segunda-feira, 14 de abril de 2025

AS DUAS FACES DE UM AMIGO - Paulo Francis, o afetuoso e o cruel - LUIZ SCHWARCZ

“Quero conhecer esse rapaz que publicou Rumo à Estação Finlândia¹ no Brasil, peça para ele me procurar quando estiver em Nova York.” Foi o que Paulo Francis disse ao editor Jorge Zahar em 1986, depois de brindar o livro com uma resenha superlativa, de página inteira, na Folha Ilustrada, o caderno cultural da Folha de S.Paulo. Jorge era o seu melhor amigo e, para mim, um segundo pai. Os primeiros livros da Companhia das Letras tinham sido publicados havia pouco. 



1 Rumo à Estação Finlândia, do ensaísta e crítico literário americano Edmund Wilson (1895-1972), foi publicado originalmente em 1940. O livro é uma história das ideias revolucionárias e socialistas, desde a Revolução Francesa (1789) até o desembarque de Lênin na Estação Finlândia, em São Petersburgo, em abril de 1917, para liderar o movimento que desaguaria na Revolução Russa.


O sucesso foi muito maior que o imaginado. Estávamos no auge do Plano Cruzado, que, tentando combater a inflação, gerou, a princípio, um estouro nos índices de consumo. A derrocada dessa iniciativa de política econômica custou muito. Mesmo assim, desde o começo, os ventos sopravam de maneira favorável para a Companhia das Letras, que tinha mais dificuldade de comprar papel e conseguir gráficas para imprimir os livros do que para vendê-los. Na época, eu mesmo fazia a venda para os principais clientes e realizava parte das entregas, na volta para casa, com a minha perua Parati.


Alguns meses depois, quando fui aos Estados Unidos, seguindo a sugestão de Francis a seu grande amigo, procurei timidamente o jornalista mais conhecido do país. Muito solícito, ele marcou o encontro num restaurante suíço, perto da sua casa. Cheguei ao local ansioso e comecei a conversa bastante sem jeito, pensando no que diria a Paulo Francis.


Nervoso, ao ver o cardápio quis me livrar logo da incumbência e optei por cerveau, achando que tinha escolhido um prato de caça. Comprei um cervo e recebi um cérebro, creio que de vitela, apenas cozido, redondo e com todas as ranhuras preservadas, acompanhado de molho gribiche à parte. A partir daí falei até mais do que devia. Precisava distrair o olhar do meu interlocutor daquela coisa meio branca, que restava intacta no meu prato. Até consegui engolir um pedaço, mas só. De qualquer forma, aquele cérebro impoluto simboliza o início de uma longa amizade.


Francis já caminhava politicamente para a direita, porém estava longe de ser o radical que se tornou nos seus últimos anos de vida. A sua coluna Diário da corte ditava regras e criava polêmicas. Muitos anos após aquele jantar, editaríamos uma seleta daqueles textos de jornal, extirpando os mais conjunturais e os ataques pessoais a intelectuais amigos.


Passamos a nos ver a cada ida minha a Nova York, e quando ele vinha a São Paulo eu ocupava o cargo de anfitrião. Seu endereço preferido era o Ca’d’Oro, hotel tradicional, o mais elegante na época. Eu subia com frequência ao quarto dele para arrumar sua mala antes de leválo ao aeroporto. Saíamos para jantar quase toda noite, e nos constrangíamos com as cortesias oferecidas pelos restaurantes, que sempre se recusavam a cobrar a conta, devido à ilustre presença. Rimos muito na ocasião em que um restaurante português deu um desconto de 10% e assinalou que era pela graça da visita.


A amizade e a preocupação com a editora e a minha família, por parte de Paulo Francis, eram verdadeiras e comprovadas por seus telefonemas constantes – ritualmente três vezes por semana, quando se vangloriava de que quem pagava a conta telefônica era o Roberto Marinho. Com o Jorge, Francis falava todo dia. Era muito bonita a relação dos dois. Paulo mantinha ainda uma longa amizade com Ênio Silveira, de quem se afastou apenas nos últimos anos de sua vida. Os três viveram juntos a perseguição política da ditadura militar, sobretudo Ênio e Francis, que chegaram a ser presos. Ivan Lessa, que se exilara em Londres, também fazia parte do grupo íntimo do jornalista.


Ser amigo do Paulo me trouxe grandes recompensas, especialmente pelo carinho recebido. Uma vez, fui para Nova York com meus filhos e sobrinhos, a caminho de outro destino nos Estados Unidos. Ao chegar ao quarto do hotel, deparei-me com uma caixa que continha perto de trinta cds de Stravinski, nos quais o compositor regia a própria obra. Eram discos recém-lançados que, como eu dissera a Francis, almejava comprar. Acompanhavam o volumoso presente diversos sachês de chá e um bilhete que dizia mais ou menos o seguinte: “Pelo que a Companhia das Letras representa para o Brasil, do amigo Paulo Francis. p.s.: Se alguma noite quiser deixar as crianças comigo e com a Sonia, cuidaremos bem delas.”


Pois é, o jornalista mais ferino do país era capaz de atos de afeto e generosidade sem tamanho. Claramente, o Paulo Francis do jornal e o amigo eram pessoas diferentes.





Quando Fernando Collor de Mello confiscou 80% do nosso dinheiro, em março de 1990, a Companhia sofreu bastante. Fiquei com medo de não ter fundos para pagar os salários. Nessa ocasião, Francis ligava todo dia e perguntava como estavam a editora e eu. Num dos telefonemas, disse: “Luiz, nós, de esquerda, não podemos aceitar essa situação.” Antes ele havia apoiado abertamente a candidatura de Collor. No jornal falava bem de Paulo Maluf e desancava o pt.


O jornalista assistiu ao segundo debate da disputa presidencial entre Fernando Collor e Lula na minha casa, junto com um casal de grandes amigos nossos: o também jornalista Mário de Andrade e sua mulher, Marta Grostein. Mário, que era simpatizante do Partidão, quase não escondia sua preferência pelo opositor de Lula. O candidato do pt saiu arrasado do debate. Houve toda forma de jogo sujo por parte de Collor. Era constrangedor assistir àquele espetáculo de horrores. Francis vibrava, Mário também, disfarçadamente, e a Lili² e eu ficávamos no nosso canto, putos da vida, tanto com a deslealdade de Collor como com a torcida dos nossos dois convidados. Na época, por incrível que pareça, alas do Partidão apoiaram Collor. Só ficamos sabendo disso depois daquela noite. Terminado o evento, Paulo foi para o nosso quarto ditar a sua coluna para a Folha do dia seguinte, o que fez sem nenhuma anotação prévia. Sua destreza com o texto jornalístico impressionava.


2 Trata-se de Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga,mulher de Luiz Schwarcz.


Eu não tinha como falar para meus amigos, alguns vilipendiados em sua coluna, que Francis sabia também ser, no fundo, um homem doce. A eles isso seria de pouca serventia. Sua língua ferina era dirigida, injustamente e com frequência, a vários intelectuais do meio universitário. Artistas eram igualmente atacados. 

A dúvida que nossa amizade causava em mim era sensível. Não adiantava falar com a persona Paulo Francis, pedir que deixasse de atacar este ou aquele amigo. Nas poucas vezes que tentei, ele desconversou. Mas comigo ele se portava com grande dedicação e afeto. Essa é uma questão importante, para a qual confesso que nunca terei resposta. Como se relacionar com alguém tão diferente politicamente e que possui duas personalidades? Uma abjeta e outra generosa ao extremo? Como aceitar um pacote de maldades semanal, vindo de um jornalista próximo, sem fazer quase nada? Ele me deu tanto, era quase um irmão do meu melhor amigo, e por vezes eu o detestava. Acho que, quando cheguei a argumentar, poderia ter sido mais enfático ou até tomado uma atitude, me afastando de Paulo Francis.


Como editor, sou obrigado a lidar com situações como esta: publicar obras de escritores que politicamente têm posturas das quais discordo, mas cuja escrita é sublime. É evidente que há limites para o desacordo com os autores. Livros de direita que expressam posições diversas da minha fazem parte da linha da editora. Textos antidemocráticos, não. Francis não era ainda um escritor da casa. Mas por outros motivos nos tornamos muito próximos. Afeto e política não combinam, mas em várias ocasiões geram questões dificílimas de lidar.


Outra situação delicada ocorre quando publicamos autores que são inimigos mortais entre si. Tracei uma linha clara para evitar que o debate entre escritores contaminasse os livros. Desde o começo da Companhia, só aceitei publicar livros polêmicos quando as disputas são de cunho intelectual, sem ataques pessoais.


Não sou jornalista e não dependo das disputas individuais.


Logo antes de a Companhia das Letras ser fundada, Roberto Schwarz fez uma análise do poema pós-tudo de Augusto de Campos, publicado no Folhetim, antigo suplemento dominical da Folha. Era uma crítica violenta. Dois anos depois, Roberto incluiu seu texto no livro de ensaios Que horas são?. Augusto foi autor de primeira hora da Companhia das Letras. Seu O anticrítico estava entre os primeiros quatro livros que lançamos. Ele apoiou a jovem editora de maneira comovente. O debate era virulento, mas, é claro, de ótimo nível intelectual. Também publicamos a resposta de Augusto de Campos, no volume A margem da margem. Me mantive amigo dos dois.


Nas suas vindas a São Paulo, Francis começou a pedir que fizéssemos jantares em casa para reunir seus amigos. Num deles foi convidado o jornalista Pimenta Neves, na época editor do Estado de S. Paulo, que em 2006 seria condenado pelo homicídio de sua namorada, Sandra Gomide. Após o ocorrido, Paulo foi dos únicos amigos a visitá-lo na prisão. Não há dúvida de que condenava o ato de Pimenta Neves, mas não deixou de ir vê-lo. É um caso extremo de lealdade, difícil de compreender, mas típico do jornalista sempre feroz. Em outro desses jantares, Matinas Suzuki Jr. teve uma discussão acalorada com Elio Gaspari. A questão para Matinas era de honra. Elio tentou sair da briga, e Francis tratou de arrefecer os ânimos, até que, passado muito tempo, se fez a calmaria. No dia seguinte, os dois contendores mandaram flores para a Lili, com pedidos de desculpas.


Paulo ficou fulo quando, no ano seguinte à recepção em que houve a briga, resolvemos fazer o jantar numa sala do Fasano. Não me perdoou. Dessa vez a tristeza maior foi ter entre nós um grande amigo totalmente bêbado. Logo no início do evento, ele já estava debruçado na mesa laqueada do restaurante. Acho que vivia tão alcoolizado que, mal colocava uma gota de bebida na boca, se embriagava imediatamente. Tentávamos jantar, enquanto, na ponta da mesa, o amigo se debruçava sobre o prato e sua companheira chorava sem parar. Era difícil comemorar mais uma vinda de Paulo ao Brasil diante daquele espetáculo tristíssimo.


É curioso notar que em alguns desses jantares havia jornalistas a caminho do fracasso. Francis bem que tentou interferir no destino dos amigos desempregados, usando todos os seus contatos, a fim de conseguir colocações para cada um deles. Também lembro bem como ele detestava o chefe da sucursal da Rede Globo em Nova York. Fazia imitações hilárias de seu jeito de falar e de suas poses, até nos corredores do escritório da emissora.


Quando tive a minha primeira depressão, em 1990, Paulo ficou preocupado. Não era possível me animar por telefone. A depressão não era tão grave assim, mas eu não compareci a uma feira de livros que acontecia todo ano nos Estados Unidos. Logo depois, esse evento da American Booksellers Association (aba) deixaria de ser importante para editores internacionais, que o substituímos pela feira londrina. Na época, Franci me dizia: “Qualquer livreiro decente não pode ficar mais de um ano sem vir a Nova York. Venha para cá e nós vamos todo dia a uma livraria.” Era a sua forma de tentar interferir no esboço de depressão que pairava sobre mim. Aliás, era comum as pessoas chamarem editores de livreiros, numa confusão tipicamente brasileira, que, é quase certo, tinha a ver com o fato de as editoras terem começado no país a partir de livrarias.


Acabei me dobrando à insistência do Paulo e fui para Nova York. Na sua cidade, ele me levou todo dia a um restaurante e a uma livraria. Almoçamos no p.j. Clarke’s e no mítico Four Seasons, entre outros.


Visitar livrarias não é exatamente o que fazem os editores em viagens de negócios. Os livros importantes, já editados, têm seus direitos comprados bem antes da publicação. É bom frequentálas para encontrar obras ao acaso, o que invariavelmente ocorre. Mas nossa busca é nas editoras e agências literárias, sempre por textos que ainda estão longe de serem lançados. De todo modo, aquela semana foi especial. As refeições e visitas ajudaram a extinguir o meu princípio de depressão. Um verdadeiro amigo conta muito nessas horas.


Paulo também se comportou de maneira incrível quando Jorge Zahar fez uma ponte de safena, realizada em São Paulo. Visitei o Jorge todo dia no hospital. Quando ele voltou para o Rio, eu ia vê-lo semanalmente. Grande apreciador da boa comida, de vinhos e destilados, Jorge, como era esperado, ficou deprimido após a intervenção. Além do choque natural causado pela cirurgia, mal conseguia se alimentar e beber. Sofria com refluxo o tempo todo. Ficava em casa com dona Ani, recebia visitas constantes dos membros da família, mas se sentia sozinho. Comentei com Francis o quanto estranhava aquela situação, acrescentando que os paulistas frequentavam mais a casa dos amigos, na alegria e na tristeza, e que a vida no Rio se dava mais em espaços públicos. Francis concordou. Alguns dias depois, numa sexta-feira, sem dizer nada a ninguém, ele tomou um avião em Nova York e, ao chegar no Galeão, passou imediatamente na casa de Millôr Fernandes, de Ruy Castro e de Carlos Heitor Cony. Depois de reunir todos eles no carro, os quatro desembarcaram na casa do velho amigo. Jorge ficou muito feliz. No dia seguinte, Francis voltou para Nova York. Zahar melhorou sensivelmente.


Certa vez, Paulo Francis decretou que iria à Feira do Livro de Frankfurt.

Jorge e eu entramos em pânico, pois a semana de trabalho era sempre intensa, não teríamos tempo de ciceronear o amigo. Não teve jeito. Depois vim a entender o que ele queria. Além da sua curiosidade sobre o que era a feira, sobre a qual tinha uma visão equivocada, Francis pretendia conseguir uma entrevista com Rubem Fonseca, que novamente visitava o evento, dessa vez como convidado da editora alemã que o publicava. Rubem era considerado o J. D. Salinger brasileiro. Se recusava a conceder entrevistas.


Ao chegar, um dia antes do início da feira, Paulo ligou para o meu quarto no hotel e disse, de supetão: “Ele vai me conceder uma entrevista, não vai?” Perguntei: “A quem você está se referindo?” Foi aí que soube do seu objetivo secreto. “Francis, com certeza ele não dará a entrevista”, respondi. “Não!”, ele disse. “Ele dará, sim, e você vai me ajudar.”


É claro que não ajudei; pelo contrário, alertei o Zé Rubem. No dia seguinte vi Francis com um monte de fios, quase lhe formando um rabo, acompanhado de um colega de trabalho com uma volumosa câmera no ombro e de um profissional de áudio, todos eles literalmente correndo pelas avenidas da feira atrás do Rubem Fonseca, que escapava com grande rapidez. “Rubem, Rubem, peraí, peraí”, Francis gritava. Foi um espetáculo nunca visto na Buchmesse. Aliás, ele tinha uma teoria muito curiosa sobre o passado de Rubem Fonseca, sempre criticado por haver trabalhado no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), que servia como base ideológica do governo militar nos anos 1960. O jornalista dizia ter certeza de que Fonseca era um infiltrado do Partido Comunista nos órgãos da ditadura.


Francis queria convidar um grupo grande para jantar. Dele faziam parte o Ivan Pinheiro Machado e seu irmão José Antonio Pinheiro Machado, da editora l&pm. O jornalista Eduardo Bueno veio de carona. Zahar estava com a mulher e a filha, e eu, com a Lili. Não lembro mais se havia outras pessoas, mas por certo era bastante gente, e não tínhamos lugar reservado, situação insolúvel na cidade de Frankfurt naquela semana.


Fomos parar no restaurante de um clube de tênis, em um município perto de Frankfurt. Foi a primeira vez que vi Paulo Francis completamente embriagado. E ele, definitivamente, não era um bêbado bonachão, mas daqueles que se tornam agressivos. Começou desancando meu terno, que tinha quatro botões. “E você?”, disse. “Um rapazola do Bom Retiro com esse jaquetão do Sarney” – na época o presidente da República tinha predileção por paletós daquele tipo. “Esse jaquetão só pode ter sido feito no Bom Retiro. Um editor que se preze nunca se vestiria assim.” Disse isso não uma, mas perto de dez vezes, segurando a bainha do meu terno. Incomodou cada um dos presentes, inclusive a Lili. Fiquei bem chateado, mas relevei, por causa da bebida e da amizade. Pouco tempo depois, Francis pararia de beber. E eu nunca mais vesti um paletó de quatro botões.


Mais constrangedor foi quando ele resolveu escrever um novo romance, coisa que não fazia havia décadas. Seus outros livros de ficção, Cabeça de papel e Cabeça de negro, tinham algum frescor quando foram publicados, mas não sobreviveram por muito tempo.


Paulo dedicou alguns meses à escrita e, na minha ida seguinte a Nova York, na calçada em frente ao hotel Plaza 50, onde eu me hospedava, ele me entregou os originais com uma boutade. Estendeu a mão com o pacote e disse: “Aqui está o novo À la recherche du temps perdu.”


O curioso é que eu levara comigo algumas páginas, bastante iniciais, do livro de memórias de Caetano Veloso, alvo constante dos ataques do jornalista. Na primeira versão, Caetano citava Francis. Naquela que foi publicada,  texto foi cortado, para reaparecer apenas na edição comemorativa. Havia certo fascínio pela figura do correspondente do Estado de S. Paulo – jornal onde agora ele trabalhava –, acompanhado, porém, de uma crítica feroz, demolidora. Contei a Caetano que iria ver seu antagonista, e ele se preocupou com a minha discrição. Expliquei que nós, editores, éramos profissionais, que eu nunca comentaria com ninguém o que lonestava lendo em primeira mão. Caetano riu da coincidência.


Na volta a São Paulo, li os originais de Francis e entendi que eu estava com um grande problema. O romance era impublicável. Como eu poderia dizer isso a meu fraterno amigo? Contratei então a Ana Miranda, para que redigisse um parecer detalhado que se somaria à minha leitura. Ana fez um ótimo trabalho, um relatório em que combinava as qualidades de escritora e leitora. Tomei coragem e escrevi a minha mais carinhosa carta de rejeição. A ela, anexei a leitura de Ana. Entre outras coisas, eu declarava minha amizade profunda e me dizia obrigado a protegê-lo contra as críticas que a publicação geraria. A boutade na frente do hotel representava o tamanho da expectativa dele com o livro. A carta terminava desrecomendand enfaticamente que ele publicasse o romance por qualquer editora. Francis sofreu, mas aceitou, mais facilmente do que eu esperava, e continuamos amigos, como sempre. O livro acabou saindo mais tarde, em 2008, por vontade da Sonia Nolasco, viúva do autor. Intitulado Carne viva, foi publicado por uma pequena editora, a Francis, da família de Nolasco. Paulo havia morrido anos antes. O romance teve pouca repercussão. Além dos problemas literários, o jornalista deixara de ser conhecido pelas novas gerações e por muitos livreiros.


Voltando às emoções hilárias, lembro de uma vez em que fui levá-lo a Guarulhos, tendo feito sua mala no Ca’d’Oro minutos antes. No saguão do aeroporto, Paulo viu um antigo amigo, que ajudara muita gente durante a ditadura, inclusive a ele, e era proprietário de uma casa editorial. Nosso herói, com uma atuação impecável contra o regime militar, costumava, no entanto, atrasar os pagamentos de direitos autorais. Nos anos 1960 e 1970, publicar era uma missão, nem sempre profissional.


Ao ver o antigo protetor, Francis me olhou e disse: “Preste atenção e veja como fulano vai olhar para mim.” Aí se pôs a gritar em altos brados: “Pega ladrão, pega ladrão.” O editor se virou, naturalmente, porque qualquer um o faria. Paulo gargalhava e dizia: “Não falei? Não disse? Ele virou, quá-quá-quáquá.” Até embarcar, Francis só dizia: “Ele virou, ele virou...” Soube depois que, na sala vip, ele encontrou um jornalista para quem reproduziu o trote, se esborrachando de rir.


Passado um tempo, Paulo Francis ficou muito preocupado com um processo de calúnia movido contra ele por alguns diretores da Petrobras. Paulo havia afirmado que eles tinham milhões de dólares guardados em bancos suíços. O escândalo do petrolão, que comprovaria a sua denúncia de corrupção histórica na estatal, ainda estava longe de acontecer. Os acusados pediam 100 milhões de dólares por danos morais, dizia-se na época. As economias do jornalista nunca se aproximariam dessa soma. E, além do mais, nenhum juiz o penalizaria tão duramente. Ninguém sabe por que Francis, que sofreu tanto com isso, nunca pediu ajuda ao Estadão nem à Rede Globo. Para mim, ele mencionara o caso algumas vezes, mas não me dei conta do tamanho da tensão que vivia. O presidente Fernando Henrique Cardoso poderia ter ajudado, dissuadindo a direção da Petrobras de prosseguir com o processo. Amigos seus chegaram a pedir a intervenção do presidente, o que não ocorreu.


Supertenso, Francis começou a sentir dores no braço esquerdo, mas tratou- as com injeções, supondo serem contrações musculares. Não eram. Na manhã de 4 de fevereiro de 1997, Sonia me ligou aos prantos dizendo: “Os paramédicos acabam de sair de casa, Luiz, o Francis está caído no chão, ele morreu, ele morreu.” 


Capítulo de O primeiro leitor: ensaio de memória, livro em que o fundador da Companhia das Letras conta sua trajetória no meio editorial desde os tempos em que atuou na Editora Brasiliense, nos anos 1980, e também reflete sobre o trabalho da edição, publicação e difusão do livro no Brasil. O lançamento será em maio, pela Companhia das Letras.


Revista Piauí - Ed 223 - Abril 2025


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