sábado, 25 de maio de 2013

Twitter.BR - Cora Rónai

O Globo - 25/05/2013
 
Direção da rede no país procura
popularizar mais uso das hashtags e
também investir nos vídeos do Vine


Ferramenta de chat, rede social, microblog —
até hoje há quem não saiba direito a que veio
o Twitter, sobretudo no Brasil, onde, significativamente,
sua maior concorrência, até outro dia,
era o Orkut. Somos expansivos, gostamos de bater
papo e de jogar conversa fora, dois conceitos que
não combinam com a brevidade imposta pelos 140
caracteres do passarinho azul.

— As pessoas ainda fazem confusão —reconhece
Guilherme Ribenboim, diretor geral da empresa no
país. — O Twitter não é propriamente uma rede social;
é, sobretudo, uma rede de informação.

O desafio de Guilherme, que assumiu o posto há
seis meses, é ampliar a presença do Twitter no Brasil
e botar os pingos nos ii. Para isso, ele tem conversado
com formadores de opinião e com os VITs,
Very Important Twitters, em geral celebridades
com grande número de seguidores. Tem também
fechado parcerias com empresas. A mais emblemática,
até aqui, foi a presença no Camarote da
Brahma, no Carnaval. Ao mesmo tempo, ele é uma
espécie de evangelista das hashtags, as etiquetas
precedidas de jogo da velha que viraram sinônimo
universal do Twitter.

Hashtags são muito úteis para identificar assuntos
e são, em princípio, elementos de escrita pragmáticos.
Na hora da novela, por exemplo, quem
quer entrar no papo geral marca os seus tuites com
#amoravida; já quem quer ver o que os outros estão
achando, dá uma busca em #amoravida para encontrar
todos os comentários.

Com o tempo, porém, as hashtags ganharam
também uma aura metafísica, que define o sentimento
da vida num certo momento. Quem é que
ainda não viu um #prontofalei, hoje clássica identificação
de desabafo? Ontem mesmo usei um
#pyongyangfeelings quando twittei sobre o apagão
que me deixou sem luz e, consequentemente, sem
internet: afinal, nada mais Coreia do Norte do que
falta de luz e de conexão...

Outra missão de Guilherme Ribenboim é difundir
o uso do Vine, espécie de cruzamento entre
YouTube, Instagram e Twitter que, com um ano,
começa a bombar nas paradas. O Vine, comprado
pelo Twitter em outubro do ano passado, e lançado
em fins de janeiro deste ano, é um aplicativo que
faz e compartilha filmetes de seis segundos. Ele
tem dois grandes trunfos: os seis segundos, justamente,
equivalentes aos 140 caracteres em palavras
e perfeitos para quem vê, e a absoluta facilidade
de uso. Para gravar, basta tocar na tela; para parar
de gravar, é só tirar o dedo. Os filmetes são praticamente
fotos em vários tempos: toca, tira, toca, tira...
simples assim.

O desafio é fazer videos interessantes. Loops e bichos
de estimação têm se provado populares. Há
pessoas super criativas que fazem autênticos milagres
com tão poucos recursos; o resto da humanidade
se contenta em mostrar o que vai comer. E,
claro, os gatos. Muitos gatos!

O maior entrave à popularização do Vine é que,
por enquanto, ele só funciona em iOS, o sistema
operacional do iPhone. Nos Estados Unidos, porém,
onde o smartphone da Apple domina o mercado,
o Vine já tem massa crítica: há fins de semana
em que mais de 100 mil videos são postados, e até
Sir Paul McCartney aderiu à brincadeira.

— A velocidade com que as pessoas aderem às
novas redes é impressionante — observa Guilherme
Ribenboim. — Ashton Kutcher levou três anos
para chegar a um milhão de seguidores no Twitter.
Os usuários mais seguidos do Vine devem chegar a
isso nos próximos três meses, se não antes

Um fogão para Dilma - JORGE BASTOS MORENO

O GLOBO - 25/05/2013

Um dia depois de ser eleita a segunda mulher
mais poderosa do mundo, a presidente
Dilma Rousseff revela uma inusitada frustração
de dona de casa — a de não ter um fogão
para ela mesma preparar suas refeições rápidas.
O que hoje já é uma realidade na maioria
dos lares de baixa renda, para a presidente,
não passa de um sonho: “Eu preciso ter
um fogão, urgentemente!”.
Desconfio que, talvez, seja por isso que o governo
esteja pensando em lançar um novo e
impactante projeto do Minha Casa Minha Vida,
sobre o qual estou impedido de falar, para
não estragar a surpresa: o cartão de crédito para
a aquisição de móveis e eletrodomésticos.
Pronto, falei. Mas eu não soube disso pela presidente,
e sim por fontes da área social.
Tudo sobre o fogão e a constatação de que,
se fosse mais nova e com filhos pequenos, não
conseguiria exercer em plenitude o cargo de
presidente da República, você vai saber agora,
neste relato sobre meu encontro com a Dilma:
Preocupado com as últimas semanas de estresse
vividas pela presidente Dilma, por causa
do comportamento do PMDB da Câmara na
votação da MP dos Portos, levei para ela o livro
“Te cuida!”, do meu cardiologista Cláudio Domênico.
Expliquei-lhe que a obra enfatiza a
qualidade de vida como foco da moderna
“medicina comportamental” e, nesse sentido,
inclui até a espiritualidade como elemento de
vida saudável, desde que não se sobreponha
ao tratamento convencional. Ela adorou e botou
na bagagem para ler no avião, durante a viagem
que está fazendo à África.
— Que coincidência. Acabam de me recomendar
esse tipo de tratamento, a busca da
medicina comportamental. Sugeriram que
eu tentasse algum tipo de concentração logo
ao acordar, uma coisa zen, desligando-me
dos problemas. Você consegue me ver assim,
desligada de tudo, com tudo isso que acontece
à minha volta?
Pronto, era a deixa de que eu precisava para
entrar nos assuntos mundanos:
— Realmente, não consigo imaginá-la levitando
no meio desse barulho todo do PMDB,
do combate à inflação e da oposição lançando
candidatos.

PALANQUES

Mas a alegre presidente que estava à minha
frente não queria saber de mais problemas,
além dos que já enfrenta dentro de casa. E não
foi por falta de insistência que ela deixou de falar
de política e de economia. Dilma, habilmente,
fugiu de todos os assuntos relacionados às
eleições de 2014. E eu não sou suficientemente
idiota para pressioná-la a falar de sucessão presidencial,
na hora do expediente, dentro do gabinete
presidencial. Não sou, repito, suficientemente,
apenas razoavelmente: tentei falar das
eleições dos outros, ou seja, das dos candidatos
a governadores. Mas nem por aí consegui arrancar
nada, a não ser o reconhecimento de
que a disputa entre o PT e o PMDB em alguns
estados é o mais grave da aliança. Como eu vinha
de um almoço com o seu vice-presidente,
que estava muito animado, apostando que, à
exceção deste osso de pescoço que é o Rio, as
demais brigas estaduais não deverão afetar a
eleição principal, provoquei:
— O seu vice diz que todos os governadores
do PMDB em litígio com o PT repetem
“Michel, aconteça o que acontecer, nosso palanque
é seu e da Dilma”. Isso mostra a segurança
dele em relação à preservação da aliança,
com a mesma chapa. Existe algum risco
ou isso é matéria vencida?
— É matéria vencida! — limitou-se a responder
a presidente.

SAUDADE DO AROUCHE
É necessário situar o leitor sobre o clima e
as circunstâncias em que fui recebido pela
chefa da Nação, no seu gabinete no Palácio
do Planalto. Uma quinta-feira muito movimentada
pelo fim da novela da nomeação —
ufa! — do novo ministro do Supremo e por
outras questões importantes, fui recebido
quase duas horas antes da viagem da Dilma à
Etiópia. Recebeu-me assim:
— Sinta-se um privilegiado! Fiz de tudo para
encaixá-lo na agenda!
Não deixei por menos:
— E eu que tive que encurtar uma conversa
com a Carolina Dieckmann para estar aqui!
— Nossa! Você abandonou a bela Carolina
Dieckmann por minha causa e da ministra
Helena?
— As senhoras merecem!
E aí entramos no nosso assunto favorito:
televisão.
A presidente contou que se diverte revendo
o “Sai de baixo”, no canal Viva:
— É meu programa favorito. Sei os horários
todos. Vejo e ainda gravo. E fico torcendo para
que o episódio da semana seja um daqueles
antológicos que nunca saíram da minha
memória. Vendo o “Sai de baixo”, depois de
ter visto a Adriana Esteves em “Avenida Brasil”,
é que a gente tem a dimensão da genialidade
dessa atriz.
Dilma explica por que Viva é o seu canal favorito:
— Porque nesse canal revejo também os personagens
do Jô Soares no “Viva o Gordo”. Todos
os personagens do Jô eram ótimos, mas eu me
divertia com os Bombeiros Encanadores. Eram
ele e o seu companheiro Jefferson, feito por
aquele outro humorista sensacional, um moreno,
de cujo nome não me lembro agora.
— É o Eliezer Motta — socorri.
A presidente manifesta o desejo de um dia poder
ter um encontro descontraído com esses
ídolos da televisão:
— Esse encontro tem que ter as duas Fernandas,
mãe e filha. A Fernanda Torres tem um texto
inteligente, maravilhoso. É uma excelente
cronista. Gosto de ler seus artigos em jornais e
revistas. Como atriz, nem se fala.

FERNANDINHA COR DE ABÓBORA

Não desisto e tento inserir política na pauta:
— Concordo com a senhora de que a Fernanda
Torres tem um dos melhores textos da mídia
brasileira, tanto que vivo fazendo campanha
para ela entrar para a Academia Brasileira de
Letras. E agora vem esse Fernando Henrique
atrapalhar meus planos.
Dilma finge que não ouviu esse último nome e
continua falando da atriz:
— E a Fernanda Torres está impagável neste
que acho um dos melhores programas da televisão
brasileira, o “Tapas e beijos”. Eu me divirto
muito com ela e com a outra sensacional atriz
que é a Andréa Beltrão. E aquele uniforme das
duas, cor de abóbora, se não me engano?!

CORAÇÃO DE MÃEZONA

Sobre novelas, Dilma, já sobre a estreante
“Amor à vida”, acredita que o drama da personagem
de Paola Oliveira em busca da sua filha tem
tudo para comover os telespectadores. E foi nesse
momento, citando a forte relação entre mães
e filhos, que a presidente fez esta reflexão:
— Tenho a certeza de que, se fosse mais nova e
tivesse filhos pequenos ou adolescentes, eu não
conseguiria exercer em plenitude a presidência da
República. Por exemplo, estou embarcando agora
para a Etiópia. Se, na minha ausência, acontecesse
qualquer coisa com um filho pequeno, eu abandonaria
tudo e voltaria correndo. O sentimento
materno é muito maior do que qualquer outra coisa.
Graças a Deus, tenho uma filha adulta, independente,
responsável, capaz de enfrentar
qualquer adversidade na minha ausência.
— E o seu neto, Gabriel?
— Aí eu me enlouqueceria! Se bem que não
tiro o poder da mãe. Não sou uma avó possessiva,
dessas que tentam invadir o espaço da mãe.
Minha filha é uma mãe muito responsável. Ela
sabe cuidar do meu neto melhor que eu.

ELOGIO INSULTUOSO

Procuro outro caminho torto de voltar ao
tema político e finjo constrangimento:
— Para mim, a melhor definição do papel
dos avós foi feita por personagem que não deve
ser citável neste gabinete: o José Serra. Diz
que avós só estragam os netos porque têm certeza
de que os pais estão aí para consertá-los.
A reação é surpreendente:
— E quem falou para o senhor que José
Serra não pode ser citado aqui? Não é porque
ele foi meu adversário na eleição que eu vou
deixar de reconhecer sua importância, sua
inteligência! Posso discordar, como discordo,
do Serra, mas não deixo de reconhecer sua
capacidade, sua inteligência.
(Meu Deus! Como Serra reclama até de nota
a favor, certamente vai pedir direito de resposta
para o insultuoso elogio presidencial. Para
ele, que não ouve uma palavra amiga do Aécio,
ser elogiado pela Dilma é quase humilhação).
Indago se, quando sua única filha, Paula,
era criança, ela tinha algum sentimento de
culpa, por trocá-la pelo trabalho.
— E como!!! Mas esse sentimento não era exclusividade
minha já naquela época em que a
mulher começava a assumir e se impor em
funções executivas. Nos dias de hoje, nem se
fala! É coisa cultural, normal, a presença maciça
da mulher no mercado de trabalho. Por
mais que a mãe monte uma infraestrutura para
os filhos, durante as horas em que passa no
trabalho, por mais amor e carinho que tenha
por eles, o sentimento de culpa sempre vai
existir. Ele é inevitável.

FOME MADRUGADORA

Na verdade, eu deveria ter começado o relato
sobre a conversa com a Dilma compartilhando
com vocês o grande drama que vive a nossa
presidente da República e que foi o motivo
principal da minha convocação ao Palácio.
A gente pensa que vida de presidente da
República é fácil, cheio de mordomias.
Ledo engano!
É pior que a nossa. Pelo menos da minha e
de milhares de brasileiros que, como a Dilma,
costumam sentir fome de madrugada:
— Eu preciso de um fogão, urgentemente.
Mas não querem me dar um fogão. A cozinha
fica muito longe dos meus aposentos. Às vezes,
quero comer um omelete, um mexido. E
não tenho fogão.
Eu quis saber:
— Por que não botam um fogão mais perto
da senhora?
— Alegam que é por segurança e, também,
por falta de exaustores.
— Micro-ondas pode ser uma solução —
sugeri.
A presidente rebate:
— Nem pensar. Eu quero fazer minha própria
comida quando eu tiver fome à noite.
Não resisti:
— Com todo o respeito, presidente. Mas a
sua fama na cozinha é péssima. Suas colegas
de prisão que faziam rodízio com a senhora no
fogão dizem que seus mexidos eram horrorosos.
Que nem salada a senhora sabia fazer: ralava
os legumes crus e jogava um em cima do
outro, botava um litro de limão e salgava tudo.
E ela:
— Já até sei quem te falou. Ela não deixa de
ter razão. No início, eu cozinhava mal. Depois
fui aprendendo. Aprendi a fazer molho
branco, cozinhar os legumes, fazer arroz direitinho.
Hoje cozinho bem, mas nem tanto
quanto a sua chef, mas dá para o gasto.
— E a senhora cozinhava só para as suas
colegas de cela?
— Eu cozinhava para 20 a 25 pessoas. Claro
que tinha gente que cozinhava melhor que
eu. Mas, por exemplo, a minha sopa de beterraba
era imbatível.

TORCEDORA COMPULSIVA

Sobre Copa do Mundo, perguntei-lhe qual
estádio desses que estão prontos é o mais bonito.
Dilma respondeu que não só ela, mas os
dirigentes da Fifa e as pessoas envolvidas
com a Copa acham que, por fora, o mais lindo
é o de Brasília, mas reconhece:
— Por dentro, é o Maracanã. Mas os de Salvador,
Recife e de outras capitais são muito
bonitos também.
E, sem querer, a presidente bota a bola nos
meus pés para eu fazer o golaço da conversa:
— Em Recife, o jogo foi entre dois times de
operários. Eu não posso ver um jogo que acabo
escolhendo logo um time para torcer. Quando
me dei conta, já estava torcendo para um deles.
Não tive dúvidas e chutei a bola:
— Aposto que a senhora torceu para o time
que não era o do Eduardo Campos.
Depois da resposta que tive, só me restou
encerrar a conversa e partir para o abraço.
Com um sorriso nos lábios, Dilma pensou,
pensou e disse:
— Olha, para dizer a verdade, nem reparei para
que time o governador Eduardo Campos estava
torcendo. Se é que ele torceu por alguém.

Nem é bom lembrar. Ou é - ZUENIR VENTURA

O GLOBO - 25/05/2013

No momento em que a Comissão da Verdade confirma que a tortura já era amplamente utilizada pelos militares em 1964, e não a partir de 1968, como resposta à luta armada, não se pode deixar de lembrar um episódio de muita repercussão na época e que se tornou emblemático por ter ocorrido em praça pública e com direito a plateia, como se fosse um daqueles espetáculos bárbaros de antigamente. Nos primeiros dias do golpe, o líder comunista Gregório Bezerra, depois de selvagemente espancado dentro de um quartel do Exército em Recife, foi puxado para a rua, onde aconteceu o que ele contou ao "Pasquim" em 1978, numa entrevista nunca desmentida. "O coronel Vilocq (Darcy Viana) gritava para a massa: "Lincha esse bandido, matem, joguem garrafas, pedaços de ferro, pedras nesse monstro que queria incendiar o bairro para queimar crianças"." Horrorizadas, as pessoas viravam o rosto. "Saíram me arrastando até o jardim da Casa Forte, onde Vilocq fez outro comício concitando a me linchar. Mais uma vez ninguém atendeu, o que me encorajava, me dava uma vontade louca de resistir."

A cena, presenciada pela então jovem advogada Mércia Albuquerque, foi assim descrita por ela: "Gregório, vestindo apenas calção preto, com a cabeça fraturada sangrando, banhado de suor, com os pés que haviam sido mergulhados em soda cáustica e os pulsos feridos pelas algemas, tinha uma corda de três pontas amarrada no pescoço e era arrastado por um grupo de soldados, seguido por um carro de combate." Segundo ainda seu relato, "o tenente-coronel Darcy Vilocq ensandecido agitava uma vareta de ferro e gritava, apoplético, injúrias contra o velho militante comunista, seu prisioneiro. Como se dirigisse um ato de fé da Inquisição, conclamava os espectadores tomados de pânico: "Venham ver o enforcamento do comunista Gregório Bezerra!""

Enquanto o cortejo sádico circundava a Praça da Casa Forte, com transmissão ao vivo por uma rádio e um canal de televisão, religiosos liderados por uma freira acionaram Dom Lamartine, bispo auxiliar, que telefonou para o general Justino Alves Bastos solicitando sua interferência. O então comandante do 4º Exército interveio, impedindo que a barbárie fosse coroada com o anunciado enforcamento.

Enfim, nem é bom lembrar essas coisas. Ou é - para que não se repitam. A História, já se disse, não deve servir de exemplo, mas pode servir de lição. É o que a Comissão da Verdade está tentando fazer.

Por falar em passado, vou parodiar os adversários de Richard Nixon: você compraria um carro usado do atual presidente do Brasil?

Não ouvir - José Miguel Wisnik


O Globo - 25/05/2013

O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música instrumental surgida no Brasil nos últimos tempos

O pianista André Mehmari é um dos maiores fenômenos da música instrumental surgida no Brasil nos últimos tempos. Quem acompanha o gênero conhece certamente a sua técnica espantosa, sua fluência única e sua capacidade de transitar com sobra entre os estilos da música popular e da música de concerto. Seu recital recente na Sala São Paulo remetia, sem medo do paralelo, a uma versão brasileira do paradigma Keith Jarrett, o pianista que tem o instrumento como uma extensão total do corpo e que improvisa numa zona sem fronteiras entre as formas que o piano acumulou. Mehmari relata no Facebook uma experiência recentíssima e a seu modo chocante, que desafia a nossa capacidade de ler o estado atual das coisas.
Antes de passar a ela, uma observação a mais sobre a comparação entre Jarrett e Mehmari, marcando agora não a semelhança mas uma diferença estética, para não deixar a comparação de passagem num plano muito simplista. Jarrett é angustiado, problematiza o silêncio que o ronda, envereda pelo fragmento e pelo choque, entre o jazz, a música clássica e os impasses da arte moderna. Mehmari é de uma musicalidade sem dramas, de fundo romântico, que jorra nos moldes daquela que a lenda consagrou como sendo a de Villa-Lobos, que não conhece nem coloca limites à sua inesgotável capacidade de expressão.

Vamos aos fatos. André foi participar de um espetáculo para 600 crianças de escolas públicas, com idades entre 10 e 12 anos, num dos teatros municipais de Campinas, no bairro da Vila Industrial. Acho que o programa se chama “Ouvir para crescer”, e se iniciava com uma parte em que atores apresentavam de maneira divertida, caracterizados como palhaços, as características da linguagem musical. Até aí o roteiro pedagógico-cultural transcorria sem sustos. Em seguida entrava André, que apresentaria músicas de Ernesto Nazareth, fazendo as pontes, que ele é mestre em fazer, com outros repertórios. Ao começar uma explicação sobre a sua participação, e mesmo antes de tocar, começou a receber vaias e xingamentos pesados, intensivos, que se multiplicaram e continuaram ao longo de toda a apresentação.

Mehmari é uma pessoa sem pose, suas apresentações são informais e guiadas pela vontade sincera de contribuir. A rejeição não se aplicava a eventuais pompas ou a alguma ostentação de atitude. Imagino que ela se dá, primeiro, na passagem do tom divertido da primeira parte ao tom mais sério e concentrado que ele imprimia. Junto com este vêm certamente, misturados na reação cega da massa de xingamentos, o peso oficial da escola desacreditada, confundido com o estranhamento de classe social, que o pianista deve ter encarnado involuntariamente naquela situação ao mesmo tempo específica e sintomática.

Antes de qualquer outra consideração, é preciso dizer que a reação cega e coletiva ao outro, informe, não elaborada, dada de antemão e deixando sem ação os monitores do programa ironicamente intitulado “Ouvir para crescer”, com o agravante de que vinha de pré-púberes, é um sinal, entre outros, de pontos de ruptura no tecido civilizatório que passa pela escola. Notícias recentes, vindas de muitas partes, de violências no espaço escolar, dentro ou fora da sala de aula, indicam essa espécie de liberação do ataque físico ou verbal, a colegas ou a professores, como uma prática disseminada da qual a plateia referida pode ser vista como um corpo de aprendizes já em plena atividade.

Mais que isso, eles estão imitando procedimentos que estão se dando de muitas formas e em muitos lugares, não só nas chamadas classes C e D, como era o caso, mas nas A e B, na escola, nos debates, nas instituições, na rua. Gozar mais a derrota do time adversário do que a vitória do próprio time é um dos sintomas dessa síndrome. Quem quiser entender isso precisa escapar da lamentação moral de classe média sobre a falta de educação nas famílias. Não que ela não exista, e não seja um dos focos da questão, mas é que ela faz parte de uma rede de identidades que se constituem precariamente sobre a relação rivalitária de indivíduos e grupos cuja afirmação de existência depende da negação frontal do outro. É uma queda do laço simbólico que supõe a troca e a aceitação da própria fragilidade, das próprias insuficiências e das próprias contradições.

A cultura alta levada para jovens plateias pobres (no caso, Nazareth!), pode fazer o papel de ingênua, nesse contexto em que os muros e os fossos reais e imaginários prevalecem. Mas a questão, para mim, continua sendo a de ultrapassar os muros e os fossos, nas duas direções.