quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Waldemar e Consuelo: unidos pela História - Maria Stella de Azevedo Santos

A Tade /BA - 23/10/2013

O oposto de morte é nascimento. Vida é uma palavra que não tem antônimo (...) A vida tem passagens de uma etapa para outra; tem um eterno recomeço

Maria Stella de Azevedo Santos
Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá
opoafonja@gmail.com





Sempre se fala em morte como contrário de vida. Entretanto, com um pouco de reflexão se perceberá que o oposto de morte é nascimento. Vida é uma palavra que não tem antônimo, mesmo que os dicionários insistam em dar para esta palavra algo que a ela se oponha. A vida não tem começo, nem fim; tem passagens de uma etapa para outra; tem um eterno recomeço; um eterno retorno. Não falo assim por ter uma visão religiosa do existir, a ciência ainda nos dias de hoje diz: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Digo isso para poder falar de dois membros da Academia de Letras da Bahia: a confreira Consuelo Novais Sampaio, que deixou a cadeira 40 da referida instituição no dia 18 deste mês, e de um dos meus antecessores na cadeira 33, Waldemar Magalhães Mattos.

Para que um povo possa construir seu presente e planejar o futuro, é imprescindível que conheça sua história. Essa foi uma das missões que Consuelo Novais Sampaio realizou durante sua estadia aqui na Terra. Ela não se contentou apenas em fazer o curso superior em História. Ela fez mestrado, doutorado e pós-doutorado nessa ciência humana. Serviu a nosso estado sendo diretora do Centro de Memória da Bahia, além de ter registrado a história do local que é berço de nosso país. Consuelo Novais escreveu: Canudos: Cartas para o Barão; Pinto de Aguiar – Audacioso Inovador; O Poder Legislativo da Bahia – Primeira República 1889-1930; 50 Anos de Urbanização – Salvador da Bahia no Século XIX. Consuelo está viva em nossa memória, relembrando a todos que não podemos esquecer-nos de pessoas e obras que contribuíram para fortalecer nossa sociedade.

Sigo então cumprindo o compromisso que assumi no dia em que fui empossada como acadêmica: de levar ao público o conhecimento, ou melhor, o reconhecimento de algumas pessoas que são consideradas, por nós baianos, imortais. Faço questão de reafirmar o que disse naquele dia: Somos todos imortais! Contudo, quero aqui esclarecer que umimortal, de verdade, é aquele que se tornou um indivíduo coletivo, pois deixou algo de proveitoso não apenas para sua família, mas para a sociedade em que viveu, como foi o caso de Waldemar Magalhães Mattos, sobre o qual escrevi em meu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia.

Ele nasceu na cidade de Entre Rios, em 13 de setembro de 1917, e viveu na Terra por 86 anos. Era homem de números e letras. Bacharel em Ciências Contábeis, ingressou na carreira literária em 1940
pelo caminho jornalístico. O conjunto de sua obra é de um valor histórico imprescindível para a compreensão da Bahia e, consequentemente, do Brasil do século XIX. Tanto que em 2011, século XXI, portanto, dois de seus livros foram reeditados: Panorama Econômico da Bahia e O Palácio da Associação Comercial da Bahia, no qualWaldemar Mattos narra o baile que comemorou, em 1911, o centenário da Associação Comercial da Bahia, fundada em 15 de Julho de 1811:
 “Suntuoso no seu deslumbramento inexcedível, cheio de encantadora poesia e fulgurante pompa. Sem contestação, foi uma cerimônia de destaque excepcional, cujas impressões os anais das crônicas baianas guardarão para sempre".

Waldemar Mattos também escreveu o livro A Bahia de Castro Alves e foi na sede da Associação Comercial da Bahia que o conclamado poeta dos escravos, na verdade poeta dos fracos e oprimidos, fez sua última declamação pública. Na tarde do dia 10 de fevereiro de 1871, apenas cinco meses antes de deixar esta vida, Castro Alves recitou o poema No meeting du Comité du Pain durante uma reunião filantrópica promovida pela colônia francesa em benefício das crianças desvalidas da Guerra Franco-Prussiana.

Waldemar Mattos ligou-se ao patrono da cadeira 33 ao escrever o livro A Bahia de Castro Alves. E ligou-se a mim, atual ocupante desta honrosa cadeira, por ter ele escrito sobre dona Francisca de Sande, a primeira enfermeira do Brasil. Afinal, eu hoje sou Mãe Stella, uma iyalorixá que orienta as pessoas no sentido de cuidarem do espírito, mas um dia fui Maria Stella de Azevedo Santos, uma enfermeira que orientava sobre os cuidados com o corpo físico.


MÃE STELLA ESCREVE NA 4-FEIRA, QUINZENALMENTE

Uma cabeça cheia de drama - Tom Cardoso

VALOR ECONÕMICO - 18/10/2013

Tom Cardoso

 Lula / Lula


"Eu quero erro! Eu quero erro! Eu quero erro!" Os métodos da diretora Amora Mautner são conhecidos - e temidos - no Projac, o centro de produção da Rede Globo. Uma de suas táticas, para extrair o máximo de cada ator, é levá-lo ao erro, livrá-lo de qualquer condicionamento. Para chegar lá, ela costuma conduzir o set de gravação em voz alta, sob efeito de energéticos, quase em transe - quanto maior o caos, melhor. Quase sempre dá certo. "Eu detesto ator 'pronto' - considero o Sean Penn o pior ator do mundo, um mala", diz Amora, diante de um prato de sopa de legumes. Meia hora antes, ela transformara a sala do seu confortável apartamento no Leblon, o lugar escolhido por ela para este "À Mesa com o Valor", na extensão de um estúdio da Globo, mas sem, claro, o método do erro. Marisete, sua secretária, é quem tinha a missão de deixar a mesa pronta e impecável para o jantar.

Amora chegou do Projac, vinda da longínqua Barra da Tijuca, distância que não foi suficiente para tirá-lo do "transe". Elétrica, a diretora atravessou a sala em direção à cozinha perguntando se o penne com tomate e manjericão já estava pronto, se o vinho era mantido na temperatura certa, onde o repórter e o fotógrafo se sentariam, por que as taças não eram de cristal e o que o regime Detox, a dieta da moda, lhe reservara para o jantar (era a substanciosa sopa de legumes).

O repórter não sabia o que era "Detox" - para espanto de Amora. "Só você e meu pai não sabem. É coisa de intelectual", diz. O pai da diretora é o compositor Jorge Mautner, autor de "Maracatu Atômico", parceiro de Caetano Veloso e Gilberto Gil, o poeta do Kaos, com "K", não o caos profetizado pela racional e ao mesmo tempo irascível diretora. Mautner é zen - Amora inquieta, geminiana, instável. Não que pai e filha sejam totalmente antípodas. "Somos muito diferentes, mas parecidos em traços importantes, que moldam o meu jeito de viver até hoje", conta. Quais? "Somos livres. Não nos importamos com a opinião dos outros." E as diferenças? "Ele é satisfeito com a vida interna dele, passa boa parte do dia lendo, meditando - eu sou caótica, difícil me fazer parar."

Quando Amora decidiu fazer um teste para trabalhar na Rede Globo, aos 20 e poucos anos, o pai foi contra. "A TV vai empobrecê-la. Vai deixar de ler um livro para ler texto de novela?", disse, na época. Hoje, Mautner é fã incondicional da diretora Amora - e de novelas, desde que sejam dirigidas pela filha.

"Eu criei uma nova linguagem, menos naturalista, tenho total consciência disso. As pessoas dizem que sou metida, mas é isso mesmo"


Mautner, assim como muitos brasileiros, não perdeu um só capítulo de "Avenida Brasil", telenovela exibida no ano passado que oxigenou o gênero ao introduzir conceitos de séries americanas e trazer para o centro da trama personagens da nova classe média brasileira. Amora, a diretora, e o autor, João Emanuel Carneiro, deram, juntos, vida à suburbana família Tufão, o núcleo central e responsável pela espantosa repercussão do folhetim. "Quando recebi o texto do João, achei, de cara, inovador, diferente, e tinha, como diretora, de fazer que os atores assimilassem toda aquele frescor", relata. O processo começou com a escolha - também em conjunto com Carneiro e os outros diretores da trama, Ricardo Waddington e José Luiz Villamarin - do elenco de atores e com uma rápida imersão no universo popular, que incluiu uma noite num baile charme, em Madureira. "Em dois segundos o João já sabia o que queria. Ele é um gênio."

Já Amora preferiu estender o intensivão em classe C para a casa da babá de sua filha, também no subúrbio carioca, onde passou um fim de semana. "Foi incrível. Eu queria saber exatamente como era esse áudio meio 'Maracanã' de todo mundo falando ao mesmo tempo e se fazendo entender, enquanto a televisão está no último volume, o aparelho de som também e o carro da pamonha passa na rua."

Depois da ida ao baile charme, do fim de semana na casa da babá, Amora reviu alguns filmes de Frank Capra (1897-1991), em "que a situação da família era muito presente", e todo o seriado "Família Soprano", para resgatar o lado meio "nonsense", essa mistura da comédia com drama que os roteiristas da série fazem tão bem. "Eu tinha um texto muito bom, um elenco privilegiado nas mãos, precisava fazer a lição de casa como diretora e levar para o ar algo de fato inovador que, em outras novelas, por uma série de circunstâncias, eu não consegui estabelecer de forma tão profunda, essa sinergia entre texto, atores e direção", diz Amora. Acha que ela e Carneiro - e o elenco - chegaram lá. "Conseguimos reproduzir com bastante fidelidade o cotidiano dessas pessoas, sobretudo nas falas da família Tufão, um dos pontos altos da novela."

Amora também tem seu ritmo de falar - frenético e ao mesmo tempo articulado e seguro. Enquanto explica detalhes das gravações de "Joia Rara", telenovela das seis, dirigida por ela e exibida na Rede Globo, tenta convencer Marisete de que as taças trazidas pela secretária não são de cristal. As taças de vidro são recolhidas. Amora agora fala sobre o desejo de filmar o primeiro longa-metragem. Cinéfila, fã de John Cassavetes e Paul Thomas Anderson, ela se obriga a assistir, no mínimo, a três filmes por semana e alguns seriados. Quase nunca vê a programação da TV aberta. Por falta de tempo e para não "contaminar" o seu trabalho como diretora. "Eu sou ligada em neurociência e sei que o cérebro guarda tudo que a gente vê", diz. "Então, a quanto menos filme ruim eu assistir, melhor." O seu primeiro longa-metragem será inspirado num livro, que ela não revela qual é, mas está perto de comprar os direitos para o cinema. Amora pretende rodá-lo na Argentina, com atores locais - e falado em espanhol. Será um "filme de ator", de baixo orçamento, algo raro, segundo ela, na atual indústria cinematográfica, cada vez mais dominada pelos "blockbusters" e, no caso brasileiro, pelas comédias de costume. "Se for para dirigir uma comédia, um gênero em que não tenho o mínimo interesse, prefiro não fazer cinema."


Leo Pinheiro/Valor / Leo Pinheiro/Valor
Amora em casa, lugar que escolheu para receber o "Valor", diante da sopa de legumes: "Eu detesto ator 'pronto'. Considero o Sean Penn o pior ator do mundo, um mala"



Marisete, aflita, traz, enfim, as tão solicitadas taças. "Arrasou, amor", diz Amora. A diretora brinda com repórter e fotógrafo. "No cinema, sou da turma do baixo orçamento, mas aqui em casa não tem economia, não", brinca. A sopa de legumes permanece intocada. "Sempre fui de comer muito pouco à noite, prefiro comer bem no almoço." A comilança do almoço resumiu-se a um hambúrguer de quinua com grãos e o lanche da tarde, em meio às gravações, a um purê de couve-flor.

Amora sempre recorre ao regime quando volta de uma longa viagem, como era o caso, ou quando o trabalho não permite que ela mantenha uma alimentação equilibrada. Para quem virou diretora da Globo aos 23 anos, a rotina incessante de gravações, cercada de Big Mac e empadinhas, poderia transformá-la numa sedentária e bem-sucedida diretora global. Mas ela se policia. "Já estou sentindo que estou desinchando, estou leve", observa. Em forma, aparentando bem menos do que os 38 anos, Amora conseguiria facilmente uma participação em "Malhação", série de televisão para o público adolescente, mas isso seria tão impossível quanto vê-la dirigindo a continuação de "E aí... Comeu?", comédia brasileira que levou milhões de espectadores ao cinema.

"Nunca mais vou interpretar, aquela foi a pior experiência da minha vida", diz, referindo-se à sua participação na novela "Vamp", de Antônio Calmon, que foi ao ar em 1991, ano em que ela entrou, meio por acaso, na Globo. Ela vinha de uma experiência pouco produtiva como publicitária na produtora Conspiração Filmes e achava, ao contrário do pai, que a Globo era o lugar ideal para dar início ao sonho de virar diretora - na época, o cinema brasileiro definhava, com o fim da Embrafilme (empresa estatal, produtora e distribuidora de filmes, extinta em 1990 pelo governo do presidente Fernando Collor). A extrovertida Amora chegou chegando. Com uma amiga, decidiu fazer um teste na emissora. "Eu não me lembro muito bem - eu acho que me perguntaram algo sobre a Madonna -, só sei que gostaram tanto de mim que eu fui escalada para fazer a novela das sete seguinte", conta. "Eu não queria, nunca quis ser atriz, mas o Calmon cismou comigo." Foram longos oito meses de martírio (a novela se tornou um sucesso no horário das sete), que incluíram uma tentativa - de Amora - de matar o seu personagem. Em "Vamp", ela fazia a filha do casal interpretado por Paulo José e Zezé Polessa, que, em determinado momento da trama, perdiam a vida. "Eu aproveitei e liguei para o Calmon, sugerindo que eu morresse também." Quase foi morta - de verdade - pelo diretor. "Ele ficou possesso, furioso, disse que eu era muito abusada de ligar para ele e que ficaria de qualquer jeito até o fim da novela."


Um dos piores momentos de sua breve e traumática experiência de atriz foi quando se viu obrigada a chorar pela morte dos pais fictícios. "Eu não sei chorar, nunca vou saber, sou muito racional, tanto que tenho enorme dificuldade de trabalhar com atores que são como eu", revela. "Quando me vi chorando lágrimas de crocodilo em 'Vamp', tive a certeza que só havia um caminho a seguir: virar diretora." Era um caminho tortuoso almejar um cargo de diretora numa emissora onde todo o núcleo de dramaturgia, com raras exceções, era formado por homens, dos diretores à equipe técnica.

A primeira oportunidade surgiu com o convite, em 1999, para ser uma das assistentes de direção de Dennis Carvalho em "Caminho das Nuvens", novela do horário das seis, escrita por Euclydes Marinho e Letícia Dornelles, para trabalhar exclusivamente com atores adolescentes, como toda iniciante. Teve apenas uma oportunidade - após a falta de um dos diretores - de dirigir o protagonista da novela, Marco Nanini. Arrasou. "O Nanini ligou para o Dennis Carvalho, me elogiando. Foi o meu primeiro grande incentivo." O que não serviu, na prática, para mudar muito o seu status na emissora - ela continuava sendo uma "pirralha" de 23 anos metida a diretora. E ainda por cima mulher.

Em 2000, mais uma vez como diretora-assistente, Amora enfrentou a prova dos noves: trabalhar ao lado de Walter Avancini (1935-2000), um dos maiores diretores de telenovelas do país e famoso pelo estilo durão e pela pouca paciência com profissionais inexperientes. Avancini voltava à Globo depois de dirigir quatro novelas na extinta Rede Manchete e, ao contrário do que ocorria normalmente, quando o diretor forma o próprio núcleo de trabalho, a direção da Globo selecionou uma equipe para Avancini e incluiu Amora no quadro de diretores-assistentes da novela "O Cravo e a Rosa".

O Talma [diretor e produtor] costuma dizer que para 'fazer televisão tem que ser macho. Macho homem, macho mulher e macho gay'"

"Conversamos por telefone, foi tudo ótimo, mas quando ele me viu pessoalmente, já dentro do Projac, ficou parado, em silêncio, me medindo dos pés à cabeça, e disse: 'Você não tem idade para ser diretora'." A partir dali, segundo ela, o diretor iniciou uma luta. E armou um teste de fogo para a jovem diretora-assistente: gravar uma noturna "na fazenda", com os dois protagonistas. Era uma cena tecnicamente difícil de ser gravada e de grande importância para a novela. "Ele queria ter um pretexto para chegar à direção da emissora e dizer: 'Olha, gente, essa menina não tem condições de ser diretora da Rede Globo'."

Cinéfila desde a adolescência - na sala de estar há uma imensa prateleira abarrotada de livros sobre o tema e DVDs de longas dirigidos por nomes como Stanley Kubrick, Andrei Tarkovski e David Lynch -, Amora salvou-se da degola recorrendo-se às suas referências sobre cinema. Como a cena seria gravada numa fazenda, lembrou-se de cara de "Babe, o Porquinho Atrapalhado", filme infantil dirigido pelo australiano Chris Noonan, de grande apuro técnico (ganhou o Oscar na categoria de melhores efeitos especiais), e também dos longas dirigidos pelos irmãos Joel e Ethan Coen, famosos pela inovação nos enquadramentos de câmera.

A primeira providência de Amora foi pedir à produção da novela que alugasse uma lente J11, muito usada no cinema, que não era, no entanto, utilizada pelos diretores da emissora até então. "Eu passei a noite gravando e, quando cheguei à ilha de edição, às duas da manhã, para editar o material, quem estava lá: o Avancini", relata Amora. "Não era para estar ali naquela hora nem ver o material antes de ser editado, mas ele fez questão de passar a noite na edição para atestar a minha 'incompetência'." Foi nesse clima de "UFC", diz Amora, que Avancini assistiu à cena gravada pela assistente. A sessão terminou com o diretor estupefato, aplaudindo-a em pé, durante cinco minutos. O salário de Amora foi triplicado e logo ela entraria para o seleto primeiro time de diretores de núcleo da TV Globo, assumindo a direção geral de novelas como "Cama de Gato" (2000), "Cordel Encantado" (2011) até a consagração definitiva com "Avenida Brasil".

Ela diz ter aprendido tudo de televisão com os seus três mestres - Avancini, Ricardo Waddington e Guel Arraes -, mas reconhece a sua importância para a teledramaturgia brasileira. "Eu criei uma nova linguagem, menos naturalista, tenho total consciência disso", afirma. "As pessoas dizem que sou metida, mas é isso mesmo."

Amora saboreia um sorvete "de mil frutas", um mix de maçã, cenoura e gengibre, desprovido de leite, gordura e glúten. Ela conta que nem o reconhecimento profissional, garantido pelos nomes Avancini e Arraes, a livrou de alguns dissabores, sobretudo por ser mulher e exercer um cargo de chefia. Logo depois do aumento salarial em plena gravação de "O Cravo e a Rosa", Amora passou a ser "provocada" pela equipe técnica, formada por câmeras, contrarregras, operadores de áudio - todos homens. Até que um dia um dos câmeras fez um trocadilho grosseiro com seu nome. "Eu fiquei possessa, briguei com cem homens ao mesmo tempo - deveria entrar para o livro dos recordes." Foram quatro meses sem dirigir uma palavra para a equipe técnica. "O Roberto Talma [diretor e produtor] costuma dizer que para 'fazer televisão tem que ser macho. Macho homem, macho mulher e macho gay'."

Atualmente, Amora corre poucos riscos de sofrer "bullying" no Projac, não só pelos quase 20 anos de casa, e pelo respeito conquistado como diretora, mas também por se dar ao luxo de ter uma equipe própria, altamente entrosada, que já conhece - e não se assusta tanto com o ritmo caótico imposto pela diretora. Ela também gosta de trabalhar sempre com os mesmos atores, os que não chegam "prontos" de casa e estão abertos ao método do erro. Entre os preferidos, Marcos Caruso, Eliane Giardini e Débora Bloch. Recentemente, sites especializados em televisão publicaram que Amora teria vetado, por falta de "afinidade artística", uma conhecida atriz global para integrar o elenco de uma de suas novelas. Amora não desconversa. "Não tenho nada contra o trabalho dessa moça como atriz, mas ela não vai somar nada ao meu trabalho nem eu ao dela", diz. "Na minha equipe não tem nenhum burocrata - todos pensam e criam junto comigo."

O fim do jantar coincide com a chegada de alguns atores ao apartamento de Amora. É parte do elenco de "Joia Rara", que não veio fazer uma visita à diretora - e sim trabalhar. É, um ensaio está programado para começar às 23 horas num dos quartos do apartamento. O clima é de festa. "Eu amo todos os meus atores, tenho paixão por eles." O ator Carmo Dalla Vecchia, de olho na sopa de legumes, pergunta quanto tempo Amora ainda tem de regime. Nathalia Dill elogia a forma física da diretora, que aproveita para contar a todos os atores presentes que existe mais alguém, além de Jorge Mautner, que nunca ouviu falar de dieta Detox. O elenco cai na gargalhada. Repórter e fotógrafo se despedem, agradecem pelo saboroso penne com manjericão, enquanto Amora começa a reunir o elenco para o improvisado ensaio. Do elevador, é possível ouvir os gritos de "Eu quero erro! Eu quero erro!" É a moradora do quarto andar.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A bruxa nos relógios - Lya Luft

Revista Veja - 21/10/2013

Não falarei aqui do meu desânimo quanto à situação do país: cansei. Por algum breve tempo vou tirar férias dessa preocupação. Vou me concentrar no possível: os afetos, o trabalho, a vida. Então falo aqui de um tema que me fascina, sobre o qual muito tenho refletido e acabo de escrever um livro: a passagem do tempo.

Quando criança, eu achava que no relógio de parede do sobrado de uma de minhas avós, aquele que soava horas, meias horas e quartos de hora que me assustavam nas madrugadas insones em que eu eventualmente dormia lá. morava uma feiticeira que tricotava freneticamente, com agulhas de metal, tique-taque, tique-taque, tecendo em longas mantas o tempo da nossa vida.

Nessas reflexões, e observações, mais uma vez constatei o que todo mundo sabe: vivemos a idolatria da juventude — e do poder, do dinheiro, da beleza física e do prazer. Muitos gostariam de ficar para sempre embalsamados em seus 20 ou 30 anos. Ou ter aos 60, "alma jovem", o que acho muito discutível, pois deve ser bem melhor ter na maturidade ou na velhice uma alma adequada, o que não significa mofada e áspera.

Por que a juventude seria a melhor fase da vida, como se jovem não tivesse problemas e sofrimentos, doenças e perdas, e não lutasse contra enormes pressões da família, da turma, da sociedade, para ser e agir dessa ou daquela forma? O número de adolescentes que se suicidam ou tentam se matar é muito maior do que imaginamos.

Lembro que há muitos anos um adolescente conhecido se matou. Naquela ocasião, um menino de sua turma me disse em voz baixa, olho arregalado: "Ontem ainda a gente jogou bola junto na escola, e ele não disse nada, a gente não notou nada. Será que eu devia ter percebido, perguntado? Quem sabe podia ter ajudado?" (Havia medo e aflição em seu olhar. )

Tentei explicar que não cabia ninguém mais nesse buraco negro da alma do amigo morto, embora na nossa ilusão uma palavra boa, um colo, um abraço, um pequeno adiamento, teriam podido ajudar. Quem se mata espalha ao seu redor uma zona de culpa insensata: esse fica sendo seu triste legado, talvez sua cruel vingança inconsciente. Não notamos, não impedimos, nada fizemos, não porque não o amássemos, não nos importássemos, mas porque a gente é assim. Ou porque nada havia a ser feito, ser dito, apenas ser aceito com um rio de dúvidas e culpas pelo resto dos dias. A juventude para ele, como para tantos, não foi a melhor fase da vida: foi o fim dela, desesperado e triste.

Por outro lado. maturidade pode ter uma energia muito boa, pensamento e capacidade de trabalho estão no auge, os afetos mais sólidos e mais profundos, a capacidade de enfrentar problemas e compadecer-se dos outros mais refinada. Aliás, amadurecer devia ser refinar-se. Passada (ou abrandada) a insegurança juvenil, é possível desafiar conceitos que imperam, desatar alguns fios que nos enredam, limpar o pó desse uniforme de prisioneiros, deixar de lado as falas decoradas. a tirania do que temos de ser ou fazer. Pronunciar a nossa própria alforria: vai ser livre, vai ser você mesmo, vai tentar ser feliz — seja lá o que isso for.

Então podemos murmurar. gritar, cantar. Podemos até dançar. Não há marcações nem roteiro, mas a inquietante possibilidade de optar: cada minuto vale, o tempo que flui mostra o valor máximo das coisas mínimas — se eu parar para observar.

Portas continuam se abrindo: não apenas sobre salas de papelão pintado, mas sobre caminhos reais. Correndo pela floresta das fatalidades, encontramos clareiras de construir. De se renovar, não importa a cifra indicando a nossa idade. Descobrir o que afinal se quer é essencial. É raro. É possível. E quando alguém resolver não pagar mais o altíssimo tributo da acomodação, mas dar sentido à sua vida, verá que a bruxa dos relógios não é inteiramente má. E vai entender que o tempo não só nega e rouba com uma das mãos, mas, com a outra, oferece — até mesmo a possibilidade de, ao envelhecer, alargar ainda mais as varandas da alma.

domingo, 20 de outubro de 2013

Colunista Convidado: LUIZ RUFFATO - Agruras e prazeres


Falso dilema - Gustavo Binenbojm

O Globo - 20/10/2013

O debate que se instaurou no Brasil sobre a possibilidade de publicação de  obras biográficas sem o consenti- mento dos personagens biografados  tem sido pautado por uma falsa dicotomia entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Não é disso que se trata. A questão é mais singela do que um suposto dilema filosófico entre a livre circulação de ideias e informações e a soberania do individuo sobre sua vida privada.

O problema em discussão é o seguinte: tem o indivíduo o monopólio sobre a narrativa da sua trajetória de vida? Ao exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus herdeiros) para a divulgação de escritos a seu respeito, o art. 20 do Código Civil responde que sim. Note-se que não se está aqui a cogitar do conteúdo da obra; a autorização pode ou não ser concedida ao inteiro alvedrio do personagem retratado, sem relação necessária com a proteção de sua intimidade.

Cuida-se apenas do agrado ou desagrado do protagonista dos fatos com a versão do biógrafo. Embora editado já na plena vigência da Constituição democrática de 1988, o Código Civil (que é uma lei ordinária) criou um monopólio das autobiografias no país. Salvo com o beneplácito, quase sempre oneroso e parcial do biografado, as heterobiografias são um gênero virtualmente banido entre nós.

Além das cifras vultosas negociadas muitas vezes por puro interesse argentário, a lei em vigor gera ao menos dois outros efeitos nocivos ao chamado livre mercado de ideias:  ( 1) um efeito silenciador, que condena anos e anos de pesquisas sérias e responsáveis dos autores aos escaninhos das editoras;  (II) um efeito distorsivo, resultante da filtragem de documentos e depoimentos pelo crivo do biografado.  Surge então o argumento da preservação da vida privada dos biografados. Trata-se de um falso argumento.

Ninguém está a defender a prática de atos ilícitos por parte de pesquisadores, historiadores ou escritores. Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo.

O trabalho de pesquisa histórica se realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados.  Um jurista português me disse certa vez, com aquele raciocínio literal e cortante que é próprio da cultura lusitana: “O anonimato é para os anônimos!”. O raciocínio inverso, no entanto, não pode ser levado ao extremo.

É claro que pessoas públicas não têm a sua esfera de privacidade e intimidade reduzida a zero. Como todos nós, elas tomam decisões soberanas sobre as informações de sua vida privada que desejam tornar públicas ou manter sob reserva. Mas, como todos nós, elas não detêm controle absoluto sobre as informações que possam ser legalmente apuradas ou voluntariamente reveladas pelos seus detentores.  A vida de figuras públicas é parte integrante da historiografia social.

Contá-la é um direito de todos, independentemente de censura ou licença, como assegura a Constituição. Conhecê-la é uma forma de controle social sobre o poder e a influência que tais figuras exercem sobre todos os cidadãos. O mecanismo da autorização prévia, forma velada de censura privada, é simplesmente inconstitucional.

 Gustavo Binenbojm é professor da Faculdade dDireito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro  e advogado da Associação Nacional dos Editores de  Livros

Nos passos dos ‘lekes’, a transformação do Rio - RENÉE CASTELO BRANCO

O Globo 20/10/2013

Eles inventaram uma dança, criaram
uma nova noção de beleza e de amizade,
borraram as fronteiras entre o masculino
e o feminino. Estão por toda parte,
conectados através do Youtube e do Facebook;
não usam drogas e respeitam os pais. São os
“mulekes” do Passinho.

Moram em favelas e bairros populares do Rio
de Janeiro; formam uma rede que se estende
pelos municípios vizinhos. Criaram um modelo
alternativo para os jovens dos morros cariocas,
ainda atraídos pelo poder, glamour e dinheiro
aparentemente fácil dos traficantes.

Esguios e atléticos, estes filhos do funk riscam
o chão com passos que lembram os do samba,
frevo, charme, break, street dance, hip hop ou
até yoga e dribles de futebol. Gostam de imitar
gay. Uma homenagem ao estilo do precursor
morto a pancadas de madrugada na rua no Rio;
um episódio até hoje pouco esclarecido. Gambá
trabalhava como gesseiro. Era talentosíssimo e
abusava de uma estética invejada pelos dançarinos.
A partir daí o passinho cresceu. Como se
todo movimento precisasse de um mártir.

Poucas meninas “mandam” passinho. É um
mundo masculino. Elas torcem por eles, ajudam
a enfeitá-los e até pagam para que estejam
bem arrumados. O cabeleireiro
é ponto de encontro,
onde experimentam variantes
do corte do Jaca, com
desenhos riscados a gilete
rente ao couro cabeludo.
Fazem unhas, tiram sobrancelhas,
depilam-se,
usam brincos brilhantes,
aparelho colorido nos dentes
e trocam a cor dos cabelos
com uma frequência impressionante. As novas
tendências espalham-se pelo Youtube.

A escola, como sempre, não abraça este processo.
Os que não abandonaram os estudos só a frequentam
porque a família insiste. Nada a ver com
preguiça; passam o dia pesquisando novos passos,
gravando vídeos, conectados pela internet.

Têm uma legião de fãs. Cada vídeo ou comentário
postado é curtido por centenas, até milhares de
pessoas. Um deles tem mil perfis falsos no Face.
Jeffinho sequer dança tão bem quanto feras como
Breguete, Iltinho, Pablinho, Sheick ou Pelúcia;
nem é tão bonito assim.
Mas é um mestre intuitivo
da manipulação da imagem
e do uso das novas
mídias. Verdade que já
tem empresário, que leva
porcentagem alta dos cachês
dos shows em que se
apresenta .

O Passinho está criando
um mercado. Além dos
shows convocados por MCs, alimenta web-rádios
e pequenos fabricantes de camisetas. Está na moda.
Teve “flashmob” na estação do metrô, a Coca-
Cola patrocinou campeonatos entre dançarinos,
produziu um vídeo que está no Youtube e já é viral.
A final da Batalha do Passinho deste ano foi
disputada no estúdio do “Caldeirão do Huck”. Alguns
participaram na abertura dos Jogos Paraolímpicos
em Londres em 2012 e do Criança Esperança
este ano. O Theatro Municipal do Rio de Janeiro
organizou um curso de férias onde a molecada
do Passinho trocou experiências com alunas
da Escola de Ballet Maria Oleneva.

Poucos poderão ganhar a vida como bailarinos,
assim como nem todos os artistas sobrevivem
do palco. Escritores sempre dependeram
de algum emprego fixo. Uma minoria dos milhares
de jornalistas formados a cada ano chega
a uma redação de jornal ou de televisão. Nem
por isto são vítimas. Os “lekes” são exemplos de
talento, força de vontade e honradez. A história
deles inclui ingredientes que nos alegram e nos
perturbam. Mas é certo que aponta uma sociedade
em transformação.

Notícias de um ofício indigesto - Dorrit Harazim


sábado, 19 de outubro de 2013

COBAIAS EM DEBATE Qual o limite da ciência?

 ZERO HORA 19/10/2013

Ao retirar mais de 200 cães de um laboratório de pesquisas científicas em SP, um grupo de ativistas esquentou discussão sobre o uso de animais em testes

O Brasil vivenciou na noite de quinta-feira uma versão não ficcional do filme Os 101 Dálmatas, clássico da Disney no qual cachorrinhos são salvos de serem mortos para virar cosmético.

Só que o resgate, ocorrido no interior de São Paulo, foi de outra raça de cães – mais de 200 beagles – e os fins para os quais eles seriam usados são pretensamente científicos, para testes de medicamentos. A libertação dos cachorros, feita por ativistas ambientais e que resultou também na fuga de coelhos e ratos, resultou em queixa de furto contra os ambientalistas. E em intenso debate entre defensores de animais e pesquisadores, que acham imprescindível o uso de testes em bichos, para o bem da ciência.

Uma petição online contra o uso de animais em experimentos, lançada pelo site Avaaz.org, coletou mais de 265 mil assinaturas até a tarde de ontem. Tudo impulsionado pelo episódio da polêmica libertação dos cães, que aconteceu nos laboratórios de pesquisas científicas do Instituto Royal, em São Roque (a 66 quilômetros de São Paulo).

A empresa já era investigada pelo Ministério Público por suspeita de que os animais eram acomodados em condições irregulares. No local são testadas nos cachorros possíveis reações adversas aos medicamentos, como vômito, diarreia, perda de coordenação e até convulsões. Entre os ativistas que participaram do ato, organizado pela interner, está a atriz Nicole Puzzi, famosa por pornochanchadas nos anos 70.

A lei permite que se faça experimentos, desde que se prove que não há outros meios para se chegar a um resultado científico. Os ambientalistas que soltaram os beagles garantem que alguns cães tinham lesões nos olhos e nas patas, o que leva à desconfiança de maus-tratos. O resgate canino gerou comoção, por vários motivos. De um lado, porque os experimentos na Royal envolvem cães, os mais populares animais de estimação, ao ponto de angariar o epíteto de “melhor amigo do homem”. E logo cães de raça, os beagles, mundialmente conhecidos pelo personagem de quadrinhos Snoopy.

– Provoca uma compreensível reação emocional e, até por isso, a indústria tem desenvolvido testes com modelos simulados, não vivos. Mas em alguns casos os experimentos em animais são imprescindíveis. Para verificar se determinado produto é teratogênico (que causa deformações) ou para testar drogas contra câncer – exemplifica a veterinária Luiza Macedo Braga, professora da PUCRS e membro do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal.

O pesquisador Álvaro Montenegro Valls, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos, não é tão conformado com a justificativa científica para uso dos animais em testes. Ele diz que, no estágio atual da humanidade, existem muitas alternativas. Entre elas, o uso de bonecos de anatomia e simulações de computador.

– Pingar produtos no olho para testar irritação e outras formas que envolvem sofrimento são inadmissíveis – opina.

Os animais resgatados do Instituto Royal por ativistas estavam sendo oferecidos para adoção em sites na internet. Mas quem adotar poderá incorrer em crime de receptação. Isso porque se trata de produto de furto, indicou o delegado seccional de Sorocaba, Marcelo Carriel. A pena prevista vai de um a quatro anos de prisão.

A Polícia Civil de São Roque abriu inquérito para apurar a invasão e depredação do instituto. O laudo da perícia feita no local deverá apontar a direção dos indiciamentos. Imagens da invasão serão usadas para identificar os ativistas.

andre.mags@zerohora.com.br

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A Batalha das Biografias - Trocando em miúdos

O GLOBO 17/10/2013

Citados por Chico Buarque em seu artigo ontem no Segundo Caderno, Paulo Cesar de Araújo, autor de "Roberto Carlos em detalhes", Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e Mário Magalhães, biógrafo de Carlos Marighella, contestam as afirmações do compositor

De seu amável interrogador - Paulo Cesar de Araújo 

Foi com grande espanto que li, ontem, declaração de Chico Buarque aqui no GLOBO, afirmando que jamais me deu uma entrevista. Ou seja, ele alega que eu teria faltado com a verdade ao incluí-lo entre as fontes listadas na biografia "Roberto Carlos em detalhes" Ocorre que Chico Buarque foi, sim, uma das 175 pessoas que entrevistei para a pesquisa que resultou naquele livro. O artista certamente se esqueceu, mas ele me recebeu em sua casa, na Gávea, na tarde de 30 de março de 1992. E esta entrevista, com duração de quatro horas, foi gravada, filmada e fotografada. Falamos muito sobre  censura, interrogatórios — creio que por isso ele escreveu, junto com o autógrafo que me deu na capa do disco "Construção": "Para o Paulo, meu amável interrogador, com um abraço do Chico Buarque. Rio, março/92."

Naquela entrevista, Chico me falou sobre as principais fases e canções de sua carreira. Uma de minhas perguntas foi sobre sua relação com Roberto Carlos nos anos 60, quando ambos representa-vam poios opostos na nossa música popular — suas frases estão reproduzidas na página 184 da biografia que escrevi.

No seu artigo de ontem o cantor também negou uma declaração dele que reproduzo no meu livro anterior, "Eu não sou cachorro, não" No livro eu cito a fonte: "Última Hora-SP" 28/06/1970 — mesmo jornal para o qual, em 1974, o próprio Chico daria uma famosa entrevista, sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Esta entrevista está no seu site. Resumindo: no seu artigo de ontem, Chico dá a entender que o jornal era desprezível, mas ele falava, sim, com seus repórteres. Pois bem. Ele disse ontem ser impossível ter "criticado Caetano e Gil, então no exílio, por denegrirem a imagem do país no exterior" Ocorre que a crítica registrada na "Última Hora" não tinha este viés nacionalista. O que ele criticava era o fato de os baianos usarem a condição de exilados para sensibilizar os ingleses e fazer sucesso: "Nos cartazes de publicidade que eles mandaram imprimir, consta que foram banidos do país. Isso é ridículo, querer vencer pela pena."

Registre-se que na época Chico andava mesmo afastado de Gil e Caetano por conta de rusgas desde a eclosão do tropicalismo — o que Chico confirmou ao "Pasquim" em 1970. Trecho: "Eu perdi o contato com eles, perdi a amizade deles. Então eu não entendo mais se o Caetano é o mesmo que eu conheci" Nesse mesmo papo com o "Pasquim" Chico se mostrou também desconfiado da gravação de "Carolina" feita por Caetano. "Eu ouvi o disco uma vez só e confesso que não gostei e não quis ouvir mais porque é um problema em que eu não estava a fim de ficar pensando: será que ele gravou de boa-fé ou de má-fé?" Portanto, neste contexto, acho bastante possível ele ter feito também aquela declaração sobre os baianos na "Última Hora" Por isso, incluí sua declaração no livro. Faz parte do meu ofício de historiador.

Paulo Cesar de Araújo é historiador e escritor


Um editor de biografias - LUIZ SCHWARCZ

Falei recentemente com o Chico Buarque sobre o assunto das biografias mais de uma vez. Como ele agora escreveu publicamente, utilizando-se de exemplos sensíveis à história da Companhia das Letras, “condenada” a pagar uma larga soma de indenização à família de Garrincha, preciso vir a público esclarecer minha posição e contar, pela primeira vez, minha versão de toda esta história.

Quando o livro Estrela solitária estava para ser publicado, uma matéria foi veiculada no Fantástico chamando atenção para o livro. As filhas do Garrincha, que não haviam se manifestado até então, me procuraram, através de um advogado, e, sem ler uma página sequer do livro, demandaram pagamento de direitos e ameaçaram com um pedido de indenização.

O representante da família, a essas alturas, não falava em “imagem denegrida”, mas em “ajudar o Natal das meninas”. Como não aceitamos nenhum acordo — por julgarmos que a biografia enaltecia o jogador como o melhor de todos os tempos e tratava do alcoolismo, conhecido por todos, de maneira absolutamente ética –, seguimos em frente com a publicação. A partir daí fomos processados, com a família exigindo, ao mesmo tempo, o pagamento de direitos autorais — como se a vida de um antepassado pertencesse a seus herdeiros — e reclamando da imagem do jogador supostamente denegrida pelo livro, de cujos rendimentos gostariam de participar.

A partir daí, uma longa e custosa história se instaurou e, em segunda instância, Estrela solitária foi retirado de circulação, sem que todas as etapas do julgamento estivessem concluídas — situação que só a nossa lei permite. Assim como permite que um juiz ameace “quebrar” uma editora, ao ter amplos poderes para arbitrar a indenização. A biografia de Garrincha só voltou a circular mediante um volumoso acordo, e sem nenhuma condenação. Com o pagamento realizado, nem a capa ou muito menos o conteúdo voltou a preocupar as herdeiras. O fato é que a atual lei brasileira permite, singularmente, que se instaure um balcão de negócios, arbitrariedades e malversações.

Sei que Chico discorda da capa que escolhi pessoalmente para o livro do Ruy Castro. Estrela solitária termina com o triste fim do jogador, isolado e alcoólatra. Julguei que não devia, como editor, publicar um livro com tal força dramática colocando Garrincha com as mãos erguidas junto às pombas da Praça de Milão, foto que, aliás, teria sido a escolhida pelo autor. Aceito o julgamento público, confiante  de que segui critérios editoriais corretos. O oposto significaria fugir da história para proteger a imagem de um ídolo nacional.

Pela lei vigente, os herdeiros se transformam em historiadores, editores e, desculpe-me, censores, sim. A foto que utilizamos foi retirada de arquivos públicos e, se não me falha a memória, havia sido previamente publicada em jornal. Existia uma muito pior para o Garrincha, capa de um jornal  importante, com o ídolo desfilando no Carnaval, em carro alegórico, completamente entregue ao álcool. A família na época permitiu o desfile e a aparição do jogador na avenida. De quem é a culpa, então?

Quem ajuda a moldar a vida e a cultura de um país, seja no futebol, na música ou na política, tem, desde sempre, menor controle de sua vida pública. Sempre foi assim, de Cleópatra a Maria Callas, passando por Getúlio Vargas e pelos ídolos do iê-iê-iê. A defesa da privacidade no mundo contemporâneo deveria nos unir, mas o custo que a lei brasileira cobra é inaceitável, é muito pior.

Espero que um dia escritor e editor se juntem na defesa das duas causas: a da liberdade de expressão necessária para a nossa profissão, e a da privacidade possível no mundo atual. O “Procure saber” escolheu o vilão errado e ofendeu os profissionais do livro ao defender a permissão apenas da publicação gratuita dos livros pela internet, apresentando editores e escritores como argentários e pilantras profissionais. Além do Chico Buarque, Gil e Caetano foram publicados com muita honra pela Companhia das Letras e me conhecem bem.

Agora, que o pagamento à família de Garrincha justificado pela fragilidade das leis brasileiras de defesa da liberdade de expressão foi indevido, sem dúvida nenhuma foi. E que divergências não abalam amizades como as que tenho com Chico Buarque e Caetano Veloso, é certeza e nunca esteve em discussão.

* * * * *

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.

 Meu caro Chico - MÁRIO MAGALHÃES

Caríssimo Chico Buarque, eis o artigo do Código Civil que o grupo Procure Saber, ao qual você pertence, batalha para eternizar:


“Salvo se autorizadas [...], a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Quando você lançou a obra-prima “Apesar de você”, o ditador Médici presidia o Brasil. Era um tempo em que agentes públicos torturavam milhares de pessoas. Hoje, para biografar o general, só com autorização dos herdeiros. Dá para pensar no rame-rame laudatório que eles exigiriam?

A legislação em vigor permite que Fernando Collor barre uma biografia não autorizada, em nome de sua “boa fama”. Idem o juiz Lalau e o torturador Brilhante Ustra. É assim porque a lei vale para todos, artistas ou não. Pense bem: a prerrogativa de contar a história passou ao coronel Ustra.

No seu elegante artigo “Penso eu”, generoso com meu livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”, você menciona, sem título, uma biografia do Cabo Anselmo. Conheço três obras focadas no infiltrado que entregou a mulher grávida para repressores da ditadura a matarem (ela se chamava Soledad, e não Consuelo; todos tropeçamos, não somente os biógrafos).

As de 1984 e 99, com depoimentos mentirosos do covarde, assemelham-se a autobiografias.  A de 81 é um breve perfil independente. A tragédia: publicado ainda durante a ditadura, este livro poderia ser proibido hoje, na democracia, amparado no Código Civil de 2002. A norma obscurantista transfere a Anselmo o poder de definir o conteúdo de uma biografia.

Concordo: é inaceitável a impunidade de biógrafo leviano ou criminoso que difunda informação “infamante ou mentirosa”. Mas a decisão tem de ser da Justiça, e não de censura prévia. Se o Judiciário é lento e a lei dócil com difamadores, aperfeiçoemos ambos. Somos contra o indulto de Natal porque, entre milhares de presos, meia dúzia foge? Crimes pontuais não devem abolir direitos coletivos. O conhecimento da história consagra-se como direito humano. Roberto Carlos é, sim, dono da vida dele. Mas não é dono da história.
Biografias são reportagens, que constituem gênero do jornalismo. Pagar royalties a personagens descaracteriza biografias não autorizadas _você propõe mesmo dar uns caraminguás aos netos do Médici?

Se defende que as filhas do Garrincha recebam pelo trabalho árduo do biógrafo, já pensou em remunerá-las, por ter citado o Mané junto com Pelé, Didi, Pagão e Canhoteiro? “O futebol”, sua música, não tem também “fins comerciais”? A imprensa de “fins comerciais” publica perfis. E se o Sarney e o Bolsonaro resolverem cobrar? Devemos reeditar a censura de outrora ou persistir no bom combate a ela?
Chico, perdoe o tom. Você merece interlocutores do “tempo da delicadeza” evocado em “Todo o sentimento”. Aceite um abraço e o carinho deste fã irrevogável.

 Mário Magalhães é jornalista e biógrafo

Nem na ditadura...

O Globo - 17/10/2013

DIEGO WERNECK ARGUELHES E
IVAR A. HARTMANN


Nem mesmo naquela época se ousou restringir a tal ponto a liberdade de expressão cultural

Reunidos na organização Procure Saber,
importantes nomes da nossa música
defendem que se continue a proibir biografias
não autorizadas. Hoje, a proibição
resulta de uma interpretação precária do
art. 20 do Código Civil. Um dos argumentos desses
músicos é que não se pode permitir que
apenas o autor tire vantagem financeira da biografia.
Ou ambos lucram, ou o autor não pode
comercializar a obra. Mas essa interpretação da
lei traz risco enorme à cultura brasileira. Mais
diretamente, aliás, afetaria os próprios músicos
que a defendem.

O artigo 20 fala de “escritos”, mas não só. Inclui
“transmissão da palavra”, “publicação”, “exposição”
e “utilização da imagem”. Se o Código proíbe
alguma coisa, essa proibição não se aplica somente
a biografias. Um discurso — a transmissão da
palavra ao vivo. Uma matéria de jornal — publicação.
Uma homenagem a alguém — utilização da
imagem. Quem invoca o art.20 precisaria também
estar disposto a aplicá-lo aos muitos outros tipos
de expressão que ele abrange.

Músicas gravadas e tornadas públicas por meio
físico ou virtual preenchem todos os requisitos do
artigo 20. São “transmissão da palavra”. São “publicações”.
Mais ainda, músicas sobre pessoas reais
e específicas são uma exposição da pessoa e
utilizam sua imagem. Com “Fio Maravilha”, por
exemplo, Jorge Ben Jor expôs e divulgou (e imortalizou)
o jogador do Flamengo. E o próprio Caetano
construiu o cenário de sua “Sampa” com as
imagens de outros artistas de carne e osso, como
Rita Lee e os Novos Baianos.

Para a Procure Saber, não seria justo que “só os
biógrafos e seus editores lucrem com isso e nunca
o biografado ou seus herdeiros”. Para evitar essa
injustiça, portanto, deveríamos exigir sempre a
autorização prévia da pessoa retratada naquela
expressão artística, cultural, literária ou musical.
Ou de seus herdeiros. Mas onde isso nos levaria se
o artigo 20 fosse aplicado de forma coerente a todas
as formas de expressão? Caso sua mãe já houvesse
falecido quando compôs a tocante “Lady
Laura”, Roberto Carlos precisaria pedir autorização
de seus irmãos. A “Sampa” de Caetano só poderia
ser povoada por personagens que consentissem
em ser retratados.

No auge da ditadura militar, nos anos 70, Jorge
Ben Jor sofreu um processo judicial por não ter
pedido autorização do jogador Fio Maravilha
antes de lançar a sua famosa música. O pedido
foi rechaçado. Nem mesmo naquela época se
ousou restringir a tal ponto a liberdade de expressão
cultural.

Pelo que exigem agora alguns músicos brasileiros,
deveríamos ter obrigado Raul Seixas a
conseguir autorização dos herdeiros de Al Capone.
Ou exigido que o grupo Los Hermanos fizesse
primeiro um contrato de partilha do lucro
dos direitos autorais com a estudante retratada
em “Anna Julia”. E o que dizer da música “Clint
Eastwood”, do grupo Gorillaz? Seria necessária
a autorização do ator americano para divulgar a
música no Brasil?

Os músicos do Procure Saber deixaram claro
que, pelo artigo 20, opõem-se a manifestações
culturais não autorizadas apenas quando são
comercializadas. Se divulgadas gratuitamente,
não haveria problema. Mas a proibição do artigo
20 é mais insaciável do que pensam. Ela não
tem fundo. Estariam dispostos a abrir mão dos
direitos autorais de todas as suas músicas que
envolvam a imagem de uma pessoa real?

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

NOS BASTIDORES, ELE É O CARA

O Globo - 16/10/2013

Marcos Ramos inaugura exposição em que mostra cenas clicadas nos bastidores da MPB em 10 anos de coluna


Há dez anos o fotógrafo
Marcos Ramos faz a
cobertura dos grandes
eventos culturais da cidade,
sempre em busca de um olhar
que fuja do óbvio, do burocrático.
Mesmo com tempo contado
— geralmente, aqueles
minutinhos que antecedem
um show, sem luz ideal ou rebatedores
— ele consegue fazer
fotos que mostram uma espontaneidade
rara de se ver no
mundo do show business. Chico
Buarque relaxadão no sofá?
Ele fez. Caetano em clima de
devoção, beijando a mão de
Dona Ivone Lara? Imagina se
ele ia deixar passar.


No caso do flagrante de Chico
Buarque, Marcos não pediu
pose, nada. Simplesmente
aproveitou a cena que viu ao
chegar no camarim do compositor.
Coisa de quem sabe.



Marcos conquistou a simpatia
e confiança dos artistas ao longo
dos anos, por isso costuma
ter as portas dos camarins
abertas para fazer seu trabalho.
Foi numa dessas que clicou
Gal Costa brincando com
um cacho de uvas, Gilberto
Gil, de chinelinho de dedo, afinado
o violão antes de um
show no Teatro Municipal, e
Daniela Mercury emocionada,
sendo cercada por crianças
numa visita a Vigário Geral.

“Acho que consegui eternizar
um pouco da história da música
popular”, diz o fotógrafo,
que mostra esses e outros retratos
na exposição “Uma viagem
pelos bastidores”, no Casa
& Gourmet Shopping, em Botafogo.
 A inauguração para
convidados é amanhã.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Renato Russo não morreu - GIULIANO MANFREDINI

 O Globo -14/10/2013

Seus versos sensíveis e
arrebatadores são cartas
que escreveu à posteridade,
embalando sonhos de
geração para geração

Ao recordarmos os 17 anos da morte de Renato Russo, na última sexta feira, o destino de sua obra está sacramentado. É o mesmo das vastas produções de Drummond, de Borges, de Pessoa, dos poetas que quanto mais o tempo passa mais atuais e modernos ficam. Nós o perdemos fisicamente, ainda jovem e no auge de sua capacidade criativa, e vivemos o paradoxo de tê-lo tão presente na atemporalidade de seus versos, pela força de sua mensagem, pela impressionante identificação de suas composições com os sentimentos coletivos. Renato firmou-se como uma das maiores figuras de sua geração — talvez a maior — não buscando nem a glória nem a riqueza. Elas foram decorrência de sua inquietude intelectual, da formação cultural sólida e, acima de tudo, do gênio criador e iluminado que ele foi e todos reconhecem. Tenho absoluta certeza de que sua grande ambição (seguramente a única) foi a de transmitir seus valores, perplexidades e a imensa esperança em um mundo melhor.

Seus versos sensíveis e arrebatadores, suas músicas que teimam em brotar carinhosamente dos lábios de gente que sequer o conheceu mas o adora, são cartas que escreveu à posteridade, como bandeiras desfraldadas ao infinito, embalando sonhos de geração para geração.

Desde muito cedo compreendi o que era ser filho de Renato Russo. Era a permanente acumulação de carinhos recebidos, sendo o alvo da doçura e da generosidade testemunhadas por todos os que tiveram a ventura de conviver com ele. As lembranças que guardo, e que incrivelmente não se perdem com o passar dos anos, são fruto do extremo cuidado e do amor transbordante que ele dedicava a todos os que lhe eram caros. E não só a mim, como a pessoas que mal conhecia. Agredido por um desconhecido em seu último show em Brasília — alguém com evidente descontrole mental — meu pai esbravejou com os seguranças que retiravam o agressor, exigindo que o libertassem. Não admitiu o que julgava ser uma violência contra o indivíduo que minutos antes invadira o palco e o agarrara bruscamente. Vi as imagens num especial da GloboNews dias atrás e recordei a figura de meu pai, em sua extraordinária dimensão humana, grandiosa em qualquer momento ou situação, vivendo o que compunha e cantava.


Nos recentes protestos que sacudiram nosso país, me emocionei ao saber que os 80 mil jovens que ocuparam as ruas de Manaus, e de forma espontânea e pacífica paralisaram aquela cidade, entoavam “Que país é esse?” com a força de um hino. Cantavam com paixão uma música composta quando a esmagadora maioria deles sequer havia nascido. É que quase duas décadas depois de sua prematura partida, Renato está vivo e incendiando de poesia e dignidade as consciências no coração da nossa Amazônia e em todas as esquinas do planeta. Em Montevidéu, semana passada, um cidadão uruguaio foi às lágrimas ao saber que
eu era filho de Renato Russo, e a feirante que nos vendia camisetas com sua face estampada recusou-se a cobrar-me por uma delas. Renato e a força de sua poesia estavam lá, às margens do Rio da Prata, como também no coração da distante Amazônia.


Penso que ele foi um visionário, muito mais que um poeta de talento e artista de sucesso, e comento cá com meus botões o peso da responsabilidade de ser o guardião da obra monumental e de sua memória viva. Essas não me pertencem, nem a ninguém. Elas são do mundo, da cultura e do que creem na fraternidade entre os homens e na perenidade do amor.

sábado, 12 de outubro de 2013

Zweig com insônia - José Castello


EM ALGUM LUGAR DO PASSADO

 O GLOBO 12/10/2013



Reconhece as crianças das fotos? O menino
que se exibe abrindo espacato na sala
de casa, já dá para desconfiar — até porque
ele não mudou muito —, é o ginasta Arthur
Zanetti. A imagem do atual campeão mundial
nas argolas quando criança é uma das 40 fotos
de atletas olímpicos e paralímpicos, ainda na
infância, que serão expostas a partir de hoje no
site das Olimpíadas Rio 2016.

Os esportistas toparam abrir seus álbuns de família,
e de lá saíram imagens como a da jogadora
de vôlei de praia Sandra Pires, medalha de
ouro em Atlanta, em sua primeira comunhão,
aos 7 anos, na Ilha do Governador.


Campeão paralímpico e cinco vezes ouro no
mundial de natação, em agosto, Daniel Dias aparece
todo felizinho brincando com um guardachuva
dentro de uma caixa de papelão.



E Cesar Cielo, hoje um galalau de 1,95m, de fralda,
no colo do pai, o pediatra Cesar? A foto, à
beira da piscina, foi tirada em 1987, no Esporte
Clube Barbarense, em Santa Bárbara D’Oeste,
onde ele nasceu. Pai e filho posaram juntos vinte
e um anos antes do primeiro ouro olímpico
de Cielo, em Pequim. Feliz Dia das Crianças!

Nada a ver com censura prévia - Herson Capri

O Globo - 12/10/2013

O editorial do GLOBO intitulado “A censura prévia às biografias” contém uma postura tendenciosa e belicosa. A começar pelo título. A questão não tem absolutamente nada a ver com censura prévia, uma vez que está claramente prevista na Constituição, tanto que, como diz o próprio editorial, algumas obras estão tendo sua circulação vetada por decisão judicial e isso significa apenas que a Justiça já está fazendo valer a lei.

O texto coloca alguns dos nossos melhores compositores numa “cruzada contra biografias, sob disfarce de defesa da privacidade”. Para o articulista, um grupo se reunir para lutar por uma convicção é apenas um bando de marginais conspirando contra... O quê, afinal? Que se saiba, quem ia contra as reuniões de grupos de intelectuais era a ditadura militar, temerosa de ter seu governo questionado. Não dá para entender a intenção desse editorial ao atacar tão agressivamente uma reivindicação legítima e transparente.
E o ataque segue dizendo que esses artistas passaram de “censurados a agentes da censura”. Senão vejamos: alguns desses artistas foram censurados, sim, tiveram suas obras vetadas ou cortadas pela censura do governo golpista que determinou o fim de uma democracia que estava a pleno vapor, artistas que fizeram parte da resistência aos desmandos do militarismo no poder desde a primeira hora. São pessoas, portanto, que têm histórico para serem, no mínimo, respeitadas em suas opiniões e não tratados como bandidos, como faz o editorial. São pessoas que sabem muito bem diferenciar uma censura a obras artísticas de uma invasão de privacidade ostensiva visando lucro para empresas editoras.

O artigo também acusa essa reunião de artistas, a “Procure Saber”, de “cavalgarem uma esperteza”. Resta saber que esperteza é essa e o que eles ganhariam com isso. O jornalista que escreveu o editorial não percebeu ainda que há causas sem ganho material e que buscam apenas justiça e proteção. Quem procura um ganho material, nesse caso, é justamente o lado oposto, a Associação Nacional dos Editores, que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade visando a modificar a interpretação de cláusulas pétreas do Código Civil para poderem publicar à vontade suas biografias não autorizadas e aumentar o seu faturamento.

Uma biografia não autorizada é apenas a visão de um autor a respeito de uma pessoa geralmente conhecida, uma compilação das opiniões de um escritor que, invariavelmente, adentra o mundo das fofocas. Uma publicação onde se fala o que quer, onde pode haver mentiras, distorções, manipulações e até acusações desprovidas de provas concretas, ao bel-prazer do biógrafo. As comparações com outros países são esdrúxulas. Nos países onde há mais condescendência com esse tipo de publicação, há também uma legislação rigorosa que é aplicada rigorosamente se alguém escrever e publicar algo que afete o biografado na sua honra ou dignidade. Nesses países, os processos que poderão advir de alguma coisa que lese o biografado, na maioria das vezes, redundam em valores monstruosos de multas e ressarcimentos por danos morais. Assim, o escritor e a editora jamais irão publicar algo indevido sob pena de terem que desembolsar milhões de dólares!

Não é o nosso caso. Aqui, os valores ajuizados para esse tipo de dano à individualidade e à privacidade estão muito abaixo do simbólico. Isto é, pode-se escrever qualquer coisa sobre quem quer que seja e, se houver um processo, paga-se uma multa irrisória e parte-se tranquilamente para a próxima biografia espúria, porque se sabe que não vai dar em nada. O editorial termina ainda citando os artigos 20 e 21 do Código Civil como sendo a “base da fúria obscurantista”. Para esse editorialista, o simples cuidado com a vida particular de uma ou duas pessoas vai nos levar de volta aos anos de chumbo da ditadura militar. Simplista, apelativo e extremamente sintomático. Além de corporativista ao extremo.

Herson Capri é ator