Elson Costa é um dos militantes de esquerda desaparecidos na ditadura
Acabo de chegar de uma sessão da Comissão da Verdade “Rubens Paiva”,
na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, onde fui, junto com
outros familiares, dar um depoimento sobre meu tio Elson Costa,
sequestrado, torturado e assassinado pelo aparato paramilitar da
ditadura em 1975. Algumas comissões estaduais estão acontecendo, em
contraponto com a Comissão Nacional da Verdade. Em São Paulo, a Comissão
tem levantado, por exemplo, elementos importantes sobre a participação
de empresários no esquema da Operação Bandeirantes. Já falei sobre Elson
Costa em uma das minhas primeiras colunas aqui. Ainda é cedo para
retornar ao assunto, enquanto aguardamos para saber a que verdades as
Comissões chegarão ou não. Quero fazer isso para valer, e no momento
certo. Mas ao mesmo tempo os nervos estão agitados, e é difícil para mim
falar hoje de algum assunto que não seja este.
Elson Costa fez
parte do grupo de dirigentes do Partido Comunista Brasileiro que foram
mortos quando a guerrilha tinha sido vencida e a força repressiva
correspondente passou a ser aplicada sobre grupos, como o PCB, que não
tinham optado pela força armada, e que acreditavam ser possível isolar a
ditadura entrando em todos os nichos que representassem vias
democráticas. Meu tio editava um órgão de imprensa operária cuja gráfica
funcionava numa caixa d’água. A desproporção entre essas ações
políticas e o modo como seus agentes foram eliminados com requintes de
perversidade (dos quais vou poupá-los agora) diz tudo sobre o caráter
fascista da máquina repressiva da ditadura militar. Tratou-se de um rito
de erradicação sumária que se realimentava pela tortura.
É
possível elucubrar sobre a lógica que comandou essa “obra tardia” da
repressão militar, quando esta não pareceria mais tão necessária
militarmente. Cálculo frio do golpe final sobre o inimigo,
“racionalidade” levada à última instância no exame das forças adversas,
extensão “natural” da luta contra a luta armada? Ou gozo da violência em
seu estado quimicamente “puro”, a máquina de tortura e morte replicando
a si mesma, infinita enquanto dura, aspirante ao mal absoluto? O grupo
que vivia disso quis mostrar serviço, como que a provar a necessidade de
sua própria sobrevivência funcional? O sucesso subiu-lhe à cabeça?
Ou
constatou que o PCB era o verdadeiro detentor da verdade histórica, que
nele estava o fermento que levaria ao final da ditadura pela via não da
luta armada mas da pressão das forças democráticas, como preferiu
sustentar, hoje, uma militante partidária?
Só a arte consegue
sondar a verdade das múltiplas versões, atravessar o seu entrelaçamento
não acabado, dar-lhe a volta paradoxal, paródica, trágica, oxigenando a
constatação perturbadora de que não há, a rigor, uma Verdade final sobre
a verdade, sem nem por isso deixar de aplicar golpes certeiros.
Felizmente li, faz pouco tempo, a novela “Estrela distante”, de Roberto
Bolaño, depois de ouvir falar tanto dele. É uma narrativa alucinante,
hilariante, contundente, terrível, sinistra, sobre os desaparecimentos
de pessoas no Chile de Pinochet. Como se trata de um país letrado, tudo
ali envolve o literário: oficinas de poesia cujos frequentadores e
frequentadoras vão sumindo e reaparecendo ou não, sob formas que estão
entre o rumor, o rebate falso, a controvérsia, o exílio presumido, o
esconderijo, o assassinato político. A mudança de identidade obrigada
assombra as relações, mas salta em meio a elas a do impostor infame, o
artista fascista que se transmuta de falso poeta autodidata chavecando
frequentadoras de oficinas de poesia em ícone espetaculoso da direita, e
cuja “obra de arte total” é feita das acrobacias aéreas com que desenha
no céu versos patéticos de fumaça, complementados com torturas, crimes
seriais e fotografias. Num coquetel constrangedor entre seus pares, em
que leva ao limite a sua poética radical de estetização do mal, expõe
fotos de corpos mutilados assassinados pela ditadura e por ele mesmo,
pegando-os de surpresa com a visão inominável daquilo que todos sabem
que não devem admiti-lo. Uma espécie de Exposição da Verdade pela
culatra.
Quase todos os países que passaram pelos crimes da
ditadura passaram, em contexto democrático, por alguma maneira de
admissão, elaboração e simbolização da verdade. O Brasil, para variar,
vem na rabeira do processo. Porque o torturador é também uma forma grave
de desaparecido político, com a diferença de que os mortos da ditadura
sustentam a sua verdade, na sua ausência, enquanto que a ausência
pública do torturador é uma mentira histórica. Sabemos que não há
Verdade, com maiúscula. A não ser quando há mentira maiúscula.