domingo, 19 de setembro de 2021

Livro sobre a repressão às artes mostra como censores eram paranóicos e mal informados - Sérgio Augusto

 O inventário cobre até nossos dias, com as mordaças providenciadas nos últimos 33 meses pelo governo Bolsonaro


Dois magistrados afinados com o jeito Bolsonaro de ser e nos envergonhar aplicaram uma rasteira em Chico Buarque e Caetano Veloso . Um deles proibiu Chico de não aceitar ser garoto-propaganda da candidatura do governador gaúcho à 3ª via ; o outro impediu que o pastor Marco Feliciano pagasse o que deve por haver xingado Caetano de “pedófilo”.

Ora, direis, que Chico e Caetano foram mais penalizados durante uma ditadura militar. Foram. Além de constrangidos, pressionados e censurados, foram presos e até forçados ao exílio. E por tudo isso eles são figuras de proa de um livro sobre a repressão às artes e, mais especificamente, à música popular brasileira, prestes a sair pela Editora Sonora e adrede intitulado Mordaça .

Com base em 29 depoimentos exclusivos, colhidos entre 2018 e 2020, junto a quem viveu, compôs, cantou e foi amordaçado depois de 1964, sobremodo após a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, Zé McGill, João Pimentel e o editor Michel Jamel montaram uma história do Brasil autoritário, com os artistas que lhe ousaram opor resistência, burlando com mil artimanhas a vigília dos censores, desde a troca de palavras, estrofes e mesmo títulos das músicas encrencadas, até a adoção de pseudônimos, como “Julinho da Adelaide ”, efêmero heterônimo de Chico Buarque.

Distanciadas no tempo, algumas passagens até soam engraçadas. Pois a maioria dos censores, além de paranóicos, eram meio tapados e mal informados. Por desconhecer o significado de “reggae”, um deles vetou uma música de Caetano.

O cobre até nossos dias, com as mordaças providenciadas nos últimos 33 meses pelo governo Bolsonaro.

A censura chegou até nós trazida pela Corte portuguesa, timbrada por brancos europeus. Já a música — ou o melhor dela — nos chegou através dos escravos. Era inevitável que também aí ocorressem conflitos entre a Casa Grande e a Senzala, antagonizando valseiros e batuqueiros. De um lado, o fandango, do outro, o lundu.

Antes mesmo de o chefe da Polícia do Rio dar aquela incerta em pontos de jogatina que inspirou o primeiro samba oficial da história, músicos como Donga, um dos autores de Telefone, já não pode dar muita sopa na rua, que iam direto para o xadrez. Não porque foi da tavolagem, mas porque compunham e tocavam música, e música, um século atrás, era “coisa de desocupado” - e lugar de vadio era o xadrez.

Ser apanhado com um pandeiro no meio da rua dava cana na certa. O emérito pandeirista João da Baiana só conseguiu livrar-se do xilindró por intervenção pessoal do senador Pinheiro Machado, que ainda o presenteou com um pandeiro novinho em folha.

Donga era negro, como João da Baiana, mas apesar de branco, bem nascido e pianista, Freire Júnior também caiu nas malhas do arbítrio. A censura política não livrava a cara de ninguém. Por ter gozado Arthur Bernardes, candidato à sucessão do presidente Epitácio Pessoa, na marchinha carnavalesca Ai Seu Mé, Freire Júnior acabou preso e sua marchinha proibida - mas afinal consagrada campeã do carnaval de 1921. A Censura sempre foi uma de sucesso.

A confusão causada pela gozação em Arthur Bernardes foi episódio isolado na pré-história da censura musical no Brasil. Como sátiras políticas, principal insumo do teatro de revista e do cancioneiro carnavalesco, eram aceitas com interessada indulgência pelos poderosos do dia, que faturavam algum prestígio com as brincadeiras que compositores e revisteiros lhes faziam.

Indultado o pandeiro, um novo vilão entrou na agenda da repressão: o culto à malandragem e à ociosidade, sibaritismo recorrente nas letras de sambas, choros e marchas, que o Estado Novo (1937-1945), no afã de enaltecer o trabalho, ideia fixa de regimes autoritários, combateu de forma implacável. E o operário de Wilson Batista e Ataulfo ​​Alves parou de rosetar e voltou a pegar o bonde São Januário para ir, todo dia e todo prosa, trabalhar.

O controle das músicas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão fiscalizador e repressor das ideias na ditadura do Estado Novo, serviço de modelo ao futuro Serviço de Censura e Diversões Públicas, criado em 1946, já no período de redemocratização, com a precípua intenção de manter as manifestações artísticas sob alguma forma de controle (moral, político, ideológico) pelo Estado.

A Censura funcionou com a sigla SCDP durante uma ditadura militar, até que em 1972 deixou de ser Serviço para virar Divisão, já sem uma eufemística colaboração de um Conselho Superior, desde o nascedouro desmoralizado por este adendo de Millôr Fernandes: “Se é censura, não pode ser superior ”.

A Censura prosseguiu apenas “serviço” até ser solenemente enterrada, em 1988, pelo primeiro ministro da Justiça da Nova República, Fernando Lyra, com a presença na plateia de diversos sobreviventes da sanha proibitória dos Anos de Chumbo. Um deles era Chico Buarque, co-autor de um documento histórico, escrito a dez mãos, traçando em 22 comuns as novas relações entre o Estado e a Cultura, que logo apelidaram de “a Lei Áurea da inteligência brasileira”.

Apesar de infrida logo no governo inaugural da Nova República, presidido por José Sarney, com uma proibição do filme Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, a lei mantida em vigor. Quanto à mordaça, que supúnhamos na lixeira desde 1988, muitos são os saudosistas e herdeiros do fascismo caboclo implantado em 1964 que suspiram por ela até hoje. Como um viúvos das trevas é o atual presidente da República, precisamos seguir à risca o conselho de Caetano, permanecendo atentos e fortes.

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