domingo, 15 de novembro de 2020

As disputas eleitorais imaginárias na literatura e no cinema - Sérgio Augusto

 Pleitos em romances de Sinclair Lewis, Nathanael West e Philip Roth ilustraram e anteciparam aspectos da realidade


O Estado de São Paulo / Aliás 

Quando diabos peguei Um Som de Trovão para reler, ainda me lembrava das cores da borboleta (verde, dourada e preta) esmigalhada por uma das botas que Eckels, protagonista da história, usara numa caçada na pré-história. Esse conto de Ray Bradbury, que muito me marcou na adolescência, foi minha escolha instantânea numa enquete da internet sobre “o que ler para acompanhar a eleição presidencial americana” da semana passada.



Escolha aparentemente esdrúxula, na medida em que o conto se ocupa de um safári de dinossauros e outros animais jurássicos proporcionado por uma máquina do tempo, não uma aventura eleitoral. Ocorre que, no início da imaginosa narrativa, dois candidatos disputam a Casa Branca, e no seu desfecho descobrimos que afinal deu zebra - e o franco favorito perdeu, por obra do “efeito borboleta”.

Foi assim: quase ao final do safári, Eckels, o caçador, pisara distraído numa borboleta não programada para morrer, alterando o curso natural das coisas, inclusive o resultado da eleição. Ao voltar ao tempo presente (no caso, a 2055), Eckels tudo, até o ar, meio estranho; e especialmente incômoda a vitória de Deutscher, o candidato com vocação ditatorial, sobre o democrático Keith, pule de dez no pleito.

Creio ter sido o único do enquete a destacar um relacionado ao tema eleição presidencial aparece de forma tão oblíqua e fugaz, embora com resultados apreciáveis ​​de Trump (Deustcher) e Biden (Keith). Desta vez, ninguém pisou numa borboleta, nem se lembra um som de trovão.

As escolhas óbvias foram sido os pleitos imaginários dos romances de Sinclair Lewis, Nathanael West e Philip Roth, sobre os quais já falei aqui, mas queria me desprender um pouco de distopias e, acima de tudo, evitar aquelas paráfrases ambientadas em autocracias siderais e relatos sobre sequestros de políticos de Washington por ETs.

No calor do duelo entre Biden e Trump, boa parte do comentariado político polvilhou suas análises com referências literárias e cinematográficas que iam do previsível ao esotérico. A colunista Maureen Dowd, do New York Times, que não atravessa dois paragrafos sem um paralelismo cinematográfico, chegou a comparar a fase atual do governo republicano a “Sharknado — Parte 3”, tal a quantidade de metafóricos tubarões e fora dele.

“Diabo a Quatro”, com os Irmãos Marx, e “Doutor Fantástico”, de Stanley Kubrick, são os dois banzés da tela que mais se aproximam, a meu ver, do caos nacional há quatro anos promovido pelo ogro alaranjado . Trump é um Rufus T. Firefly sem a graça de Groucho e Peter Sellers seria seu mais autorizado intérprete numa paródia ainda a ser feita. Pena que Mel Brooks está aposentado.

Às primeiras recusas histéricas de Trump a admitir sua derrota, Gail Collins, também colunista do Times , equiparou-o ao Coringa, enquanto um colega seu, mais literário, viu no presidente a reencarnação do negacionista Bartleby, o excêntrico escrivão de Herman Melville que sempre recusa serviço e o que não seja do seu agrado com o elusivo bordão “Eu preferia não fazer”. Donald “Bartleby” Trump prefere não admitir que Biden venceu e ele, Trump, é o “perdedor” (perdedor) mais estridente e ridicularizado da América.

Bons romances foram escritos sobre disputas eleitorais na América. O mais lido, Todos os Homens do Rei , de Robert Penn Warren, ganhou o Pulitzer e sua primeira adaptação ao cinema, um Oscar. Sua eleição, porém, não era presidencial, mas estadual. O que facilitaria a prevalência, nesse ranking, de O Candidato da Manchúria , também já filmado duas vezes.

Tem de tudo o thriller excitante político de Richard Condon: conspiração comunista mexer na eleição presidencial americana, lavagem cerebral, um herói da Guerra da Coreia transformado em terrorista, e um misto de Jocasta e Lady Macbeth, mãe do terrorista, que, se deve tido outro filho, nem precisaria batizá-lo Donald John para ter em casa um segundo terrorista.

Em geral são thrillers como ficções especulativas em torno de total à Casa Branca. Algumas com viés cômico e sob influência das paranóias da Guerra Fria.

Em O Querer de Levine , publicado em 1978, Michael Halberstam imaginou um auspicioso candidato à presidência que mata a mulher no meio da campanha, abrindo caminho para um improvisado e obscuro correligionário, além do mais judeu, o Levine do título. Não darei spoiler.

Imaginem um presidente popular para sucessor um bem quisto colega de partido, Derek Townes, que descobrem ser, na, um agente soviético — e, mais do que isso, um espião convicto de que é uma reencarnação de Trotski. Era esse o ponto de partida de Corrida de Trotsky , de Richard Hoyt, publicado em 1982. Calculem o pânico na Casa Branca. Calculem o pânico no Kremlin, com um avatar vingativo de Trotski à solta.

Nove anos atrás, o prolífico Jim Lynch produziu um relato futurista das atualizações de agora— The 2020 Players —que talvez valha a pena ler, por pura diversão, e confrontá-lo com o que realmente aconteceu nos últimos 12 meses deste ano, para nós praticamente encerrado com derrocada de Trump e a ameaça patética de guerra de Bolsonaro aos Estados Unidos de Biden.

O elenco de “atores” de 2020 escalados por Lynch inclui um presidente que se recusa a concorrer à reeleição, um candidato casado com uma cantora e ativista política, um segundo candidato independente, um perigoso chinês industrial, uma agente da CIA, terroristas americanos e internacionais, e sobas de teocracias sentadas sobre a Bíblia e o Corão. Uma fauna tão ridícula quanto assustadora, como a que vimos e vemos todos os dias no noticiário.

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