sábado, 6 de abril de 2013

SABÁTICO

Janelas para a finitude

No romance 'Terra de Casas Vazias', André de Leones ratifica a morte e o elemento religioso como peças centrais de sua já madura ficção

 

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Uma chance para a paz em meio ao caos

Considerado uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela 'Time', o cientista Steven Pinker defende, em 'Os Anjos Bons da Nossa Natureza', que a violência está em declínio na sociedade

 

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Explicar o passado, sem prever o futuro

Estudo do canadense evita usar a história para fazer previsões

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Um singular libelo contra a hipocrisia

Em Junky, que ganha reedição, William Burroughs trata da vida na sociedade paralela dos dependentes e traficantes 

 

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A LITERATURA COMO O LUGAR DE “EXISTIR”

 

No breve A Vida Privada das Árvores, de Alejandro Zambra, é a convivência com a ficção que revela as personagens

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A história repetida, de fato, como farsa

De volta às livrarias, O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler, dialoga com Dostoievski ao enfocar o horror do stalinismo

 

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Em torno da construção de si

A Filosofia de Michel Foucault, de Esther Díaz, analisa o vigoroso pensamento do francês

 

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Um senhor operário da palavra

O cubano Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), cuja obra completa vem sendo editada na Espanha, buscou, ao longo de sua trajetória, a renovação da prática e da doutrina das narrativas literárias

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A infelicidade de Feliciano - CACÁ DIEGUES

 O Globo

Suspeito que Marco Feliciano não seja um homem feliz. ‘Infeliciano’ não deve dormir em paz

Outro dia, meu neto de 7 anos me disse excitado que tinha um presente para mim. Era uma lata de Coca-Cola que havia encontrado com meu nome, Carlos, inscrito nela. Tive a sensação de que meu neto havia-me achado no meio da multidão e me propunha celebrar minha existência.

Como quando nomeamos alguém estamos identificando sua singularidade, me dei conta de que um dos produtos mais universais do planeta, um dos signos fundadores da globalização, havia sacado a necessidade de reconhecer a existência do indivíduo e sua diferença. A humanidade não é uma massa anônima e informe, mas o encontro entre seus indivíduos, a única coisa concreta que existe. O resto (língua, sociedade, moeda, nação, estado, cultura, o que mais for) são abstrações necessárias que inventamos para poder melhor conviver com o outro.

É claro que essa operação de marketing do produto que minha geração, em sua juventude irreverente e bem-humorada, chamava de “a água suja do imperialismo”, é apenas uma fantasia que não vai melhorar a vida de ninguém. Mas é significativo que a marca máxima de um modo de vida planetário reconheça a necessidade de lembrar nossa individualidade, nossa diferença, nossa singularidade.

Somos indivíduos responsáveis pelos outros e essa responsabilidade começa pelo respeito ao que o outro é ou quer ser. A democracia é o único regime político em que esse comportamento se encontra em seu cerne. Sem ele, ela perde o sentido. Segundo Tocqueville, o grande pensador da democracia moderna na primeira metade do século 19, o regime democrático é uma ditadura da maioria, abrandada pelos direitos de manifestação das minorias. É tão simples e profundo quanto isso.

Nosso Congresso Nacional está deixando que essas ideias indiscutíveis sejam negadas pela ação nefasta do deputado Marco Feliciano, à frente da Comissão de Direitos Humanos. E esse desastre não tem apenas o deputado como único culpado; grosso modo, a câmara inteira é responsável pelo grave erro.

A democracia representativa fica comprometida quando os partidos dão prioridade a seus arranjos funcionais, em prejuízo da representação popular. Apesar de grosseiro, medieval e inaceitável, o deputado tem o direito de pensar como quiser, para agradar seus eleitores específicos. Mas não tem o de impor, por delegação de seus pares, as consequências segregadoras desse pensamento sectário à população inteira, que inclui os que são discriminados.

Todos os partidos deixaram que isso acontecesse quando negociaram, segundo seus interesses táticos, a formação das diferentes comissões no Congresso. A culpa não é só do partido de Feliciano, o PSC, que o indicou; os outros também preferiram o conforto próprio, em detrimento da segurança social da população. Quando isso aconteceu, onde estavam o PT e seus “progressistas”? Por onde andavam os “democratas” do PSDB? Que faziam os “socialistas” do PSB? E os “liberais’ do DEM? O único congressista que vi se manifestar desde a primeira hora, com coragem e firmeza, sem se preocupar com as conveniências regimentais da Casa, foi o deputado Jean Willys.

Suspeito que Marco Feliciano não seja um homem feliz. Ele deve viver atormentado pelos fantasmas do porre de Noé, do pecado de Cam, da maldição divina sobre a África e os negros. Feliciano não pode gastar relaxado o dízimo de seus fiéis, enquanto houver no mundo aborto, homossexuais, casamento gay e gente que não pensa como ele. “Infeliciano” não deve dormir em paz.

Mas confesso que não admiro nem um pouco o modo de reação de alguns ativistas contra ele. Numa democracia, não se deve fazer política invadindo reuniões, subindo nas mesas, agredindo quem passa pela frente, impedindo o interlocutor de se manifestar. A democracia é também um processo civilizatório, como foi a justa manifestação recente na ABI, organizada por Jean Willys, com a presença de Caetano Veloso, Wagner Moura, Preta Gil e tanta gente que lotou aquele auditório para discutir o assunto.

É evidente que hoje, no mundo inteiro, vivemos uma grave crise da democracia representativa. Talvez pelo crescimento da população em todos os países; talvez pela distância cada vez maior entre representantes e representados; talvez até mesmo pela crescente superação do poder do estado pela força natural da sociedade. Não sei encontrar solução para essa crise. Mas ela não pode ser a democracia direta que nos leve à aventura irresponsável do populismo, nem o voto distrital que torna clientelista o resultado de uma eleição, eliminando o debate ideológico que organiza o futuro. É preciso começar a discutir uma reforma política democrática que contemple todas essas novidades.

Para certos crentes, nosso mundo real é sempre provisório, o paraíso se encontra muito mais à frente, bem adiante de nós. Depois é que é sempre bom e, para chegar lá, devemos suportar dor e sofrimento, a fim de nos tornarmos merecedores da graça no futuro e punirmos os que ousam desejar ser felizes por aqui mesmo. Mas temos o direito de exigir que nos deixem ser o que somos, que nos garantam, aqui e agora, nossa felicidade de cidadãos, nossa “felicidadania”.

Fim do trema, sucesso da @ - ZUENIR VENTURA

O GLOBO - 06/04/2013

O trema está desaparecendo; aliás, oficialmente já desapareceu. A arroba está no auge de sua popularidade
Achei engraçadinhas as histórias antagônicas desses dois sinais gráficos. Um, o trema, está desaparecendo; aliás, oficialmente já desapareceu. O outro, a arroba, está no auge de sua popularidade. Do primeiro recebi, enviado por um amigo, uma sentida despedida. "Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüíferos, nas lingüiças, por mais de 450 anos. Fui expulso pra sempre do dicionário." Suas queixas não poupam o cedilha, que teria sido a favor de sua expulsão - "aquele Ç cagão que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra". E um conformado desabafo: "A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K e o W, 'kkk' pra cá, 'www' pra lá."

O estranho é não haver referência à arroba, muito mais em voga do que as letras citadas. Calcula-se que a @ - esse a com uma perna esticada fazendo um quase círculo - anda hoje em três bilhões de endereços eletrônicos, o que ainda é pouco, considerando que não é possível passar um e-mail sem ela. Antes, apenas como medida, ainda tinha alguma utilidade, pelo menos para comerciantes e estivadores dos armazéns dos cais do porto, já que servia para indicar a unidade de peso equivalente a 15 quilos.

É curiosa a vertiginosa carreira de sucesso da @, que nem existia nas primeiras máquinas de escrever. Conta-se que foi em 1971, graças ao engenheiro americano Ray Tomlinson, que ela começou a ganhar destaque, e por acaso. Encarregado do projeto que seria o precursor da internet, Ray precisava de um símbolo que ligasse o usuário do correio eletrônico ao domínio. Aí, olhando para um teclado, caiu de amores pela @, depois que seu coração balançou entre o ponto de exclamação e a vírgula.

A partir dos anos 90, com a massificação da internet, a arroba passou a ser provavelmente o símbolo gráfico mais popular do universo. Os emails podem viver sem tremas, sem pontos de exclamação, de interrogação, til, cedilha, reticências, mas nunca sem aquele sinalzinho que aparece em cima do 2 e precisa ser acionado apertando-se a tecla Shift. E mais: além de popularidade, ganhou prestígio. Em 2010, o Museu de Arte Moderna de Nova York adquiriu o símbolo @ para a sua coleção de design. "Uma aquisição que nos deixa orgulhosos", anunciou o MoMA em seu site. Agora mesmo é que a @ está se achando.

Alice e eu precisamos de DR, discutir a relação -uma relação de três anos e meio. Ela anda intratável. "Me deixa sozinha, estou irritada", disse outro dia, em mais uma crise de ciúme do irmãozinho Eric.

Ordem na casa - José Miguel Wisnik


 O Globo - 06/04/2013


PEC das domésticos mexe com hábitos muito arraigados na história da vida privada no Brasil

Todo mundo sabe, confesse-o ou não, que o estatuto precário dos empregados domésticos na vida brasileira é uma das marcas escravistas resistentes em nosso cotidiano. E que, por isso mesmo, a Proposta de Emenda Constitucional regulando horas de trabalho, horas de descanso e pagamento de horas extras, que entrou em vigor esta semana, é um marco prático e simbólico que estabelece um patamar mínimo de civilidade no tratamento da questão. Outros direitos (fundo de garantia por tempo de serviço, multa por demissão sem justa causa, seguro-desemprego, creche e pré-escola, salário-família), que completariam a inclusão desses trabalhadores na ordem regular do trabalho formal, esperam regulamentação. Tudo isso mexe com um mercado de trabalho já em processo de mudança, dado o sintomático decréscimo da oferta de mão de obra, e mexe com hábitos muito arraigados na história da vida privada no Brasil. 

A ambivalência dessa história também é conhecida. As relações interpessoais na esfera doméstica, com suas tonalidades próximas e afetivas, são tradicionalmente muito diferentes, no Brasil, das relações impessoais vigentes entre patrões e empregados na Europa e nos Estados Unidos, onde o trabalho doméstico custa caro e é raríssimo. A informalidade brasileira, que entranha muito da nossa sociabilidade e muitas das nossas criações mais preciosas, é a mesma que dá lugar às formas mais perversas do arbítrio, do privilégio, da exploração insidiosa e da truculência. O Brasil é uma droga, no sentido positivo e negativo do termo. É desejável que o melhor dessa informalidade seja capaz de se transformar em algo mais alto, se a mais básica formalização emancipadora começar a pôr ordem na casa.

Não posso deixar de pensar, junto com isso, e por mais estranho que pareça, em Clarice Lispector. Por acaso estou relendo-a pela enésima vez, sempre com prazer e renovado espanto, por causa de um curso que inventei de dar para isso mesmo — para poder ler de novo seus livros. Ela é conhecida como uma escritora que vai aos meandros mais sutis da subjetividade, mas a gente muitas vezes esquece os caminhos que a levam a isso, e que são da percepção social mais aguda.

A empregada doméstica está no vértice supremo da obra de Clarice, que é “A paixão segundo G.H.”, publicado em 1964. Presente por ausência, mas uma ausência que define tudo. Uma mulher independente, livre de laços familiares, que vive numa cobertura em Copacabana, vai até o quarto da empregada — Janair — que trabalhou em sua casa por seis meses, quarto ao qual ela nunca foi durante esse tempo, e encontra, em vez do esperado pardieiro, um quadrilátero límpido em cuja parede caiada se estampa um desenho riscado a carvão. Nesse mural cru, de aparência quase rupestre, deixado por Janair, em que aparecem uma mulher e um homem, nus, e um cachorro, a narradora se vê através dos olhos da outra, os únicos olhos capazes de vê-la de um modo que não seja a projeção de si mesma dada pelos membros de sua classe social. Começa ali a mais vertiginosa das viagens à experiência da estranheza do outro absoluto como descoberta de si. Não será despropositado dizer que, se Guimarães Rosa fez do jagunço o transporte para o seu entendimento do enigma do Brasil e do sertão-mundo, em Clarice a passagem, no caso dela secreta, para todos os enigmas, se faz através da empregada doméstica.

Numa crônica encantadora, ou perturbadora, se quiserem, chamada “O chá”, ela imagina uma cerimônia de reencontro com todas as empregadas que teve na vida. “As que esqueci marcariam a ausência com uma cadeira vazia, assim como estão dentro de mim. As outras, sentadas, de mãos cruzadas no colo. Mudas — até o momento em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse o que eu me lembro. Quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de criadas”.

E “A menor mulher do mundo”? Um explorador francês descobre no mais remoto coração da África a menor tribo de pigmeus, e, entre eles, a menor mulher adulta do mundo, grávida e nua, medindo quarenta e cinco centímetros. A foto em tamanho natural é estampada numa página dupla do Jornal do Brasil, onde fica exposta a um rodízio de fantasias de classe média, entre as quais a de tê-la como empregadinha uniformizada servindo a mesa. O conto reflete, entre outras coisas, sobre o nosso desejo de posse, de deter o poder de ter alguém só para nós, sobre a ferocidade com que queremos brincar de possuir alguém.
Clarice faz ver algo que o Brasil mal começa a aprender: que ter alguém a seu serviço pessoal é um luxo a ser correspondido com todas as gratificações, limites e formas da praxe. Mais que isso: que a existência, de si e do outro, é o grande luxo.