terça-feira, 30 de abril de 2013

A Portela desejada - Toninho Nascimento e Luiz Carlos Máximo

O Globo - 30/04/2013

Separação entre direção e comunidade levou a uma grave crise
 

Toninho Nascimento e Luiz Carlos Máximo

 

Toda instituição com longos anos de existência, inevitavelmente, é acometida por momentos de crise. E com o glorioso Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela não é diferente. Em sua história, a escola teve três traumáticas rupturas. A saída de Paulo da Portela, viga mestra da agremiação, o rompimento de Candeia e Paulinho da Viola, na década de 70, e, anos mais tarde, a dissidência que fundou a Tradição.

Ao completar 90 anos, a Portela vive sua maior crise. Não somente pelo jejum de títulos, mas, fundamentalmente, pela não realização do sonho de que a escola de samba de Oswaldo Cruz e Madureira reocuparia seu lugar na cultura. E as consequências são sempre desastrosas quando uma esperança é apunhalada. A crise da Portela é de diagnóstico simples, porém grave: é a separação entre sua direção e a comunidade. Um corpo sem alma. Mas para um portelense, a esperança nunca finda, muda de lugar. E neste lugar, capital dos nossos sonhos, vislumbramos o retorno da verdadeira Portela em seu conceito mais amplo, retomando a utilização do seu espaço como ambiente sociocultural da comunidade, em que o samba tem primazia.

Fortalecer a ala de compositores, investindo na formação de novos talentos, com a realização de rodas de samba e festivais de sambas de quadra, são iniciativas necessárias para a Portela prosseguir como fonte de referência da música popular brasileira. Assim como é premente que a disputa de samba de enredo seja igualitária. Não queremos a transformação em gueto, mas o entendimento de que a escolha do “hino” é um momento sagrado, em que o mérito da obra deve prevalecer, sem a interferência de interesses e/ou do poder financeiro. Não estamos entre os que não querem navegar, mas na defesa de que tenhamos o leme em mãos. O pioneirismo e a ousadia permeiam as belas páginas da nossa história. Parafraseando o mestre Paulinho da Viola, não moramos no passado, mas o temos em nós. A Portela foi fundada num momento em que a política de Estado era a de apagar as heranças culturais negras. E, remando contra a maré, a escola nasceu e abriu caminhos.

Não fechamos os olhos às transformações. A negociação entre a tradição e os novos tempos é o desafio de uma nova gestão, que desejamos democrática, sem perpetuação nos cargos de poder, com profissionalismo administrativo e financeiro, em que os recursos sejam investidos com planejamento e transparência, valorizando os profissionais e priorizando as alas comunitárias. A ampliação do colégio eleitoral, com pessoas identificadas com a Portela, e a criação de um conselho de baluartes, guardiões da nossa tradição cultural, também são iniciativas primordiais para a democracia ser exercida de forma plena e os princípios preservados. Queremos uma direção que seja um instrumento dos anseios dos portelenses. Cientes de que não são proprietários de uma instituição em que dezenas de milhares de apaixonados depositam seus sonhos. Mais do que nossa, a Portela é um patrimônio cultural do país.

domingo, 28 de abril de 2013

Leminski! - Caetano Veloso


 O GLOBO - 28/04/2013

 

O fenômeno Leminski e os encontros com o poeta que sempre atraiu jovens leitores

Vim de Petrolina para Porto Alegre com uma escala prolongada em Salvador e outra relâmpago no Rio. Daqui sigo para Belo Horizonte. Estou em aeroportos e hotéis, além de palcos, quase o tempo todo. Mas uma conversa rápida com Jorge Furtado aqui na quinta à noite me pôs um pensamento na cabeça que é muito apaixonante. Ele me disse que o livro de poesias reunidas de Leminski está entre os mais vendidos. Na verdade, ele afirmou que esse livro chegou a passar à frente do mais vendido das listas. Ouvir dizer que um livro de poemas está vendendo assim no Brasil é escândalo. Tínhamos aprendido que poesia não vende. Exceto talvez na Rússia. No Brasil então… Mas Leminski!... Fico pensando no significado desse fenômeno, mas sobretudo me vêm as lembranças dos encontros com o poeta. Saber disso aqui no Sul do país torna tudo mais vívido.

A primeira vez em que estive com Leminski foi em sua Curitiba natal. Aliás, por muito tempo eu o encontrava lá. Ele vivia com Alice Ruiz numa casa de madeira sem aquecimento. Eu aguentava o frio das altas horas depois dos shows empacotado em casacos grossos, camisetas sob as camisas de manga comprida, ceroulas, meias de lã e, às vezes, luvas. Acho que já não bebia nada. Ou talvez ainda bebesse um pouco nas primeiras vezes. Leminski bebia muito. Mas o que aquecia o ambiente eram suas palavras, seus olhares de profundo carinho desconfiado, sua risada rouca e o milagre de algumas canções que ele compunha com parcos acordes de violão. A primeira vez que ouvi “Verdura” (“De repente me lembro do verde/ A cor verde, a mais verde que existe/ A cor mais alegre, a cor mais triste/ O verde que vestes, o verde que vestiste/ No dia em que te vi, no dia em que me viste./ De repente vendi meus filhos/ A uma família americana/ Eles têm carro, eles têm grana/ Eles têm casa e a grama é bacana/ Só assim eles podem voltar e tomar um sol em Copacabana”) senti a força da poesia a um tempo como piada e fundo lamento virando canção caipira urbana. Resolvi gravá-la — e até hoje, se me lembro dela, me dá um nó na garganta. Mas era muito mais intenso e muito mais bonito ouvi-la cantada pelo autor numa casa de madeira sem lareira.

Leminski foi um menino prodígio do concretismo (os concretos o publicaram na revista “Invenção”, depois de um encontro literário em Belo Horizonte onde Haroldo de Campos o conheceu, ele ainda adolescente), entusiasta dos beatniks, personagem autoirônico da contracultura. Ele lutava caratê. Tinha uma cara de Europa Oriental. Mais oriental do que Europa. Tinha lido muito e continuava lendo muito. Era culto e apaixonado pelas letras. Creio que quando o conheci ele estava escrevendo o “Catatau”, uma aventura literária joyciana em que Descartes vem com Maurício de Nassau (coisa que poderia ter acontecido) para Pernambuco e entra em contato com a luz dos trópicos, os bichos e árvores exóticos — e os psicotrópicos naturais. Ele o tinha como a obra central de sua vida literária. Desde a escolha do título até o modo como ele se referia ao livro, sentia-se que ele o via fisicamente maior do que era. Esta é uma observação curiosa, meio maluca. Mas é o que sempre me vinha à cabeça. O tamanho do objeto “Catatau” parecia desmentir a imagem que Leminski tinha na cabeça quando se referia a ele. Sua força literária é outra história. Leminski gostava de repetir que um criador tem apenas uma ideia — e que a dele tinha sido o “Catatau”, Descartes no Brasil e a subversão da lógica cartesiana. As primeiras páginas empolgam pela inventividade vocabular e pelo sentido de ritmo. É um livro que, depois de ler as poesias reunidas, que são outra onda, preciso voltar a ler. Preciso também assistir ao filme “Ex-isto” (grande título!), em que João Miguel faz Descartes.
Depois, um tanto decepcionado com o destino do “Catatau”, Leminski escreveu um romance mais convencional, chamado “Agora é que são elas”, sobre o qual conversei muito com Boris Schneiderman, ficando com a impressão de que esse grande tradutor e eu éramos os únicos a admirar essa incursão do poeta curitibano pela prosa propriamente narrativa e pela fabulação tipo novela policial.

Mas a poesia! Leminski sempre atraiu jovens leitores para a poesia. Jovens de várias gerações. Reunida, sua obra poética parece ter juntado toda essa vontade de poesia que estava enrustida há décadas. Nem quero falar sobre os versos, os poemas curtos, os hai-kais, o tom de eterna circunstância de suas tiradas poéticas. Só depois de reler tudo junto e misturado. Por ora, basta celebrar a virada de jogo que representa essa boa nova. Que poesia volte a vender livros no Brasil é uma revolução. Que esta esteja sendo feita por Leminski é sinal de que ela é profunda.

sábado, 27 de abril de 2013

PRELO

O Globo - 27/04/2013

HOMENAGEM A IGLESIAS

Dia 3 de maio, às 17h30m, o Instituto Moreira Salles
do Rio (R. Marquês de São Vicente 476)
homenageará o historiador e ensaísta Francisco
Iglesias — que faria 90 anos amanhã — num
encontro entre o escritor Silviano Santiago e o
historiador José Murilo de Carvalho. Em pauta,
estará não apenas a vasta obra e o trabalho de
Iglesias (1923-1999) como professor, mas também
sua relação com amigos como Carlos Drummond
de Andrade, Autran Dourado e Otto Lara Resende,
entre outros. No Blog do IMS, um texto de Elvia
Bezerra, coordenadora do acervo de literatura da
instituição, analisa a correspondência entre o
historiador e Otto (os arquivos de ambos estão
abrigados ali), composta de mais de 300 cartas.
Informações: 3284-7400.

SILVIANO SANTIAGO
O escritor acaba de ter seu livro de ensaios “As
raízes e o labirinto da América Latina” (Rocco)
publicado na Argentina pela Corregidor, com
tradução e prólogo de Mónica González Garcia. “Las
Raices y el Labirinto de América Latina”, que
aproxima as culturas brasileira e mexicana através
da obra de Sérgio Buarque de Holanda (“Raízes do
Brasil”) e Octavio Paz (“O labirinto da solidão”). O
livro é um dos lançamentos da Feira do Livro de
Buenos Aires, que começou dia 25 e segue até 13 de
maio.

TRABALHO NO BRASIL
Às vésperas do 1º de Maio, a Boitempo anuncia,
para a primeira quinzena do mês, o lançamento de
“Riqueza e miséria do trabalho no Brasil — Volume
II”, organizado por Ricardo Antunes, professor titular
de sociologia do trabalho na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Antunes é considerado
um dos maiores especialistas do país no assunto e a
nova obra (o primeiro volume saiu em 2007), que
reúne 24 artigos de autores distintos, dá
continuidade à sua ampla pesquisa sobre diversos
setores da economia brasileira .

“THIRD WORLD FIRST”
Escritores, poetas, jornalistas e acadêmicos
brasileiros estarão na Universidade de Brown, nos
Estados Unidos, dias 3 e 4 de maio, participando do
evento “Third World First: The Social Boom in
Brazil’s Literary Cultures”, promovido pelo
departamento de estudos brasileiros e portugueses
da instituição. Literatura e mobilidade social, acesso
ao conhecimento, cultura periférica e a proliferação
de festivais literários pelo país estarão presentes nas
palestras de Heloisa Buarque de Hollanda, Beatriz
Resende, Paulo Roberto Pires, Tatiana Salem Levy,
João Paulo Cuenca, Allan Rosa, Ferréz, Lanna Leite e
Vera Saboya.

ENTRE PALAVRA E IMAGEM
O Oi Futuro de Ipanema inaugura dia 3, às 19h, a
exposição “Poética e sinais”, com trabalhos do artista
espanhol (radicado no Rio ) Adolfo Montejo Navas. A
mostra, que integra o projeto Poesia Visual, sob curadoria 
de Alberto Saraiva, reúne poemas visuais,vídeos, fotografias
 (como as da série “Código deBarras”, acima) e instalações 
que vão ocupar o térreoe a galeria do segundo andar da instituição.

EDGAR HILSENRATH
A Gryphus Editora publicará em junho a principal
obra do judeu alemão Edgar Hilsenrath, “O nazista e
o barbeiro”, que conta a trajetória de um integrante
da SS nazista, depois de assassinar centenas,
assume o papel de uma de suas vítimas e se
transforma num respeitável barbeiro em Tel Aviv.
Por conta dos romances que misturam horror e
humor ácido, criticando tanto alemães quanto
judeus, até 1977 Hilsenrath (hoje com 86 anos)
permanecia inédito, recusado pelas editoras de seu
país. “O nazista e o barbeiro” foi lançado
primeiramente nos EUA e só depois do sucesso
(mais de 200 mil cópias vendidas) a obra foi
publicada na Alemanha. A Gryphus lançará ainda
“Fuck America”, relato sarcástico da vida do escritor
na Nova York dos anos 50.

AMOR NO SÉCULO XIX
A Editora Arqueiro está investindo numa nova frente
de ficção. Estão chegando às livrarias três séries de
romances de época, ambientados no século XIX,
com personagens mergulhados em cenas ardentes,
que agradam em cheio às mulheres. Os primeiros
livros são “O duque e eu”, de Julia Quinn; “Desejo à
meia-noite”, de Lisa Kleypas, e “As regras da
sedução”, de Madeline Hunter. Serão no total 17
títulos das três escritoras americanas.

“A Biblioteca George W. Bush vai ter uma exposição sobre tortura?”

TIM NAFTALI
Historiador americano, ex-diretor da Biblioteca-Museu Presidencial Richard Nixon


O Globo - 27/04/2013

Desde que deixou a Casa Branca, em
2009, com um dos piores índices de
aprovação da história americana, o
ex-presidente republicano George
W. Bush tem se mantido longe dos holofotes.
Dedica-se mais ao beisebol e ao recém-adquirido
hábito de pintar do que à política. Na última
quinta-feira, porém, voltou à cena com a
inauguração da Biblioteca-Museu Presidencial
George W. Bush, em Dallas, no estado do Texas,
que governou por seis anos.

O edifício abriga os documentos do governo
Bush e exibe ícones de momentos cruciais de
seu mandato. Alguns em tom de desafio, como
uma cédula eleitoral da Flórida, onde foi decidida
sua vitória em 2000, no colégio eleitoral,
sobre o democrata Al Gore, que ganhou no voto
popular. Outros de gosto duvidoso, como uma
viga de aço retorcida do World Trade Center,
cuja destruição, nos atentados de 11 de setembro
de 2001, mudou o curso de sua presidência.

No dia da inauguração, o historiador americano
Tim Naftali, ex-diretor da Biblioteca-Museu
Richard Nixon, usou a experiência de
quem administrou o legado de outro presidente
impopular para analisar o futuro da nova
instituição. Em artigo na revista “Slate”, lembrou
que as bibliotecas presidenciais são geridas
pelo Arquivo Nacional, portanto devem
servir ao interesse público, e não à “reabilitação
da imagem do ex-presidente”.

Naftali, que promoveu uma exposição sobre
Watergate na Biblioteca Nixon, perguntou se a
Biblioteca Bush tratará da prática de tortura na
“guerra ao terror”: “não há razão para que debates
não ocorram no edifício que guarda os
documentos que explicam essas políticas”.

Por ora, o mais próximo disso é a sala chamada
Teatro das Decisões, espaço interativo onde
o visitante é convidado a se posicionar sobre
questões centrais do governo Bush (por exemplo:
invadir o Iraque ou deixar Saddam Hussein
no poder?). Escolha feita, o ex-presidente
aparece, em vídeo, justificando sua decisão.

Darwin e a prática da 'Salami Science' - FERNANDO REINACH

O ESTADO DE S.PAULO - 27/04/2013

Em 1985, ouvi pela primeira vez no Laboratório de Biologia Molecular a expressão "Salami Science". Um de nós estava com uma pilha de trabalhos científicos quando Max Perutz se aproximou. Um jovem disse que estava lendo trabalhos de um famoso cientista dos EUA. Perutz olhou a pilha e murmurou: "Salami Science, espero que não chegue aqui". Mas a praga se espalhou pelo mundo e agora assola a comunidade científica brasileira.

"Salami Science" é a prática de fatiar uma única descoberta, como um salame, para publicá-la no maior número possível de artigos científicos. O cientista aumenta seu currículo e cria a impressão de que é muito produtivo. O leitor é forçado a juntar as fatias para entender o todo. As revistas ficam abarrotadas. E avaliar um cientista fica mais difícil. Apesar disso, a "Salami Science" se espalhou, induzido pela busca obsessiva de um método quantitativo capaz de avaliar a produção acadêmica.

No Laboratório de Biologia Molecular, nossos ídolos eram os cinco prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos artigos indicava falta de rigor intelectual. Eles valorizavam a capacidade de criar uma maneira engenhosa para destrinchar um problema importante. Aprendíamos que o objetivo era desvendar os mistérios da natureza. Publicar um artigo era consequência de um trabalho financiado com dinheiro público, servia para comunicar a nova descoberta. O trabalho deveria ser simples, claro e didático. O exemplo a ser seguido eram as duas páginas em que Watson e Crick descreveram a estrutura do DNA. Você se tornaria um cientista de respeito se o esforço de uma vida pudesse ser resumido em uma frase: Ele descobriu... Os três pontinhos teriam de ser uma ou duas palavras: a estrutura do DNA (Watson e Crick), a estrutura das proteínas (Max Perutz), a teoria da Relatividade (Einstein). Sabíamos que poucos chegariam lá, mas o importante era ter certeza de que havíamos gasto a vida atrás de algo importante.

Hoje, nas melhores universidade do Brasil, a conversa entre pós-graduandos e cientistas é outra. A maioria está preocupada com quantos trabalhos publicou no último ano - e onde. Querem saber como serão classificados. "Fulano agora é pesquisador 1B no CNPq. Com 8 trabalhos em revistas de alto impacto no ano passado, não poderia ser diferente." "O departamento de beltrano foi rebaixado para 4 pela Capes. Também, com poucas teses no ano passado e só duas publicações em revistas de baixo impacto..." Não que os olhos dessas pessoas não brilhem quando discutem suas pesquisas, mas o relato de como alguém emplacou um trabalho na Nature causa mais alvoroço que o de uma nova maneira de abordar um problema dito insolúvel.

Essa mudança de cultura ocorreu porque agora os cientistas e suas instituições são avaliados a partir de fórmulas matemáticas que levam em conta três ingredientes, combinados ao gosto do freguês: número de trabalhos publicados, quantas vezes esses trabalhos foram citados na literatura e qualidade das revistas (medida pela quantidade de citações a trabalhos publicados na revista). Você estranhou a ausência de palavras como qualidade, criatividade e originalidade? Se conversar com um burocrata da ciência, ele tentará te explicar como esses índices englobam de maneira objetiva conceitos tão subjetivos. E não adianta argumentar que Einstein, Crick e Perutz teriam sido excluídos por esses critérios. No fundo, essas pessoas acreditam que cientistas desse calibre não podem surgir no Brasil. O resultado é que em algumas pós-graduações da USP o credenciamento de orientadores depende unicamente do total de trabalhos publicados, em outras o pré-requisito para uma tese ser defendida é que um ou mais trabalhos tenham sido aceitos para publicação.

Não há dúvida de que métodos quantitativos são úteis para avaliar um cientista, mas usá-los de modo exclusivo, abdicando da capacidade subjetiva de identificar pessoas talentosas, criativas ou simplesmente geniais, é caminho seguro para excluir da carreira científica as poucas pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes. Essa atitude isenta os responsáveis de tomar e defender decisões. É a covardia intelectual escondida por trás de algoritmos matemáticos.

Mas o que Darwin tem a ver com isso? Foi ele que mostrou que uma das características que facilitam a sobrevivência é a capacidade de se adaptar aos ambientes. E os cientistas são animais como qualquer outro ser humano. Se a regra exige aumentar o número de trabalhos publicados, vou praticar "Salami Science". É necessário ser muito citado? Sem problema, minhas fatias de salame vão citar umas às outras e vou pedir a amigos que me citem. Em troca, garanto que vou citá-los. As revistas precisam de muitas citações? Basta pedir aos autores que citem artigos da própria revista. E, aos poucos, o objetivo da ciência deixa de ser entender a natureza e passa a ser publicar e ser citado. Se o trabalho é medíocre ou genial, pouco importa. Mas a ciência brasileira vai bem, o número de mestres aumenta, o de trabalhos cresce, assim como as citações. E a cada dia ficamos mais longe de ter cientistas que possam ser descritos em uma única frase: Ele descobriu...

Link para Leminski - José Miguel Wisnik


 O GLOBO

27/04/2013

Um corpo estranho tem atravessado como um cometa a lista dos best-sellers nas últimas semanas: 'Toda poesia', de Paulo Leminski

Um corpo estranho tem atravessado como um cometa a lista dos best-sellers nas últimas semanas: o volume “Toda poesia” de Paulo Leminski. Um catatau cor de laranja em meio aos não sei quantos tons de cinza, um quinau de poesia flanando distraidamente em meio à corrida dos mais vendidos, com um pique vencedor (estou brincando, aqui, com o título de um dos seus livros, o “Distraídos venceremos”). Como diz o poeta curitibano, a poesia é um inutensílio que não tem nenhuma outra justificativa que não seja “a própria razão de ser da vida”, e de fazer parte, como o orgasmo e a amizade, “daquelas coisas que não precisam ter um porquê: pra que porquê?”. É ironicamente empolgante, além de intrigante, que a obra reunida do poeta, morto em 1989, se destaque de repente, inesperada, em meio à multidão de livros feitos ostensivamente para vender.

Ninguém, ao que eu saiba, sabe explicar a razão do fenômeno (mais de 20 mil exemplares em um mês e meio). E como os fenômenos de venda tornaram-se a “razão de Estado” de tudo quanto gira sob o controle de um mercado altamente administrado, é no mínimo curioso esse não saber sobre um certo poder imprevisível da poesia. Esperados sucessos que fracassam são mais comuns, nesse mundo de cálculos, do que fracassos que sobem inesperadamente à parada de sucessos. Pois estes desvelam, ao contrário, a emergência do incomum. Todos os editores que se aventuram no gênero trabalham com o fato de que o alcance monetariamente palpável da poesia é limitado por definição: “poesia não vende”. Envolvido na edição do livro com um texto escrito para ele (“Nota sobre Leminski cancionista”), pude ver de perto o quanto não estava no horizonte da editora uma expectativa de recepção quantitativamente maiúscula.

É certo que o senso poético de Leminski conversa de perto com a sua experiência publicitária – uma prontidão certeira, uma agilidade verbal e mental (que se liga também à sua relação com as artes marciais e a com a poesia japonesa), com a concisão e a vocação icônica que o fazem encontrar imagens sintéticas derivadas de clichês postos à deriva. Mesmo a prosa experimental e vanguardista do “Catatau” não deixa de ser uma coleção alucinante de jingles alterados sobre frases feitas. A dupla face vanguardista e pop, anunciada pela poética leminskiana, encontrou uma perfeita correspondência no hit maker Arnaldo Antunes, que a desenvolveu na poesia e na canção. A expansão desse campo talvez tenha contribuído para a onda de interesse retrospectivo por Leminski.

O bigode do “polaco louco paca”, à la Solidarnosc, já era, por sua vez, uma espécie de layout ambulante, um autorretrato metonímico que, aproveitado engenhosamente no projeto gráfico e promocional do livro, funcionou certamente como uma senha chamativa imediatamente reconhecível no meio do turbilhão das gôndolas das livrarias. Toda a guerra editorial contemporânea se aplica, aliás, a conquistar um lugar visível no congestionado espaço das megalivrarias, pressionadas pelo ritmo contínuo dos lançamentos buscando fisgar a atenção instantânea do comprador. A resposta instantânea realimenta, num momento-chave, a atenção do vendedor, que põe ou não o livro em espaço de maior destaque, promovendo vendas que, se sobem à lista dos mais vendidos, alavancam mais vendas, convertendo sucesso em sucesso. É de um tal círculo virtuoso e tautológico, disparado por fatores em parte imponderáveis, que dependeu a “laranja mecânica” de Leminski, associada ao carisma da sua figura e ao atrativo do objeto gráfico, para vir a contrair o vírus do best-seller.

Tudo isso continua a não explicar o porquê do sucesso insólito, embora sirva para situá-lo um pouco. Mas afinal, podemos perguntar também, pra que porquê? Um público de muitas idades, e jovem em essência, dá sinais de achar graça na gratuidade vitalmente comprometida da poesia de Paulo Leminski. Pois todo o circuito material e comercial descrito acima não avançaria numa direção tão improvável se não fosse guiado por uma necessidade interna e por uma confirmação de reconhecimento, passado o primeiro disparo do processo. Há uma sensível necessidade de poesia no ar, e ela foi identificada nesse poeta inquieto, capaz de ir fundo nas suas formas ancestrais e nas suas mutações contemporâneas, de transcender polaridades e de exercer a leveza profunda.

<SW,15>Durante algum tempo Curitiba não queria deixar Paulo Leminski morrer, como se ele tivesse que continuar imaginariamente ali, frequentando os mesmos lugares e as mesmas rodas. Mas o grande teste de um poeta é morrer, quando ele revela, como é o caso, o seu surpreendente poder de renascer.


segunda-feira, 22 de abril de 2013

De grão em grão - Willian Vieira e Rodrigo Martins

Revista Carta Capital - 22/04/2013

 


Na última sexta-feira 12, na sede da Primeira Igreja Batista de Campo Grande (MS), um exército de homens de terno e gravata com Bíblias a tiracolo se reuniu para um evento. Não era propriamente um culto. Entre os 350 pastores havia 25 parlamentares, como a vereadora Rose Modesto (PSDB), liderança da bancada evangélica local e autora da lei que obriga o poder público a apoiar eventos evangélicos. Herculano Borges (PSC), que aprovou projeto para proibir a instalação de máquinas de preservativos nas escolas, e Alceu Bueno (PSL), opositor do reconhecimento de uma associação de travestis como de utilidade pública, também vieram. Mas o nome mais aguardado era o do pastor Wilton Acosta. Ali para abrir o Encontro Estadual de Lideranças Evangélicas, o presidente do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp) prestigiava ao mesmo tempo a criação da Frente Parlamentar Evangélica da cidade. Daí os melhores pastores locais estarem dispostos em fila, como soldados da batalha maior: “Alinhar os evangélicos para disseminar valores cristãos por meio de leis políticas públicas”.

Atraso. A agenda moralista ganha força nas periferias, onde as igrejas são mais atuantes. Foto: bFábio Motta/ Estadão Conteúdo
Atraso. A agenda moralista ganha força nas periferias, onde as igrejas são mais atuantes. 

O evento é sinal de um fenômeno bem maior. Enquanto os holofotes da sociedade civil e da imprensa focam na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, desde o mês passado presidida por um pastor, Marco Feliciano (PSC-SP), que já fez declarações homofóbicas, racistas e machistas, um processo mais silencioso se alastra pelo País. Nos moldes da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso, com seus 73 parlamentares, o número de bancadas evangélicas em assembleias legislativas e câmaras municipais, em capitais e cidades do interior, tem disparado. Já há frentes parlamentares evangélicas (FPEs) organizadas em 15 estados brasileiros, a maioria criada desde 2012. São mais de cem os deputados estaduais evangélicos organizados. Já o número de FPEs nos municípios é difícil de calcular. “A expectativa é passar de 10 mil vereadores evangélicos”, garante Acosta.

Espécie de tutor do movimento, o pastor coordena um levantamento dos parlamentares ligados à causa em todo o Brasil. Prestes a entrar num voo para o Acre, ele afirma: “O objetivo é verticalizar a pauta parlamentar nacional, aprovando leis em todas as assembleias e câmaras. Todas”. Com oratória fluida e vertida em termos jurídicos, Acosta explica como deve instalar um braço da Associação de Parlamentares Evangélicos do Brasil (Apeb) em cada cidade. “Já temos 15 coordenações estaduais. Logo serão 28. Cada coordenador tem a missão de instalar uma unidade em toda cidade de seu estado. Hoje, quando detectamos um projeto contra nossos valores, contatamos o parlamentar para agir. Mas leva tempo. No futuro será automático.”

 A verticalização é levada a sério. Em 30 de novembro, Dia do Evangélico em Brasília, 700 líderes de 20 estados, boa parte parlamentares e juristas, se reuniram para decidir, com toda sua modéstia, os rumos do País. Representantes da Apeb e do Fenasp leram seus relatórios de atividades. Deputados federais da FPE do Congresso falaram de suas experiências. Daí emergiu a "agenda estratégica nacional", que deve pautar as ações de políticos evangélicos nos níveis estadual e municipal. Entre os pontos estão impedir os avanços nos códigos Penal e Civil, envolvendo aborto, posse de maconha, criminaização da homofobia e casamento gay. "Para trazer o nacional para o local, faremos mais encontros em todo o País", afirma o vereador Herculano Borges (PSC), primeiro-secretário da Apeb. "A ide ia é subsidiar os vereadores com fundamentos legais, para que ajam de forma local." Ou seja, lutar contra o "avanço" dos movimentos gays e feministas. "Quando barramos as propostas deles no Congresso, eles tentam implantá-las nas cidades e estados. Aí criam jurisprudência. Não vamos permitir isso."

O mesmo tem ocorrido no âmbito estadual. Ao liderar o movimento que criou, em 2011, a Frente Parlamentar Evangélica da Assembleia de São Paulo, o deputado Carlos Cezar (PSC) deixou claros os objetivos: ser contra a descriminalização da maconha, o casamento gay e o aborto. "Não somos bobos. Sabemos que são temas de competência do Congresso, mas o que falamos aqui repercute em Brasília. Afinal, os deputados federais e senadores se elegem com apoio de deputados estaduais e vereadores. A base tem direito de cobrar uma postura firme deles no Parlamento." Hoje, 15 dos 94 deputados paulistas integram o movimento evangélico.

Atuamente, há duas frentes na batalha dos evangélicos na política. Uma volta-se aos interesses institucionais e simbólicos. O objetivo é conseguir dividendos para as igrejas, como manter o status quo das leis de radiodifusão, arrebanhar pedaços de ruas para templos, não pagar IPTU e instituir leis que reconheçam a cultura evangélica e forcem a abertura dos cofres públicos a tais eventos, assim como conseguir maior espaço simbólico, como nomear praças e logradouros com símbolos religiosos e instituir feriados como o Dia do Evangélico. Exemplos abundam. O próprio Borges ajudou a aprovar um projeto que reconheceu a música gospel como manifestação cultural, o que abriu espaço para a prefeitura financiar a Quinta Gospel e a Marcha para Jesus. "Hoje conseguimos ajuda para contratar os músicos, montar a estrutura." Proposição do vereador João Oscar (PRP) autorizou a prefeitura de Belo Horizonte a vender uma rua para a expansão da igreja que freqüenta. Em São Paulo, a Câmara aprovou em 2012, às vésperas da eleição, um projeto que permite à Igreja Mundial em Santo Amaro ocupar uma rua. Diz-se que a aprovação veio em troca do apoio a José Serra (PSDB). No Recife, foi aprovada a lei que institui a Semana da Cultura Evangélica, obrigando a Secretaria de Cultura a promover (e financiar) debates, "palestras em instituições de ensino" e "apresentações artísticas em praças públicas".

Proibir bares a menos de 300 metros de igrejas foi a proposta do vereador de Sorocaba Benedito Oleriano (PMN). Os fiéis precisavam "de paz para orar". O mesmo levou uma vara de marmelo à Câmara para defender o direito dos pais de bater nos filhos. Com o Livro dos Provérbios em mãos, sentenciou: "Não retires a disciplina da criança, porque, fustigando-a com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara e livrarás sua alma do inferno". Enquanto isso, os evangélicos de Maringá conseguiram, via projeto de lei, transferir a data da Marcha para Jesus para coincidir com a Parada Gay, e a Câmara do Rio concedeu ao pastor Silas Malafaia a medalha Pedro Ernesto, dada a quem se destaca na sociedade.

Provas da ocupação do discurso e dos espaços públicos pela religião. Assim, era uma vez uma Praça Chico Mendes em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. Homenagem ao ativista morto na Amazônia, o espaço foi convertido pela prefeita evangélica Aparecida Panisset em Praça da Bíblia. "Antes essa praça era relacionada a crimes e hoje manifesta a palavra de Deus", disse no evento. Igualmente simbólico, o Dia do Evangélico foi aprovado em dezenas de cidades. Mas o que mais preocupa os laicos é a frente da ação voltada para projetos de cunho moral, em prol de um ideário conservador de nação, família e vida. Não foi apenas Carlos Apolinário (DEM) a propor a instituição do Dia do Orgulho Hétero e o banheiro gay em São Paulo. Em Ilhéus (BA), o vereador Alzimário Belmonte (PP) tentou transformar em lei a obrigatoriedade do Pai-Nosso antes das aulas. Projetos mais esdrúxulos pipocam País afora.

Para tal, os evangélicos dependem dos números. E têm conseguido. Há casos emblemáticos, como a pequena São Leopoldo (RS), onde seis dos 13 vereadores São evangélicos (PRB, PSB, PP. PT, PSL e PSDB), um crescimento de 100% em relação à última legislatura. Em cidades maiores, o fenômeno é o mesmo. No Rio eram quatro evangélicos na última gestão: hoje são sete, aumento de 75%. Em São Paulo, o número subiu de oito para 11. Em Aracaju eram dois, agora são quatro. No Recife, eram seis, e agora são 11. Em Curitiba, a bancada surgiu em 2013 com 11 vereadores: quase um terço da casa. A regra é clara: sem maioria para aprovar seus projetos, os evangélicos formam alianças e usam a barganha política para impedir propostas progressistas.

Embalado pelo crescimento da bancada, o vereador sindicalista evangélico Luiz Eustáquio (PT) criou uma FPE na Câmara do Recife. Entre os temas discutidos estão formas de impedir o aborto, a legalização da maconha e o casamento gay, explica o vereador, recém-chegado de um encontro da FPE no Congresso, em Brasília. "Fui lá me inspirar e aproveitei para participar do culto na Câmara." Mas temas do Congresso cabem no âmbito municipal? "E importante replicar os temas aqui para fortalecer o debate nacional." Um exemplo é a Lei do Nascituro. Um projeto tramita na Câmara para estabelecer os direitos dos embriões. "Talvez caiba propor algo municipal." O mesmo Dia do Nascituro foi aprovado em dezenas de cidades, o que leva o poder público a investir em palestras e seminários que ataquem a legalização do aborto.

"A gente tem observado a replicação desses projetos no âmbito do Congresso também nos estados e municípios", diz Kauara Rodrigues, assessora parlamentar do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), ONG que monitora no Congresso Nacional projetos relativos aos direitos das mulheres. Das 33 proposições em tramitação hoje, 30 trazem retrocesso, a maioria de autoria da bancada evangélica, afirma. O mesmo ocorre em , âmbito municipal. "O avanço dos evangélicos tornou a luta muito mais desfavorável." Pois, além de propor leis que impedem o avanço da legislação reprodutiva, as FPEs têm centrado fogo na fonte de recursos das ONGs. Dias atrás, deputados requereram uma CPI para "investigar a existência de interesses e financiamentos internacionais para promover a legalização do aborto no Brasil". Exigir transparência é parte da prática democrática.
"O problema é quando essas ações servem não para punir um grupo, mas para negar políticas públicas para segmentos que legitimamente, por razões históricas, se sentem excluídos", alerta Marilene de Paula, coordenadora de direitos humanos da Fundação Heinrich Bõll.

Para mulheres, gays e adeptos de religiões de matrizes africanas, mais grave do que o avanço sobre o poder público é o impacto social na vida dessas minorias. "Há uma capilaridade grande dessas igrejas nas periferias" diz Rodrigues. "A pauta é sempre conservadora. A mulher vai ao culto e ouve o pastor pregar contra a camisinha, os homossexuais, dizer que lugar de mulher é satisfazendo o marido." C) Censo reitera o crescimento do pente-costalismo na base da pirâmide social: 64% do grupo ganha até um salário mínimo e 42% tem ensino fundamental incompleto. "É nessas periferias desassistidas que essas igrejas acabam servindo como fronteira moral, como fortaleza contra o tráfico de drogas e a violência", diz o sociólogo Ricardo Mariano, da PUC-RS. "Ao servir de suporte comunitário, ganham espaço para implantar sua agenda moralizante."

Os símbolos do retrocesso em questões de liberdade sexual ligados à religião pululam não apenas nas igrejas como na internet. Há uma miríade de blogs a monitorar projetos de lei e ações do Executivo e vídeos gravados direto do púlpito, como o famoso "Como ser submissa a uma pessoa omissa?" Um exemplo mais radical chegou aos ouvidos de Rodrigues. A jovem Noêmia chegou em casa após ir ao bar com os amigos. O irmão achou que ela estava possuída pelo demônio e chamou três amigos evangélicos da rua, que oraram, arrancaram seus piercings e lhe deram uma surra de Bíblia. A garota procurou o CFEMEA, que encaminhou o caso à Secretaria de Direitos Humanos. Outra cena chocante aconteceu em Olinda. Centenas de evangélicos com faixas protestaram em frente a um terreiro de umbanda. Testemunhas garantem que houve depredação e ameaças de morte.

Mais do que ninguém, os homossexuais têm fatia mais farta desse retrocesso. Não apenas as FPEs travam luta cerrada contra a criminalização da homofobia e associam homossexualismo à pedofilia como o deputado tucano João Campos, presidente da frente evangélica no Congresso, propôs que a resolução do Conselho Federal de Psicologia, que não permite "cura" aos gays, fosse revogada. "Temos de aprovar leis como no México, onde quem exerce função religiosa fica impedido de exercer função governa mental", defende Toni Reis, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. "Assistimos hoje a um aumento visível da homofobia no Brasil, o que tem uma ligação direta com essa onda de incentivo ao ódio e à intolerância." Exemplos da pressão evangélica, diz, foram a suspensão do material educativo do projeto Escola sem Homofobia (o "kit gay") e o veto presidencial à campanha de prevenção da Aids a jovens gays no carnaval.
o governo, o assunto é tabu. Não apenas a presidenta Dilma Rousseff tem se mantido silente diante da polêmica a envolver Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias como a Secretaria de Políticas para as Mulheres não se pronuncia sobre o tema. A titular da pasta, Eleonora Menicucci, é abertamente a favor do aborto. Sua indicação foi vista como afronta pelos evangélicos. Mas seu silêncio incomoda ainda mais as feministas. A Secretaria de Diretos Humanos tampouco respondeu a questões sobre o tema. O silêncio é total.

Mas qual é, afinal, o poder de fato dos parlamentares evangélicos sobre o futuro moral do País? "Não dá para subestimar o voto evangélico nem a organização política das igrejas", diz Ari Oro, professor de antropologia da religião da UFRGS e autor de Os Votos de Deus: Evangélicos, política e eleições no Brasil. "Se esse crescimento vai continuar dependerá da organização das próprias igrejas." O professor cita o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, tratado por outras como modelo de gestão política. Sua cúpula dirigente decide, verticalmente, quais os candidatos em cada eleição e quantos, para evitar a repartição de votos. "Já ouvi pastores de igrejas menores dizendo que é preciso adotar o modelo da Universal." Se outras igrejas se organizarem de modo a garantir a transformação dos fiéis em candidatos eleitos, a tendência é uma participação cada vez maior de evangélicos na política.

Igreja com a maior representação evangélica no Congresso (24 deputados), a Assembleia de Deus preparou, em 2010, uma ofensiva para as eleições municipais. Queriam eleger um vereador em cada um dos 5.570 municípios. "Infelizmente, não atingimos a meta. Mas 60% das cidades têm ao menos um vereador ligado à nossa igreja", afirma o pastor Lélis Washington Marinhos, presidente do conselho político da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil. Para o Censo, há 12 milhões de fiéis da Assembleia, igreja que mais cresceu nos últimos dez anos: 4 milhões de novos adeptos. "Mas somos entre 18 milhões e 20 milhões. Por isso entendemos que estamos sub-representados. Deveríamos ter ao menos 50 deputados federais/" Isso porque o engajamento político dos assembleianos começou há menos de 20 anos. A igreja existe desde 1910. "Os pastores eram refratários à política, mas as igrejas dependem do poder público para ter alvarás, licenças para obras, verbas para tocar projetos sociais", lista. "Sem falar dos projetos que ameaçam a família."

Não que essa guinada moral seja prerrogativa exclusiva dos evangélicos. "Eles vocalizam esse conservadorismo que acaba pulverizado na sociedade e no Congresso", pondera a professora Maria das Dores Machado, da UFRJ. Oro, da UFRGS, concorda. "Desde a Constituinte de 1988, a Igreja Católica tentou formar um bloco parecido, nos mesmos moldes." A Renovação Carismática tem eleito políticos todos os anos, ainda que menos do que a Universal, por exemplo. "Sempre que a discussão tem base moral, se envolve a vida, a família e os costumes, evangélicos e católicos se unem." Exemplo é a criação das chamadas "frentes da família", com católicos e evangélicos lado a lado.

Mas a política dita laica também tem responsabilidade. "A esquerda, desde 2002, fez alianças fortes com os neopentecostais, misturando grupos feministas e pró-homossexuais com segmentos religiosos ultraconservadores, o cúmulo do pragmatismo", diz Mariano. Um cenário difícil de mudar. De 2000 a 2010, a população evangélica arrebanhou 16,1 milhões de fiéis, somando 42,3 milhões de brasileiros. Uma multidão encabeçada por dezenas de igrejas, cada uma com seus canais de rádio e tevê. Só a Universal, estima-se, é dona de 20 canais de tevê e 40 emissoras de rádio.

"Não por acaso, parlamentares temem irritar esses grupos e provocar um boicote ou reação desse poderio midiático", avalia Mariano. Assim, a influência evangélica na política se dá não apenas pelo confronto direto nas sessões, mas por meio de uma espécie de tática de não agressão. "Daí você entender por que RR Soares e José Wellington têm sempre os tapetes vermelhos dos executivos de estados e municípios e mesmo do Planalto. Isso cristalizou a legitimação do ativismo político religioso no Brasil."
ma das últimas vitórias do segmento foi o projeto de lei que prevê o pagamento de um salário por 18 anos a mulheres estupradas, batizado de "Bolsa Estupro". Pelo projeto, psicólogos cristãos atenderiam as vítimas para convencê-las "sobre a importância da vida". Tudo pago pelo Estado. Pensando nisso, a procuradora do município de São Paulo, Simone Andréa Barcelos Coutinho, defende uma reforma no código eleitoral que acabe com as bancadas religiosas. "Se tivéssemos uma Constituinte hoje, o texto dela resultante seria certamente muito mais conservador, em nada parecido com a Constituição Cidadã que hoje temos e com a qual o STF nos tem socorrido."

Na avaliação do pastor Ricardo Gondim, líder da Igreja Betesda, a corrida política dos evangélicos é reflexo da disputa entre as igrejas no mercado religioso. "Elas querem ter cada vez mais fiéis e mais representantes políticos. Mas parecem esquecer que a expansão do protestantismo só foi possível com a conquista do Estado laico." Acusado pelo mainstream evangélico de ser "herege" por defender que temas como o casamento gay e o aborto devem ser vistos como questão de direitos civis e saúde pública, respectivamente, Gondim teme que o radicalismo evangélico ameace a liberdade religiosa no País. "Assim como não quero um burocrata de Brasília dizendo o que posso dizer em meu púlpito, o Legislativo e o Judiciário não podem tomar uma decisão para agradar a este ou àquele grupo religioso. Queremos ter uma teocracia?"

as há limites à ascensão conservadora. Primeiro, porque os evangélicos mais radicais tendem a não emplacar candidatos em eleições majoritárias, visto a rejeição da sociedade laica a pautas morais extremas. Segundo, porque o voto dos evangélicos já não está mais confinado na direita como outrora. "Hoje, os votos dos evangélicos estão distribuídos em diversos partidos, algo que tende a prosseguir", diz o sociólogo André Ricardo Souza, da UFS-Car. "Com maior acesso a programas sociais, renda e educação, a autonomia dessas pessoas tende a aumentar. Por isso, não vejo um futuro teocrático fundamentalista evangélico."

E Jesus a salvou

Única vereadora da oposição em Curitiba, Noemi Rocha acaba de criar uma bancada evangélica com quase um terço da Câmara

Líder da oposição na Câmara de Curitiba, Noêmia Rocha (PMDB) costuma brincar que é "líder de si mesma". Todos os outros 37 vereadores, a despeito do partido pelo qual tenham sido eleitos, decidiram apoiar o prefeito Gustavo Fruet (PDT) ou se declarar "independentes". Mesmo assim, a única oposicionista da Casa não se sente isolada. Integrante da igreja Assembleia de Deus e filha de pastor, ela formou, no início do ano, a primeira bancada evangélica da cidade, com 11 vereadores, quase um terço do total.

Na seqüência, coletou 32 assinaturas para constituir a Frente Parlamentar em Defesa da Família. "Promovemos seminários para discutir temas como aborto, pedofilia, drogas e outros temas que ameaçam a família brasileira", afirma. Em seu segundo mandato, a vereadora diz que passou a infância ouvindo os pastores de sua igreja dizendo que política e religião não se misturam. Pensa diferente.

"A igreja espiritual não precisa da política para nada. Mas a instituição, sim. Hoje, Curitiba tem 56 casas de recuperação de dependentes químicos mantidas por igrejas. Mas nem sempre elas têm estrutura adequada, profissionais de saúde, recursos para se manter. Sofrem com multas, fiscalizações e ameaças de fechamento. Mas o que fazer? Deixar os viciados na rua?"

Por ora engajada no projeto de criar um centro especializado para a recuperação de gestantes viciadas em crack, financiado com recursos da União, Noêmia também se preocupa com a situação dos templos religiosos de Curitiba. "Muitos precisam passar por reformas e os pastores não sabem como cumprir a legislação contra incêndios, como obter licença para as obras ou alvarás de funcionamento. Estamos aqui para ajudá-los."

domingo, 21 de abril de 2013

A neta rouba a cena - ELIAS GROLL


Impasse na terra - José de Souza Martins


Entrevista - Maria Bethânia

O Estado de S.Paulo 21/04/2013
 
“ELE FOI O MELHOR DOS MELODISTAS”

Sua ligação pessoal e artística com Vinicius de Moraes sempre foi muito conhecida, e você já dedicou um disco e umshow ao poeta. No entanto, sua relação com Tom Jobim é pouco falada. Como foram os seus encontros com o maestro? Eram frequentes? Chegaram a conviver?
Vinícius era meu amigo, de perto, e isso logo que cheguei no Rio. O Tom eu conhecia pelas canções que chegavam na Bahia, e que ouvíamos apaixonados, mas pessoalmente demorou um pouco. Tivemos alguns encontros, promovidos por Vinicius, e mais tarde, pelo Chico Buarque, quando ele e Tom me deram a canção Anos Dourados, ou então eram encontros em gravações de TV, especiais de Roberto Carlos, almoços, e em sua casa para a entrega da canção a que me refiro.

Você chegou a acompanhar algum processo de criação de Tom e Vinicius? O que poderia falar sobre a relação criativa da dupla?
Não tive esse privilégio.

Sabemos que Chega de Saudade teve um impacto imenso sobre os músicos da sua geração. Caetano, Chico, Gil e Gal costumam lembrar em detalhes o momento em que ouviram pela primeira vez a interpretação de João Gilberto. Você se recorda do momento em que ouviu pela primeira vez alguma canção de Tom e o impacto que isso lhe causou?
Na Bahia, tudo que chegava da bossa nova era um acontecimento. Lembro de achar muito bonito o que ouvi da gravação de João Gilberto trazida por Carlos Coqueijo, mas me arrepio até hoje quando lembro ou ouço o disco da Elizeth Cardoso, apresentando a música extraordinária de Tom e Vinícius. Lembro também da novidade, da beleza dos acordes que Dori Caymmi trazia.

Você nunca foi ligada à bossa nova e nem a nenhum outro movimento. O que achava da bossa nova como ouvinte? O que ainda costuma ouvir desta época, nos dias de hoje?
Acabei de falar nesse disco da Elizeth, Carlinhos Lira, Silvinha Teles, Johnny Alf e minha adorada Nara, que fez a grande revolução, como musa, intérprete gloriosa.

Que aspectos da obra de Tom Jobim mais a comovem? Se você tivesse que escolher uma obraprima dele, qual seria?
Tom é para mim o melhor de todos os melodistas. Para mim, está junto de todos os grandes: Bach, Chopin, Villa Lobos, etc e tais. A sua música mais bonita? Olha Maria vem em primeiro lugar.

Bessa-Luís, Ecad etc. - Caetano Veloso


 O GLOBO

21/04/2013

Suponho que seja hora de amadurecer a conversa sobre direitos autorais: não é 'se mexer, desaba'; é 'se não pode mexer, não anda'

Sou grato ao colunista da “Folha de S.Paulo” João Pereira Coutinho por ter sugerido que atentássemos para Agustina Bessa-Luís. E a Maria Helena Guimarães por ter me presenteado com a preciosidade que é o “Breviário do Brasil”, dessa autora impressionante, cuja publicação em terras brasileiras é uma exigência do nosso projeto de nação: ou edita-se por aqui esse livro magnífico ou os brasileiros avisados devem começar a importá-lo de Portugal. Uma estilista como há poucos, em qualquer língua, Agustina dá-nos um retrato imediato e profundo do nosso país — e uma lição de bem escrever.

Os cariocas merecem (e necessitam) ler o que o Rio a levou a compor com palavras. Não são os elogios e as queixas costumeiros. São revelações múltiplas, frases de perfeita elegância e naturalidade que descrevem como que imediatamente as revelações que foram feitas à autora e que se tornarão revelações para cada possível leitor da cidade. De minha parte, arrebata-me saber que somos um povo trágico disfarçado. E comove-me ler Agustina citando Walfrido Moraes, autor que conheci pessoalmente, por ser pai de minha amiga de adolescência Jussara, mas de cujo belo “Jagunços e heróis” devo o conhecimento a Vitor Gradim. Os trechos de Walfrido citados por Agustina ganham ainda mais beleza em razão do gosto literário de quem os escolheu. A citação escolhida (e glosada) dentre os versos de João Cabral de Melo Neto é reveladora da profundeza a que ela chega com as palavras.

Ainda estou no meio do “Breviário” de Agustina. Mas já estou apaixonado e recomendo enfaticamente. Brasília, Manaus, João Pessoa, Recife, Feira de Santana (o retrato do pintor Raimundo Oliveira é arrasador, com uma metáfora sobre o jeito de sua mãe, que, por sua vez, resulta em comentário sobre metáforas), tudo o que diz o país. Lampião e Maria Bonita são recontados nas mais surpreendentes frases, que se tornam assombrosas à medida que vão se mostrando indicadoras de observações sobre o que somos socialmente. E a versão bessa-luisiana da unicidade, originalidade e especialidade do Brasil é a mais forte de quantas há, já que não nasce de enganos de grandeza (nem de desejo de tê-los) mas de evidências experimentadas e detalhista olho crítico. É de tirar o fôlego. Eu tinha guardado em algum lugar da mente o nome Agustina Bessa-Luís. Seguramente já lera algo sobre “A sibila”, seu romance mais famoso. Mas nunca tinha lido nada escrito por ela. Estou impressionado.
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A carta assinada por muitíssimos compositores, músicos e cantores, em tom de defesa do Ecad contra uma suposta manobra sinistra para destruí-lo, não contou com minha assinatura, e eu ia escrever e-mails para, pelo menos, Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Abel Silva, mas a estreia do “Abraçaço” em Sampa, logo em seguida à estreia carioca no Circo Voador e a uma apresentação em Fortaleza, não me deixaram cabeça nem energia para nada. Quando eu ia escrever, a carta ainda não tinha as assinaturas que exibe hoje. Eu ia explicar minha pausa para ponderação. Como o assunto é notório, faço-o aqui.

Há um projeto de lei no Senado esperando para ser votado em urgência. O Ministério da Cultura tem uma proposta que é bastante próxima da que é feita no PLS129. Falei brevemente com a ministra em São Paulo; ouvi demoradamente, já no Rio, um assessor seu que me pareceu muito claro. Conversei com Leoni, Tim Rescala, Gil, Emicida, li os artigos de Ivan Lins e Sérgio Ricardo. Os manifestos dos defensores da manutenção do modus operandi atual do Ecad são pouco ou nada técnicos — e são alarmistas: querem acabar com o Ecad e deixar tudo voltar ao caos que era antes, tal como Ipojuca Pontes fez com a Embrafilme. “O Ecad e o Direito do Autor: mexeu nisso, tudo desaba”, diz Abel. Tendo a pensar que é hora de arrefecer os ânimos e tentar pôr Leoni e Bastos pensando juntos, para ver se aproveitamos a oportunidade de andar com o tema. Nem o Ministério nem o PL propõem a extinção do Ecad. Ambos enfatizam a necessidade de supervisão (o PLS129 propunha que feita pelo Ministério da Justiça; o Minc tomaria a tarefa para si). Não creio que Abel ou Fernando estejam protegendo vantagens indevidas; tampouco creio que Tim Rescala e Ivan Lins estejam lutando pelo poder das emissoras de TV. Suponho que seja hora de amadurecer a conversa. Nunca fui bom nisso de contas, administração, leis. Mas tenho vocação para o centro e, eu que já pedi que Silas Malafaia intermediasse um diálogo entre quem não admite que o assassino de Lennon seja louvado como o enviado da Santíssima Trindade e o pastor que propôs isso, acho que posso pedir que Sérgio Ricardo e Fernando Brant se entendam. Não é “se mexer, desaba”; é “se não pode mexer, não anda”.


sábado, 20 de abril de 2013

A ARTE DE EDITAR ARTE

UM EDITOR E A ARTE DE ANDAR NA CONTRA MÃO DO MERCADO



Quando não era hábito publicar monografias de artistas, Charles Cosac editou há 16 anos um livro de Tunga; hoje, na era digital, ele vai criar um selo para lançar edições exclusivas destinadas a leitores e colecionadores exigentes

O Estado de S.Paulo - 20/04/2013

ANTONIO GONÇALVES FILHO
MARIA FERNANDA RODRIGUES

Em junho de 1997, o mercado viu chegar às livrarias um volume inusual com mais de dez tipos de papel e duas centenas de ilustrações. Não era exatamente a espécie de livro de arte que circulava entre os leitores brasileiros. Compreensível. Nem o artista que assinava o livro Barroco de Lírios, Tunga, nem seu editor, Charles Cosac, eram tipos convencionais. Tunga, um dos vetores da arte contemporânea brasileira, trabalha com chumbo e materiais corrosivos em suas obras. Charles está longe de ser um editor burocrático. Colecionador de arte, sua editora, criada para publicar livros da área, viria a se tornar uma referência ao lançar monografias de outros artistas contemporâneos, sozinha ou em parceria com instituições como a Bienal de São Paulo. Foi a primeira editora latino-americana a coeditar um título com o Museu de Arte Moderna de Nova York (o catálogo da exposição Tangled Alphabets, deMira Schendel e Leon Ferrari).

Em seus 16 anos de existência, a editora passou 15 deles no vermelho, inicialmente bancando livros de arte sem o amparo de leis de incentivos. Michael Naify, o sócio americano e cunhado de Charles Cosac, socorreu financeiramente a editora que, ao enveredar por outras áreas – literatura, antropologia, filosofia, arquitetura, moda, cinema –, obteve melhores resultados financeiros. Isso permitiu a expansão do catálogo e a publicação de livros infantojuvenis de temas complexos – foi a primeira editora a lançar um livro gay para crianças, Meu Amigo Jim. Caracterizada pela ousadia de seus projetos gráficos, a Cosac Naify já recebeu mais de 50 prêmios nacionais e internacionais, tendo no catálogo ficcionistas como Enrique Vila-Matas e ensaístas como Arthur Danto. Charles Cosac recebeu a reportagem do Sabático para conversar sobre o passado e os planos da editora.

Por que Tunga foi escolhido o primeiro autor da editora e como era manter um negócio então voltado exclusivamente para a edição de livros de arte?

Voltei da Inglaterra com a ideia de abrir uma editora e sabia que ela só iria crescer no momento em que eu sentisse alguma segurança. Estava havia muitos anos fora, tive de reaprender o Brasil. Não conhecia São Paulo, não conhecia ninguém aqui. Existia também o entusiasmo do início, eu tinha 32, 33 anos. Tunga e sua obra são muito importantes para mim, pautando, de certa forma, o início e o aniversário de 10 anos da editora – quando fizemos a caixa Tunga. Ele é da casa. Consegui ao longo desses anos reunir um grupo fiel de artistas. Já vamos para o quarto livro do Tunga e do Arthur Omar, o quinto do Miguel Rio Branco e do Waltercio Caldas. É como se fosse uma galeria com a qual você tem uma relação não tão pontual. Apesar das dificuldades, é muito gratificante saber que vivo agora o terceiro ciclo da editora com os mesmos artistas com os quais comecei 15, 16 anos atrás.

No início sua ideia era publicar monografias de artistas ou foi uma consequência? 

Eu tinha muito contato com a Yale University Press, e ela abriu portas para mim. Licenciei vários livros da Yale quando John Nicoll estava lá. Como minha editora era pequenininha, era difícil quebrar nichos – e eu precisava de muitas cartas de referência e de crédito. Nicoll me ajudou muito, abrindo portas, inclusive em gráficas no exterior, mas sobretudo na relação com outras editoras. Depois vieram os livros da Tate Publishing. O primeiro livro que comprei de Nicoll foi Arte na América Latina, de Dawn Ades. Ao voltar ao Brasil, conheci Arthur Omar e fiz Antropologia da Face Gloriosa, depois do livro do Tunga. Enfim, ela começou como uma editora de história e teoria da arte. Começou assim porque eu me sentia seguro nesse campo. E, depois, não havia editora disposta a fazer os livros deles.

Antes de abrir a editora, você criou uma coleção de arte latina na Universidade de Essex, que depois virou um museu. Você tinha planos de trabalhar com museus antes de chegar ao Brasil?

Não. No momento em que saí da Inglaterra, eu já tinha aberto mão de todos os meus sonhos. Já sabia que não seria acadêmico, porque não tinha disciplina e temperamento para aquilo, e que não conseguiria trabalho em museu, porque sou brasileiro e não tinha visto de trabalho. Mas eu também queria muito desenvolver um projeto no Brasil.

Quando a Cosac Naify foi inaugurada, já existiam incentivos fiscais para publicação de livros, mas você se recusava a publicar um livro pela Lei Rouanet. Qual a razão?

Eu não diria que me nego, masmantenho o mesmo ponto de vista. Consegui estudar sem o CNPQ ou a Capes e não queria ficar dependente da Lei Rouanet, que é linda e maravilhosa, mas pode arquivar muitos projetos, como a Lei Sarney o fez. Eu não podia abrir uma editora alicerçada numa lei de incentivo à cultura. Tínhamos um capital para investir em livro. Nos casos dos livros da editora que foram patrocinados, eu fui procurado. Eu não procurei. São sempre as mesmas pessoas que ganham. E é um nicho que contamina. São duas tabelas – a do design para o livro patrocinado e a do livro não patrocinado. É uma coisa meio engessada: eles dão o dinheiro e impõem o título. E é muito difícil que combine, ou seja, que eu também queira fazer o livro. Eu não teria paciência de me aproximar de gerentes de marketing e donos de banco para conseguir patrocínio. Mas, paralelas às leis de incentivo à cultura, existem parcerias, as coedições, mais frutíferas.



● Saindo do apoio à edição e indo para a compra de livro. As compras governamentais são importantes no faturamento da editora?

Muito. Não saberia dizer em porcentual, mas o Brasil é o país que mais compra livros e isso tem atraído várias editoras estrangeiras. Essa é uma atividade que me incomoda menos porque existe a licitação. Mandamos o livro e eles escolhem, se gostarem. Você não se sente envolvido pessoalmente. É dinheiro público. Se eu perder dinheiro meu, perdi. Mas, se perder um que não é meu, é mais delicado.

● Quem era seu modelo de editor quando abriu a editora? Como convenceu seu cunhado Michael Naify a entrar na sociedade?

Meu ídolo é o inglês George Braziller, o editor que eu queria ter sido. Ele tinha uma visão extraordinária, competente, ousada e particular. Michael era um grande amigo que conheci em Londres. Só depois ele se casou com a minha irmã. Ele me ajudou muito financeiramente – agora não precisa mais. No início houve um envolvimento dos três: meu, do Michael e da Simone. Eles moravam em Florença e Simone participou dos primeiros anos, acompanhando a impressão, que era feita na Itália. No começo, teve um sabor familiar. Michael e Simone sugeriam livros infantis. A Árvore Generosa, de Shel Silverstein, era o livro favorito dele. Mas era uma coisa muito voltada para o nosso conhecimento pessoal, sem ter uma visão panorâmica e mais organizada do que seria o prelo editorial. Depois do quarto ano minha irmã começou a perder o interesse e eles foram se afastando.

● E como está a situação hoje?

As coisas não estão maravilhosas, mas estão bem. Depois de quatro, cinco anos, me vi sozinho com a editora. Nesses anos todos, quando precisei principalmente de ajuda monetária, foi a Michael a quem recorri. Ele sempre foi solícito em nos atender.

● Michael e Simone ainda são seus sócios?

Sim. A Cosac Naify pertence, desde o início, a uma editora americana. Quando se faz aporte de capital, ele vem oficialmente pelo Banco Central. O fato de ela não gerar lucro e não ter um fim lucrativo não muda o status dela: é capital estrangeiro. O papel dessa editora é, simplesmente, emitir verba. A questão é que você deve satisfação ao governo americano e no 15.º ano deficitário fomos auditados. Queriam saber para onde tinha ido todo aquele dinheiro que não gerou lucro nenhum em tantos anos. Suspeitas foram levantadas. Não fiquei mal porque sabia a verdade, mas foi um trabalho burocrático enorme provar que não éramos lucrativos e não estávamos escondendo lucro nenhum. A boa vontade do Michael e a minha de ter mantido a editora deficitária por 15 anos nem eu nem Michael sabemos explicar.

A editora, hoje, é autossustentável?

O ano de 2012 foi o primeiro que não fizemos nenhum aporte e que a editora terminou no azul. Claro que isso não contempla o passado, mas olhar o passado não é a solução. A partir de um certo momento tive de começar a pensar o futuro da editora. Foi quando a diretoria se uniu para que a editora se tornasse autossustentável.

● A entrada de livros de literatura no catálogo da editora foi uma tentativa de sanear a saúde econômica?

A Cosac Naify começou como uma editora de arte por eu ter essa limitação. Mesmo antes da era Augusto Massi, que começou em 2001, eu já tinha convidado Ismail Xavier para desenvolver uma série de cinema e teatro no fim dos anos 1990. Nessa ocasião, Rodrigo Lacerda desenvolveu a série de João Antonio. Mas a mudança determinante foi a chegada de Augusto – ele ficou na editora por dez anos.

● Qual é o livro mais vendido da editora?

Do catálogo adulto é Clarice, de Benjamin Moser. O segundo, vocês vão desmaiar: é o Histórias Fantásticas, de Bioy Casares. Eu nunca diria que esse é o segundo livro que mais vende – e olha que eu fundei a editora. Entre os infantis, de um a dez é o Capitão Cueca. E A Árvore Generosa é um livro que é sempre, sempre reimpresso.

Você já disse que tem vergonha do Capitão Cueca. Por que, se as crianças gostam tanto?

Porque não gosto. Eu não teria feito esse livro. Quem indicou o Capitão Cueca foi a minha irmã. Tenho de dizer que a série ajudou muito monetariamente nestes anos todos, mas foi uma coisa entre irmãos. Se eu dissesse não, estaria dizendo não para ela e não para o livro. O Capitão Cueca entrou de gaiato na editora. Nessa ocasião, estávamos negociando esse, a série Clifford e Harry Potter. Não saberia dizer qual é pior.

● Você tem algum arrependimento editorial?

Choro lágrimas de crocodilo por não ter comprado a obra do Lezama Lima. Ele esteve aí o tempo todo e ninguém olhava. Mas insisto que não há nenhuma perda significativa, porque a bibliografia ainda é deficiente.
É difícil chorar o leite derramado de um leite que não existiu. Não somos uma editora best-seller. Nunca vamos dizer que, se tivéssemos escolhido determinado título, teríamos feito bastante dinheiro. Ocorre um movimento contrário. Quando voltei ao Brasil, conheci a obra do arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Três editoras tentaram tirar o livro de mim e eu falei: vocês estão aqui há milhões de anos e não viram. Foi meu olhar estrangeiro que me permitiu ver aquilo que quem estava aqui não via. E este foi também o primeiro título que vendi. Uma editora estrangeira vir e comprar um livro nosso é melhor do que qualquer prêmio. É aí que acontece o intercâmbio cultural que eu busco.

● A Cosac Naify também faz livros bilíngues.

Isso é um problema, pois não conseguimos distribuir. No início eu vendia para uma distribuidora que ficava em Nova York, mas não estava feliz. Nunca pensei no mercado fora do País. Já é complicado vender para a Bahia, por que vou tentar a Espanha? Eu preferiria vender no Brasil inteiro. Já fiz milhões de livros bilíngues e isso não gerou fruto positivo nenhum.

Com o custo dos direitos das fotografias e os livros de arte dependendo às vezes da boa vontade dos herdeiros de artistas, deve ser difícil publicar uma obra desse segmento no Brasil. Como a Cosac Naify tem conseguido editar esses livros? 

Nestes 15 anos, o que mais cresceu foram os bancos de imagem. Para fazer um livro de moda, você precisa da autorização da modelo, que já perdeu a silhueta, do fotógrafo, dos mil fotógrafos que estavam no desfile. Isso criou um novo departamento de direitos autorais, que gera muito papel. Em contrapartida, também fomos testemunhas de uma evolução tecnológica impressionante. As gráficas evoluíram muito, o livro ficou mais barato e espero acreditar que uma coisa compensou a outra. Hoje, fazer um livro não é tão caro como era há 10, 20 anos, graças aos recursos tecnológicos.

● Você ainda imprime na Itália? Imprime também na China e na Índia?

Imprimimos aqui, em vários polos gráficos de São Paulo, que sempre foram bons, mas que têm um velho problema: são muito mais caros. A segunda opção é Singapura ou China. Como estamos trabalhando com um prelo mais adiantado, podemos fazer isso. Não somos os únicos. E é claro que isso afeta o mercado gráfico local. Existe o temor de que um dia façam sanções que não nos permitam mais imprimir na China.

Algumas editoras estão criando selos para diversificar o catálogo com obras comerciais e disputar as listas de mais vendidos. A Cosac Naify tem planos nessa direção?

Coincidentemente, abrimos uma nova razão social com uma ideia contrária a isso. Com essa questão do livro eletrônico, tenho de encontrar um nicho para mim e minhas atividades. Não que eu ache que o livro de arte vá morrer, mas queria fazer edições ex-libris sem o compromisso de publicar uma quantidade determinada por ano.

Com o e-book ganhando importância no mercado de literatura comercial, as edições mais caprichadas podem ser um futuro para o livro impresso? O que pensa sobre o e-book?

Essas edições caprichadas sempre existiram, mas é indiscutível que com a digitalização o livro está se coisificando. As editoras têm de se esmerar – não para vender mais, mas para que o livro não morra. Quanto ao e-book, eu não tenho interesse nenhum no assunto, mas a editora está pensando nisso.

Você é mais ligado em artes visuais do que em literatura. Mas a Cosac Naify tem lançado bons jovens autores. O que você leu recentemente que mais chamou sua atenção?

O Valter Hugo Mãe é um amor de pessoa, mas acho que gostei mais dele do que dos seus livros. Adorei José Donoso. Tive muita dificuldade com a leitura de Angélica Freitas. Não sei se é antiético falar a verdade sobre os livros de minha editora, mas quero dizer que nem tudo o que é feito nela eu amo. A vinda da Heloísa Jahn e da Marta Garcia, editoras seniores com contatos, pode ajudar. Heloísa vai cuidar da nova série de poesia brasileira contemporânea, uma iniciativa dela. Marta vai trazer novos autores. E tem o lado que me interessa mais que são os livros paradidáticos. Fizemos Luto e Melancolia do Freud e fiquei fascinado. Por causa dele estamos publicando O Avesso do Imaginário – Arte e Psicanálise, de Tania Rivera, do qual gostei muito.

● A editora publicou alguns livros de artista,entre eles Ethers, de Tunga, e algumas edições especiais para colecionadores. Esse é um segmento que poderá ser ampliado? 

Sim. Para isso estamos criando um novo selo que ainda não tem nome. Gostaria que fosse um nome russo, algo como Dom Knigi (Casa dos Livros), que é uma livraria que eu adoro em São Petersburgo, na Nevsky Prospekt. Vivi lá e gostaria de carregar algo da Rússia comigo. Além disso, sempre achei que uma editora tem de ter “casa” no nome. Acho lindo “casa editorial”. Também pensei em colocar o nome de meu bisavô, Felipe Salomão.

● Como é que você decide que um livro tem vocação para ser publicado em edição normal ou de colecionador?

O pessoal da produção na editora fica louco comigo quando chego lá com alguma ideia de livro especial, como o de Sérvulo Esmeraldo, que tinha ampolas de água, terra. Depois, eles acabam se entusiasmando. Há cinco anos descobri por meio de um amigo a obra da pintora Eleonore Koch, cujo livro sai agora em maio. Quando vi pela primeira vez uma tela sua, me deu um frio na espinha. O livro de Lore Koch estava com outra editora e não entraria jamais em concorrência para ter o direito de publicá-lo. Felizmente, o advogado da artista me procurou oferecendo o título.

● Como imagina a Cosac Naify em 10 anos?

Quando abri, meu cunhado irmão me falava que eu devia saber onde iria querer estar em 2, 4, 5 anos e eu falava “Nossa Senhora!”. Quando eu tinha 5 anos, pensava 30 anos à frente. Aos 50, que é quase a minha idade, você pensa 10 minutos adiante. Mas como a editora não sou eu – são 80 pessoas comigo e um público leitor crescente –, tenho criado dispositivos para que ela coexista. Tenho uma mentalidade parlamentarista. A editora tem hoje uma diretoria, que se reúne a cada 15 dias. Os assuntos são discutidos, a ata é feita, metas são atribuídas e depois de 15 dias conversamos de novo. Esse método tem funcionado muito bem, mas não porque tira a responsabilidade das minhas mãos – a responsabilidade legal é só minha. É um trabalho de equipe. Neste momento da editora, o que é muito gratificante para mim é ver meninos e meninas de 20, 25 anos bem mais preparados do que eu era. Sempre achei que os jovem tivessem razão – essa frase é da Maria Martins e ela estava certa. Um dia vou morrer e não quero que ela seja enterrada comigo. A editora foi repensada e enxugada. Havia mais de 400 títulos comprados. Muitos deles foram reciclados; outros, vendidos ou devolvidos. A gente não apagou o passado. Tentamos reciclar o melhor dele para tentar ter uma frequência em arquitetura, literatura internacional, literatura contemporânea brasileira e estrangeira, artes visuais, ensaios.

● Qual foi o momento mais crítico da editora?

Abri a editora porque eu quis, ninguém me pediu, minha família não tem tradição editorial. Me sinto um homem realizado. Dos meus colegas de escola, fui um dos poucos que fazem o que gosta de fazer. Sou feliz, faria tudo de novo. Os momentos mais críticos foram quando Rodrigo Lacerda e Augusto Massi saíram da editora. Eram pessoas com uma visão muito paternalista. Eu não os via só como uma pessoa indo embora. Via como uma separação, uma ruptura. E isso machuca.Osilêncio também machuca. É como fim de ano na escola: todo mundo chora.

Como foi voltar para o dia a dia da editora?

Quando o Augusto entrou, fiquei dois anos trabalhando de casa. Vou à editora porque me faz bem. Gosto de ficar em casa, de solidão, mas gosto de ir lá, conversar com as pessoas. Saio de lá revitalizado, feliz. Saio xingando às vezes, também. Ela é um remédio e me faz muito bem.

Quando você vai publicar o seu livro?

Já fiz mil documentos proibindo essa publicação. O meu Confesso Que Vivi nunca vai sair. Tenho consciência de não ser ninguém. Graças a Deus tenho essa consciência. Temos de construir como as cidades que são soterradas. Não posso ter essa vaidade.




Da favela para Boston - ZUENIR VENTURA

O GLOBO - 

20/04/2013

Logo que soube dos atentados de Boston, meu primeiro pensamento foi para o sociólogo Caio Ferraz, personagem de meu livro "Cidade partida", que em 1996 foi levado pela Anistia Internacional para os EUA por estar ameaçado de morte pelos policiais da banda podre que executaram 21 inocentes na tristemente famosa "chacina de Vigário Geral". A foto dos caixões alinhados na entrada da favela correu o mundo como um anticartão-postal, e Caio, que liderou a reação da comunidade, foi considerado o primeiro exilado político da redemocratização. Partiu com a mulher e duas filhas pequenas, estudou, trabalhou como entregador de pizza e acabou se dando bem com uma empresa especializada em reforma de casas e apartamentos.

Testemunha de batalhas entre traficantes, Caio escapou por pouco dos atentados de agora, pois estava no lugar onde 15 minutos depois explodiu a primeira bomba. Só se salvou porque resolveu avançar 100 metros para ter uma visão melhor da chegada da maratona. Houve o estrondo e, em meio à fumaça, à correria e ao caos, ninguém entendia direito o que estava ocorrendo. "Tarimbado com as guerras insanas que vivi na minha infância na favela, não tive dúvidas de que a explosão era de bomba. O barulho parecia o de granada que eu ouvira várias vezes nos confrontos entre bandidos de Vigário Geral e Parada de Lucas pelo controle do tráfico local."

Caio confessa que o momento de maior desespero foi quando se lembrou que a filha mais velha, Maíra, trabalha numa cafeteria a cerca de 300 metros das explosões. "Tentei ligar, mas nenhum telefone funcionava. Até que ela respondeu por SMS informando que estava bem. Pedi que não saísse de lá, que eu furaria o bloqueio da polícia e iria buscá-la pra irmos juntos e em segurança para casa."

Embora acostumado a situações que o "deixaram sem chão" - tiroteios, invasão policial, chacina, ameaças de morte -, Caio continua traumatizado com o que presenciou: "Que sofrimento ver uma senhora ensanguentada abraçada ao filho adolescente sem saber o que fazer. Que estranho não poder ser útil numa hora dessas. Nunca havia me sentido assim em toda minha vida e essa experiência espero não repetir."

Para agravar, tudo isso aconteceu quando ele se prepara para voltar ao Brasil. "Não sei o que fazer, porque minhas filhas continuarão aqui com a mãe. Logo eu, que tive que sair do Brasil por motivo de segurança pessoal, encontro-me agora numa enorme insegurança existencial."

Pontos - José Miguel Wisnik


O Globo 

20/04/2013

Faltam nexos compreensivos capazes de dar conta dos acontecimentos culturais no Brasil

Se não me engano em fevereiro, há cerca de dois meses, travou-se uma polêmica sobre o “vazio cultural” brasileiro, lançada por um número da revista “Carta capital” que discutia o assunto. Por algum motivo circunstancial (acho que eu estava em viagem) só me dei conta da discussão posteriormente, através de seus ecos. Não tenho condições de recuperá-la agora, mas o meu “vazio cultural” particular de hoje, em que a coluna gira em falso à procura de seu ponto de apoio, me impele de volta à questão. Considerar o tema como “ultrapassado” seria prender-se a uma lógica imediatista. A redução, aliás, de toda cultura a pautas, ganchos jornalísticos e mercadológicos, efemérides e fenômenos virais, é uma das partes do problema.

Vou tentar expor a minha posição, mesmo sabendo que o assunto não cabe aqui. Acho o Brasil um país de grande vitalidade cultural. Essa vitalidade está na diversidade das práticas, no modo como elas se permeiam, nas soluções incomuns que resultam disso, em muitos níveis. Confesso que é difícil descrevê-la, porque ela se apresenta de maneira não usual, múltipla e heterogênea, extraindo a sua força exatamente disso. Ao mesmo tempo, essa vitalidade contracena com o baixo letramento médio brasileiro, que compromete sob muitos aspectos a sua organicidade e a sua capacidade de articulação. Apesar desse baixo letramento, no entanto, fomos capazes de reconhecer uma literatura na qual conviviam, a certo momento, Drummond, Rosa, Bandeira, Clarice, João Cabral e a poesia concreta, junto com teatro, música e cinema incandescentes. Isso não teria acontecido se não houvesse por sua vez uma atividade crítica de peso reconhecível, um campo crítico mapeado e exposto ao debate, um conjunto de publicações acompanhando a vida contemporânea.

As instituições da chamada alta cultura, ou das instituições letradas, sofreram abalos e deslocamentos em todo o mundo, nas últimas décadas, sob a pressão dos meios de massa articulados com a onipresença da publicidade e com uma considerável corrosão da escola tradicional frente a essas novas realidades. Mesmo assim, a literatura, os escritores, a crítica, tiveram ainda um papel determinante no acompanhamento de todas as transformações que se deram na Rússia ao longo do século XX, por exemplo, ou na Argentina ou em Portugal. O lugar do escritor, garantido por um certo lastro letrado, não se evaporou completamente no processo. Certamente não se pode dizer o mesmo do século XXI, mesmo lá.

No Brasil, a tendência a deslocar as pautas culturais do campo das ideias para o das vendagens, comportamento, moda e polêmica de superfície lavou o lastro frágil da vida literária acumulada, e acuou a atividade crítica num papel incômodo, impertinente e estigmatizado, substituído pela atividade dos agentes e assessores de imprensa, dos releases, das entrevistas e notas em colunas sociais, pela participação em eventos, num ambiente de coquetelização da cultura (estou lembrando de um artigo contundente de Flora Sussekind, “A crítica como papel de bala”, publicado no Prosa em 2010, algumas balas do qual sobram para mim, se não estou enganado).

É certamente a essa perda de articulação e a esse rebaixamento do papel crítico na esfera pública que Vladimir Safatle se referia, ao intervir no debate caucionando o mote do “vazio cultural”. Vazio cultural, nesse caso, significa a falta de um senso totalizante e de um tensionamento da linguagem que comprometa as produções com algo mais do que sua inserção num mercado ou o seu reconhecimento por um grupo de participantes consumidores. É exatamente o contrário do que pensa Hermano Vianna, para quem a cultura vive da força empenhada nela por seus agentes, que dão a cada cena cultural um sentido total auto-bastante. Onde para um há o vazio para outro sobra excedente. Os pressupostos são tão opostos que não dão lugar a uma conversa possível nem ao entendimento da impossibilidade disso.

Para mim este é o ponto. Não falta acontecimento cultural no Brasil, das mais complexas aventuras intelectuais às mais saudavelmente elementares manifestações do apetite de viver. Faltam, quando faltam, e como faltam, nexos compreensivos capazes de dar conta dessa complexidade, em meio à entropia de um mercado voraz e de um debate reduzido muitas vezes ao quiproquó, à faccionalização dos discursos e à simplificação jornalística.

Em muitos sentidos, “vazio cultural” é um estado do mundo, hoje. Em cada caso, a questão é saber onde estão os “pontos luminosos”, e o Brasil é um vazio cheio deles.


domingo, 14 de abril de 2013

Toca Daniela! - POR ROBERTO KAZ

O Globo - 14/04/2013

NA PRIMEIRA SEMANA ‘FORA DO ARMÁRIO’, CANTORA BAIANA GANHA SEGUIDORES NA REDE E É TOCADA EM FESTAS CARIOCAS, ENTRE NIRVANA E THE CURE

O DJ Dodô Azevedo foi surpreendido, no penúltimo sábado, quando tocava na festa “Fofoca”, na Enseada de Botafogo. Em meio a músicas do Nirvana, The Cure e Rage Against the Machine, uma moça lhe pediu que colocasse Daniela Mercury. O pedido tinha razão mais ética que estética: dias antes, na quarta-feira, dia 3, a cantora baiana publicara quatro fotos dela no Instagram ao lado de sua nova companheira, Malu Verçosa. As fotos vinham acompanhadas da legenda “Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar”. A frase e as imagens — vindas de uma mulher com cinco filhos, conhecida, até então, por ter relacionamentos heterossexuais — repercutiram nas pistas de dança.

— Eu nunca havia tocado Daniela Mercury na vida — afirma o DJ. — Tinha uma música dela no computador, que nem lembro o nome. Pensei em colocar apenas um trecho, para ser simpático. Mas quando começou, a festa veio abaixo. Isso porque antes estava tocando Nirvana... Foi uma loucura muito grande.

DJ especializada em música brasileira, Tati da Vila também colocou Daniela Mercury nos dois aniversários em que tocou, no fim de semana.

— Uma das coisas que havia sido proibida, pelos dois aniversariantes, era música baiana. A Daniela Mercury não faz parte do meu repertório — diz ela. — Mas na hora, não só toquei como foi um sucesso, especialmente com os casais gays. Esse tipo de homenagem costuma acontecer quando há uma polêmica ou quando um artista morre. Tenho certeza de que, se fosse fora desse contexto, as pessoas torceriam o nariz com relação a esse tipo de música.

Na festa Sopa, que aconteceu no Morro do Vidigal, o ator e DJ Armando Babaioff botou, entre Novos Baianos e Caetano Veloso, uma versão ao vivo de “O canto da cidade”:

— As pessoas entenderam o porquê daquela música naquele momento; foi uma euforia — lembra.

No Galeria Café, conhecido reduto gay da Rua Teixeira de Melo, em Ipanema, o DJ Rody Martins também escolheu “O canto da cidade” para o repertório da festa “X-Tudo”:

— Como na festa tem muita música brasileira, a gente de vez em quando toca Daniela. Sempre soube que ela era bissexual — diz. — Mas a partir de agora, as letras dela vão ter outra conotação. É uma renovada de público na carreira dela. “O canto da cidade” já virou um hino gay.

Não foi apenas nas pistas de dança que o anúncio da relação de Daniela e Malu se fez sentir. De acordo com dados do Google, no dia 3, o nome da cantora foi procurado 50 vezes mais do que nas datas anteriores. Além das palavras “letras” e “músicas”, a maior parte das buscas vinha acompanhada dos termos “namorada”, “casamento” e “assume”. No Twitter, ela ganhou, naquele dia, cinco mil novos seguidores — quantidade igual à que havia acumulado durante todo o mês de março. Tem, agora, 370 mil fãs no microblog.

No Facebook, pipocou uma fotografia d cantora, acrescida do brado “Menos Joelma, mais Daniela” (a frase é uma referência à vocalista da banda Calypso que, naquela semana, havia dito que mães de filhos gays sofrem tanto quanto a de “um drogado tentando se recuperar”). O humorista Hugo Gloss escreveu, em sua página no Twitter, que Daniela “nos enganou dizendo que era a cor da cidade”. Completou: “Mas você era o arco-íris inteiro, né, danada!”

Na Wikipedia — a enciclopédia virtual onde os verbetes crescem com informações acrescidas pelos usuários —, a página que resume a biografia de Daniela Mercury teve, desde então, 20 atualizações (as 20 anteriores haviam sido feitas ao longo de um ano inteiro). Dentre os novos dados, usuários acrescentaram o nome da cantora à categoria “Músicos LGBT do Brasil” (ficou entre Cazuza e Edson Cordeiro), colocaram informações sobre a “queda” que a escritora americana Camille Paglia, notória feminista, diz ter tido por ela, e incluíram detalhes sobre seu último disco, “Canibália”, lançado três anos atrás.

Perguntada se isso representa uma nova fase em sua carreira, Daniela Mercury respondeu:

— Canto a minha verdade, canto o que vem da minha alma e fica a critério.

Oásis - Luis Fernando Verissimo

Luis Fernando Verissimo
 
Numa recente London Review of Books o escritor irlandês Colm Toíbín desenvolve uma tese instigante sobre três autores, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e Flann O'Brien, este último um contemporâneo de James Joyce que passou a vida inteira ao mesmo tempo venerando e cutucando o autor de Ulysses. Os três são de cidades - Lisboa, Buenos Aires e Dublin - situadas à margem da literatura mundial, cidades que Toíbín descreve como desertos culturais, em contraste com os centros de criação da sua época como Paris e Londres. É estranho Toíbín dizer isto sobre a Irlanda, que, além de Joyce, produziu Beckett, Shaw, Swift, Yeats, etc. e mais prêmios Nobel de Literatura por metro quadrado do que qualquer outro país do mundo. Mas a criação na Irlanda, de um jeito ou de outro, sempre foi um reflexo do domínio inglês, tanto da sua política quanto da sua cultura, e os premiados irlandeses foram todos fazer sua reputação e ganhar sua vida em Londres enquanto Dublin ficava como a capital da memória, como disse Lawrence Durrell de Alexandria, um lugar para ser evocado no exílio mais do que habitado.

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Aquele Joãozito - Humberto Werneck

HUMBERTO WERNECK - O Estado de S.Paulo
 
 
Um ano depois da morte do filho famoso, lá fui eu conhecer dona Chiquita, numa casa na Pampulha, em Belo Horizonte. Quando saí, horas depois, tratei de reter no papel um pouco do que me contara a mãe do Joãozito, quer dizer, João Guimarães Rosa, naquela tarde de 1968. Queixava-se da memória fraca - e no minuto seguinte se desmentia:

"Joãozito pegava o jornal e ficava perguntando ao pai o nome das letras. Ou os números pintados nos trens que passavam. O Florduardo achava uma graça, comprou lápis de cor e papel, fez assinatura do almanaque Tico-Tico. Quando abrimos os olhos, o Joãozito estava lendo e dando notícia de tudo. Tinha só 4 anos, um fenômeno."

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Exclusiva com o comandante Borges - João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro
 
-Comandante, ainda bem que você veio. Ontem me disseram que você não queria mais dar a entrevista.

- É, mas pensei melhor. Se eu prometi, está prometido. Alguém tem que manter a palavra neste país. Mas isso não impede, sem querer ofender ninguém, que eu ache esta entrevista uma palhaçada.

- Não entendi.

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Ainda Feliciano? - Caetano Veloso

O GLOBO

14/04/2013


Por que mentir tão descaradamente sobre fatos conhecidos?

Nem estou acreditando que volto ao assunto do pastor/deputado/presidente da CDHM. Mas, como muitos devem ter visto, ele mentiu reiterada e estridentemente sobre mim. Há um vídeo no YouTube em que Feliciano, esbravejando de modo descontrolado, diz-se com Deus contra o diabo e, para provar isso, mente e mente mais. As pessoas religiosas deveriam observar o quanto ele está dominado pela soberba. Faz pouco, ele se sentiu no direito de julgar os vivos e os mortos, explicando por meio de uma teologia grotesca a morte dos garotos dos Mamonas e sagrando-se justiçador de John Lennon. Agora, aferra-se à mentira. Meu colega Wanderlino Nogueira notava, com ironia histórica sobre as espertezas da igreja católica, que a mentira não está entre os sete pecados capitais. Mas sabemos que “levantar falso testemunho” é condenado pelo Deus de Moisés. Por que mentir tão descaradamente sobre fatos conhecidos? Será que minha calma observação, aqui neste espaço, de que sua persona pública é inadequada ao cargo para o qual foi escolhido (matizada pela esperança no papel das igrejas evangélicas) o ameaça tão fortemente? Eu diria a pastores, padres, rabinos ou imãs — sem falar em pais de santo e médiuns espíritas, que são diretamente agredidos por ele — que atentassem para o comportamento de Feliciano: como pode falar em nome de Deus quem mente com tão evidente consciência de que está mentindo?

Sim, porque não há, dentre aqueles que prestam atenção no meu trabalho, quem não saiba que, ao cantar a genial canção de Peninha “Sozinho” num show, eu indefectivelmente dizia não apenas que me apaixonara por ela através das gravações de Sandra de Sá e de Tim Maia: eu afirmava que cantá-la ao violão era só um modo de chamar a atenção para aquelas gravações. Como pode Feliciano dizer que “a imprensa foi rastrear” e descobriu que a música já tinha sido gravada por Sandra e Tim? Essas duas gravações eram sucessos radiofônicos. E como pode ele, sem piedade daqueles que com tanta confiança o ouvem em seu templo, afirmar que eu disse em entrevista coisa que nunca disse e nunca diria, ou seja, que o êxito inesperado de minha versão de “Sozinho” se deveu a eu ter mostrado a faixa a Mãe Menininha e esta ter-lhe posto uma bênção que, para Feliciano, seria trabalho do diabo? Mãe Menininha, figura importante da história cultural brasileira, já tinha morrido fazia cerca de dez anos quando gravei a canção.

É muita loucura demais. E muita desonestidade. Aprendi com meu pai os gestos da honestidade — e tomei o ensinamento de modo radical. Me enoja ver a improbidade. Feliciano sabe que eu nunca dei tal entrevista. Mas não se peja de impressionar seus ouvintes gritando que eu o fiz. Ele, no entanto, não sabe que eu jamais sequer mostrei qualquer canção minha à famosa ialorixá. Nem a Nossa Senhora da Purificação eu peço sucesso na carreira. Nunca pedi. Nem a Deus, nem aos deuses, e muito menos ao diabo. Decepciono muitos amigos por não ser religioso. Mas respeito cada vez mais as religiões. Vejo mesmo no cristianismo algo fundamental do mundo moderno, algo inescapável, que é pano de fundo de nossas vidas. Mas não sou ligado a nenhuma instituição religiosa. Eu me dirigiria aqui àqueles que o são. Os homens crentes devem tomar atitude mais séria em relação a episódios como esse. O que menos desejo é ver o Brasil dividido por uma polaridade idiota, em que, de um lado, se unem os que querem avanços nos costumes, e de outro, os que necessitam fundamentos de fé, ambos gritando mais do que o conveniente, e alguns, como Feliciano, saindo dos limites do respeito humano. Eu preferiria dialogar com crentes honestos (ou ao menos lúcidos). Não aqueles que já se põem a uma distância segura da onda neopentecostal. Eu gostaria de dialogar com um Silas Malafaia, de quem tanto discordo, mas que respeita regras da retórica e da lógica. Marina Silva seria ideal, mas poupemo-la. Não é preocupante, eu perguntaria a alguém assim, que um dos seus minta de modo tão escancarado? É fácil provar que nunca fiz aquelas declarações e é fácil provar que Sandra e Tim tiveram êxito com a obra-prima de Peninha. E que eu louvei esse êxito ao cantar a canção. Foram dezenas de milhares de brasileiros que ouviram. Se Feliciano precisa, para afirmar sua postura religiosa, criar uma caricatura caluniosa dos baianos e da Bahia, algo é muito frágil em sua fé. A maré montante do evangelismo não dá direito à soberba irrefreada. O boneco tem pés de barro. E cairá. Eu creio na justiça e na verdade. Esses valores atribuídos a Deus têm minha adesão irrestrita. Não sei que Deus sustenta a injustiça e a mentira. Ou será que é aí que o diabo está?