Francesa, aquela capaz de desencadear a Idade Moderna. A revolução que, 224 anos depois, ainda não aconteceu por aqui.

E nem haveria de se dar no país da casa-grande e da senzala, ainda de pé, implacáveis na sua permanência. A burguesia da França de 1789 soube envolver o povo no seu projeto de derrubar a monarquia por direito divi no, e a aristocracia e o alto clero que a cercavam. A turba serviu a suas intenções e, cumprida a tarefa voltou a ser povão. Ainda assim, aprendeu algo novo, e mais tarde tira ria proveito do aprendizado. Não é por este caminho, em todo caso, que o protesto das ruas nativas se move, mesmo porque os alvos são vagos e até insondáveis, a não ser aqueles do começo do movimento, quando a periferia elegeuo aumento das passagens de ônibus como simbolo dos maus-tratos que, em geral, o Estado 1 he impõe. O descaso ignóbil quelhe reserva.

Há uma questão contingente, visível a olho nu. O crescente descolamento das instituições ditas democráticas, dos poderes do Estado, do governo e dos partidos, daqueles que são interesses e necessidades da nação, da maioria dos cidadãos, conscientes ou não da cidadania. A difusa insatisfação, popular e nem tanto, talvez não passe de uma sensação nebulosa, mas se explica pela falta de comando e, portanto, de referência. De sancta sanctorum a quem recorrer. Anunciada a falência dos partidos, clamorosa a do PT. O verdadeiro partido de oposição é a mí-dianativa, Como tal age, àvontade diante da condescendência de um governo incapaz de reagir à altura, por motivos desconhecidos, às agressões diuturnas.

Parece até vocação de mulher de apache na sua mais inspirada exibição na Place Pigalle. Perfeito no papel de ministro do plim-plim, Paulo Bernardo. Nas páginas amarelas da já citada edição histórica da Veja, o ministro aparece, com direito a foto em pose de varão de Plutarco, para anunciar o propósito de acabar de vez com "a obsessão do PT de censurar aimprensa". Quem sabe o nosso herói seja apartidário.

Ora, ora, o ministro endossa a tese da mídia nativa, e ilie oferece o indispensável (decisivo?) apoio, enquanto a Secom. entidade inexistente em países mais democráticos e civilizados, distribui à mídia a publicidade governista com generosidade invulgar, especialmente às Organizações Globo, premiadas anualmente com mais de 900 milhões de reais.

A liberdade reclamada pelo jornalismo pátrio é a liberdade de fazer o que bem entende, inclusive inventa r. omitir e mentir. E o que diz Paulo Bernardo? Que assim seja. interessante observar que na última pági na da mesma edição da nau capitania da frota abri liana leio a seguinte interpretação das passeatas: “O povo (?) está dizendo que este governo de farsa montado por Lula há mais de dez anos rouba, mente, desperdiça, não trabalha, trapaceia, entrega-se aos escroques, cobra cada vez mais imposto e fornece serviços públicos vergonhoso. Suponho que, na opinião de Veja, o governo de Fernando Henrique tenha trafegado por rotas opostas e fornecido ao povo serviços públicos primorosos.

Na opinião de CarlaCapital, a própria democratização, por ora apenas esboçada, e com timidez, traria a solução ao limitar os alcances dos oligopólios midiáticos por meio de leis eficazes, hoje inatingíveis por obra de um Congresso totalmente comprometido, sem falar de ministros como Paulo Bernardo. Há quem diga que a concentração é o destino do poder jornalístico no mundo todo, mesmo assim o Reino Unido não hesitou recentemente em expulsar das terras britânicas Rupert Murdoch, o grande concentrador.

As considerações devem induzir quem concorda com elas a uma reflexão mais racional a respeito da situação que vivemos, de sorte a evitar as costumeiras decepções. Sem esquecer que os problemas contingentes plantam raízes no imanente. Ou seja, são próprios do país da casa-grande e da senzala, são o fruto de trés séculos e meio de escravidão ainda vivos embora enverguem trajes aparentemente contemporâneos. Tal é a questão que inquietava Castro Alves e, até hoje, serpenteia nas vísceras do Brasil. E vem à tona para impedir que a nação se una e compacte, a não ser na hora de aplaudir Neymar. Contra, aliás, as conveniências de uma burguesia sempre pronta a afirmar sua fé no capitalismo, sem saber do que se trata.