sábado, 7 de dezembro de 2013

João Paulo - Eu já tenho candidato

Eu já tenho candidato
João Paulo
Estado de Minas: 07/12/2013

 
Jesus Apolonia e Angel Ronquilla durante o Mundial de Futebol de Rua no México: craques da vida real   (Tomas Munita/AP)
Jesus Apolonia e Angel Ronquilla durante o Mundial de Futebol de Rua no México: craques da vida real

A eleição é só no ano que vem, mas já tenho meu candidato: José Genoino. Não se trata apenas de um político sério e devotado ao Brasil, mas de um homem que teve coragem para enfrentar a ditadura com o risco da própria vida. Não é desses que, como muitos, hoje se multiplicam a cada ano a inventar um passado que não viveram e uma luta da qual não participaram. Ele não vai ser candidato, eu sei, mas votarei em alguém como ele.

Genoino teve que renunciar ao cargo. Está doente. Foi examinado por médicos para ver se poderia cumprir sua pena em casa. Havia uma torcida que vinha do Supremo Tribunal Federal para que ele voltasse para a cadeia. Quando a Justiça se torna vingança ou obsessão pelo castigo, alguma coisa anda errada. Não foi isso que a humanidade aprendeu com a história.

O presidente do STF, Joaquim Barbosa, parece determinado em seu empenho de fazer justiça, mesmo que para isso passe por cima da lei e afaste, por exemplo, o juiz natural de execuções penais para obter uma obediência mais cega e alinhada. Ver Genoino doente ser considerado um homem que foge às responsabilidades é no mínimo um erro de julgamento.

Não se trata sequer de voltar ao caso do mensalão. Já está julgado. O que chama a atenção é o rebaixamento do senso de justiça às conveniências de certa cobrança por punição que vem dos meios de comunicação de forma orquestrada e daí chega até as pessoas quase como histeria sem compaixão. Realizado o julgamento e determinadas as penas, o que deveria se esperar era a recuperação da institucionalidade, não a procrastinação dos efeitos da sentença como um opróbio.

Curiosamente, o destaque alcançado pelo presidente do STF acabou criando uma paradoxo. De um lado, impulsionado pelo estilo rígido e autoritário, o ministro Joaquim Barbosa passou a ocupar o lugar sempre reservado aos heróis construídos pela mídia: foi alçado a candidato à Presidência da República, sem passar pela via da política, nos moldes messiânicos típicos dos momentos de crise. No entanto, o mesmo homem que havia se tornado modelo de retidão foi sumariamente esnobado pelos partidos, que se apressaram em afastar qualquer possibilidade de aproximação.

É explicável: a recusa à política, típica dos comportamentos autocráticos, poderia corroer por dentro os partidos, que se tornariam em um ato muito menor que seu candidato ungido. Não cabe, no estilo de Joaquim Barbosa, a saudável capacidade de precisar dos outros ou conviver com a discordância. O Judiciário, sobretudo a câmara mais alta, padece por definição de um certo orgulho de origem: ela é instituída, mas no momento que passa a operar se torna defesa de qualquer controle.

Parece que vai ficando claro com o tempo que os mandatos vitalícios dos tribunais, sobretudo nas cortes mais elevadas, são um risco. O que a experiência possibilita em termos de conhecimento, a permanência na posição retira em favor de certa postulação de acerto por antonomásia. Os ministros do STF não são os mais preparados, tem ficado claro a cada dia, mas os mais bem relacionados. Com isso fica bamba a segurança jurídica e a independência política.

O STF não é apenas um órgão técnico, a forma de ingresso dos magistrados deixa clara sua vinculação política e a necessidade, portanto, de alternância. Além disso, um erro de origem teria como ser consertado sem que fosse necessária uma crise institucional. Com mandatos com prazos definidos, os julgadores estariam sujeitos às mesmas determinações dos outros mandatos. Melhor ainda se fossem eleitos, como é comum em alguns países com forte tradição judiciária. Por que, ao lado da reforma política para o Legislativo e o Executivo, não se pensa em estender o mecanismo democrático para o Judiciário?

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No ano que vem, a Copa do Mundo vai consagrar uma trajetória de equívocos: submissão aos interesses de uma organização privada (Fifa) e corrupta de acordo com processos internacionais, gastos desnecessários em obras desnecessárias, gastos exorbitantes em obras necessárias, supressão de leis nacionais (beber em estádio e livre comércio) em favor de patrocinadores privados, e por aí vai. O hediondo teatro da briga de torcidas (do mesmo time, o Cruzeiro) no domingo passado, em Belo Horizonte, foi uma prova do que pode o álcool em território de emoções anabolizadas pela rivalidade.

É sempre bom lembrar que a Alemanha não mudou em nada suas regras internas e o que os EUA, quando sediaram o torneio, puseram traves em campos de beisebol e futebol americano e deixaram a bola rolar. Aqui se derrubam estádios e se constroem estádios, que caem e matam brasileiros antes de ficar prontos. Essa conversa é velha, ainda que necessária até que o bom senso das manifestações volte a ocupar as ruas.

O pior, para quem gosta de futebol, é que os jogos serão de um esporte que já foi futebol e hoje é outro tipo de peleja, mais bruto e rápido. Mas nem tudo está perdido. Em julho do ano que vem, ao lado do torneio da Fifa, o Brasil recebe outro campeonato muito mais interessante, o Mundial de Futebol de Rua 2014, que traz seleções de jovens das Américas Latina e do Norte, da África e da Ásia. A Europa, sede da Fifa, não manda seus times. Eles não devem conhecer o futebol de rua, ou “callejero”.

Não é um jogo qualquer. É na verdade uma prática sociopedagógica, que ao lado da diversão (pode acreditar, futebol é divertido, não é só guerra e comércio) se volta para ações comunitárias e para a inclusão social dos participantes. Entre os países que praticam o futebol “callejero” estão Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Costa Rica, Equador, Colômbia e Panamá.

Como toda experiência social, as regras são negociadas entre as equipes e existem para tornar o esporte mais rico de significação humana. Além dos gols, contam para o placar final o alcance das metas estabelecidas, que podem ser a paz, a alegria, a solidariedade, a inclusão. O jogo limpo é melhor que o jogo vitorioso. Curiosamente, não existe juiz no futebol de rua. As dúvidas são arbitradas coletivamente. Como na vida.

Qualquer semelhança com a antiga pelada que você jogava com os amigos não é coincidência, mas preservação do mínimo de humanidade que ainda existe em cada um de nós.

A espada e a paz - João Paulo

A espada e a paz

Livro sobre a dimensão histórica de Jesus, Zelota, do historiador iraniano Reza Aslan, defende a raiz política da mensagem do nazareno. Obra vem causando polêmica em todo o mundo

João Paulo

Estado de Minas: 07/12/2013
 
Cristo Redentor, no Rio de Janeiro: uma das imagens mais conhecidas do maior revolucionário de todos os tempos   (Yasuyoshi Chiba/AFP)
Cristo Redentor, no Rio de Janeiro: uma das imagens mais conhecidas do maior revolucionário de todos os tempos

Jesus não é um só. Há o Jesus de Nazaré, homem pobre, trabalhador braçal, com todas as marcas de seu tempo, identificado com correntes contestadoras do domínio romano na Palestina: um ser político, de tendências revolucionárias, defensor da fé judaica. E há também Jesus, o Cristo, que depois de sua morte foi chamado de o “filho de Deus”, que está na base de uma nova religiosidade e fundou uma linhagem espiritual. Um Jesus da espada; um Jesus da paz.

Passados mais de 2 mil anos, o primeiro Jesus, um entre muitos messias que lutaram contra Roma e morreram na cruz, se tornou apenas uma sombra, o grande mestre do cristianismo, que tem sua obra descolada das origens políticas para dar relevo à mensagem de natureza religiosa e universal. O Jesus histórico é principalmente um judeu, com as paixões e contradições de seu tempo. O Cristo que emerge dos evangelhos é um mestre espiritual pacífico, que foi afastado de seu nacionalismo judaico para ser identificado com questões que não são deste mundo. Um Jesus que os romanos podiam aceitar sem temor de vingança pelo massacre de Jerusalém.

Um Jesus da política e um Jesus da fé.

Essa é a tese central do livro Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan, livro que vem causando polêmica. A explicação do desconforto e reação iracunda de alguns leitores é, mais uma vez, política: Reza Aslan é iraniano e muçulmano. Depois de bate-bocas em programas de televisão nos Estados Unidos e rejeição por parte de críticos católicos, o autor se viu em meio a situações de preconceito que envolvem os temas ligados à sua origem e fé. Pareceu, a seus críticos, que Reza Aslan escreveu seu livro para atacar o cristianismo e enxergar nele uma matriz revolucionária que mistura política e religião, o que seria característica de sua interpretação da história. Afinal, com alguma honestidade, os muçulmanos sabem que história e religião não se separam.

Mas Reza, que foi cristão na juventude e mora em Nova York, é um especialista em história das religiões, formado em Harvard e autor de obras importantes sobre o tema. Seu livro não é um ataque a Jesus, muito menos sofre de excesso de interpretação baseado em poucos fatos. Ao contrário, trata-se de um livro de história, erudito e extremamente legível, sustentado por ampla bibliografia. Cada capítulo ganha, ao final do trabalho, um verdadeiro ensaio bibliográfico atualizado, que sustenta as afirmações e interpretações do autor.

A busca da pluralidade de fontes se justifica. Sabemos muito pouco sobre o Jesus histórico a partir de depoimentos de seus contemporâneos. Os primeiros testemunhos escritos sobre Jesus de Nazaré vêm das epístolas de Paulo, escritas pelo menos 20 anos depois da morte de Jesus. Em seguida vêm os evangelhos, que, com exceção de Lucas, nem sequer foram escritos pela pessoa que os nomeia (um caso típico de obras pseudoepigráficas, comuns no mundo antigo) e datam de décadas depois da morte de Jesus. Em outras palavras, os evangelhos não foram escritos por testemunhas oculares da palavras e ações de seu personagem central: são obras de uma comunidade de fé. Não são fato, são reconstruções teológicas. Ou seja, eles nos dizem sobre Jesus, o Cristo, mas nada esclarecem sobre Jesus, o homem.

Reza Aslan mostra como foram escritos os evangelhos canônicos (Marcos, Mateus, Lucas e João), expõe suas contradições, esclarece sobre as fontes (entre elas o Q), além de revelar a origem de uma verdadeira biblioteca de escritores não canônicos, sobretudo a partir do século 2, que apresentam novas perspectivas sobre a vida de Jesus de Nazaré. Mas é ao agregar outras fontes – sobre a história de Jerusalém, a religião judaica e o Império Romano – que o autor dá a dimensão de seu projeto. O que seu livro revela é uma história dos primeiros séculos, tendo Jesus como foco. De certa forma, pode-se ler Zelota como uma biografia política de Jesus e seu tempo. Mais ainda: uma investigação sobre os motivos que levaram com que o Jesus histórico fosse substituído pelo Cristo.

Quarta filosofia O título do livro já uma pista. Zelota vem de zelo, uma inspiração para movimentos típicos dos judeus contrários ao domínio romano na região. Espécie de quarta filosofia – ao lado dos filisteus, saduceus e essênios –, os zelotas compunham um partido que tinha com compromisso inabalável com a libertação de Israel do jugo romano e com a afirmação do Deus único dos judeus. Zelo: era isso que reivindicavam para si, um cumprimento rigoroso da Torá e a recusa a servir a qualquer outro mestre. Ser zeloso era, desta forma, seguir as pegadas dos heróis do passado.

No entanto, o que era heroísmo para os judeus era crime para os romanos. O autor vai mostrar como se dava essa difícil convivência, com o domínio político na mão de Roma e o comando religioso a cargo do sacerdote do templo. A descrição do Templo de Jerusalém é impressionante, com sua movimentação humana, superstições, jogos de poder, fé e até centro de negócios, como um verdadeiro banco a fazer circular o dinheiro de várias regiões. O templo era ainda espaço de negociação entre o ocupante e povo subjugado, preso ainda aos pesados impostos devidos a Roma.

Eram comuns os profetas que se insurgiam contra esta ordem. Considerados messias (a categoria abrangia centenas de pessoas dispostas a anunciar o fim do domínio romano e conclamar à revolta), esses homens eram heróis para seu povo, mas bandidos para Roma. Eram geralmente presos, torturados e mortos de forma violenta, decapitados ou crucificados. Jesus foi um desses messias. Como explica Aslan, a placa na cruz de Jesus, com os dizeres “Rei dos judeus”, não era um sarcasmo, mas uma sinalização do crime pelo qual estava sendo crucificado. O crime de Jesus foi buscar o poder político. Possivelmente, o mesmo crime do “bom” e do “mau” ladrão mortos a seu lado. Ladrão talvez seja uma tradução para a palavra grega lestai, que significa bandido, a mesma designação dada ao insurrecto Jesus.

Zelota é rico em informações. O autor leva para o contexto original situações que hoje fazem parte de uma rica mitologia, como a profissão de Jesus, suas origens familiares, o local de seu nascimento, os milagres, a relação com João Batista, o poder de Herodes, o nascimento virginal, a escolha dos apóstolos, as discípulas, o debate de Jesus com os rabinos, a expulsão dos comerciantes do templo etc. Algumas palavras atribuídas a Jesus, como as proferidas acerca do poder de César (“a César o que é de César, a Deus o que é de Deus’’) ganham novo significado: deixam de ser um reconhecimento da separação entre matéria e espírito para se afirmar como cobrança da devolução da terra ocupada aos judeus, seus legítimos donos por determinação de Deus a seus filhos diletos. O que soava como universal era na realidade uma defesa particular da herança de um povo em sua aliança com o criador.

Por que o Jesus que nos legou a tradição surge separado de seu povo e de suas reivindicações políticas, tão claras quando se examina a história separada das envoltórias da fé? Para Reza Aslan, depois de combater por décadas as insurreições, o governo central de Roma envia tropas que dizimam o templo e escravizam o povo, massacrando tudo que encontraram pelo caminho. Uma devastação completa, que destrói Jerusalém e expulsa seu povo da terra de seus antepassados. A partir do ano 70 d.C., exilados da terra prometida por seu Deus, os judeus passam a viver como párias e entre pagãos do Império Romano.

Uma operação levada adiante pelos rabinos, a partir do século 2, vai criar um divórcio entre o judaísmo nacionalista messiânico (que levou à destruição de Jerusalém) e a fé judaica, que se volta para dentro, na tradição do judaísmo rabínico. O livro substitui o templo. Outro movimento vai atingir os cristãos, que para também se separar da identificação revolucionária de sua origem, e com o objetivo de afastar a violência do poder romano, passam a transformar Jesus de um judeu revolucionário em um líder espiritual pacífico. O que era interesse político e terreno passa a ser causa espiritual e salvação para uma outra vida. Algumas décadas depois da morte de Jesus, os seguidores não judeus de Cristo eram muito mais numerosos que os seguidores judeus. Em um século, a ligação entre judaísmo e cristianismo desapareceu.

Zelota busca a recuperação do Jesus histórico. Para isso, com as armas da pesquisa e da interpretação, questiona superstições, limpa floreios literários, faz a genealogia de textos e dá a real dimensão ao que é fato histórico e o que é teologia e mito. Pode parecer uma empresa questionável, já que o Jesus da fé venceu e se tornou hoje a realidade para centenas de milhões de pessoas. Mas a história não precisa de outra justificativa que não a busca da verdade.

Jesus foi um líder revolucionário – talvez o maior de todos os tempos – e um líder espiritual, ao mesmo tempo. Os dois universos não se separavam. Que o Jesus histórico, judeu, zelota e revolucionário, em sua luta permanente contra as injustiças, surja rico de significação humana é um alento a mais para quem tem fé em Jesus, o Cristo. E um exemplo a ser seguido pelos que não creem, mas querem um mundo melhor ainda nesta vida.
 (Editora Record/Reprodução)

Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré
• De Reza Aslan
• Editora Record
• 304 páginas, R$ 36,90

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

TODA FORMA DE AMOR

O Globo 28/11/2013 



Prêmio celebra a diversidade sexual na noite em que Maria Zilda apresentou a companheira: ‘Não tenho nada a esconder’


Foi cheio de orgulho o
Prêmio Rio Sem Preconceito,
organizado pela
Coordenadoria Especial da Diversidade
Sexual da prefeitura,
anteontem, no Teatro Carlos
Gomes, no Centro. Quando
chegou, Maria Zilda apresentou
assim a mulher que estava
ao seu lado: “Minha esposa,
Ana Kalil”. Sentiu o clima? Estava
todo mundo feliz da vida,
seguro, e muito à vontade.

Foi a primeira vez em que a atriz
falou sobre o assunto desde que
anunciou pelo Twitter a união
estável com a arquiteta. “Tenho
60 anos e nada a esconder. Não
vou deixar que os paparazzi
transformem isso em capa de revista”,
disse ela. “Também não
queria que meus filhos passassem
por algo do tipo ‘descobriram
que sua mãe...’ Descobriram,
não, eu contei antes!”

Puro amor era também o casal
Daniela Mercury e Malu Verçosa,
que beijou muuuito no palco.
“Ela não gosta de fazer isso
em público, mas ajuda a quebrar
o preconceito”, diz Daniela.

“Pego as duas!”, grita Preta Gil.
Quando Preta sobe ao palco, é
recebida aos gritos de “maaagra!!!”.
“Magra nunca, amor. É
que nem falar ‘brancaaa!’ Jamais!”,
responde Preta.

Outra que recebeu prêmio foi
Cissa Guimarães. “Por acaso
não sou gay, mas posso vir a
ser”, diz. Apresentador da noite
ao lado de Dira Paes, Aloísio de
Abreu protagoniza o momento
mais divertido da noite. “Agora,
até VIP sofre preconceito com
essa coisa de vipinho e vipão”,
zoa ele, antes de cantar versão
gaiata de “My way”.

“Ser gay, ser pobre, ser negão/
Nortista ou sapatão/ Aqui nesse
Brasil não é nada mole,
não...” Na plateia, Carlos Tufvesson,
criador do prêmio, está
emocionado. “Essa noite é um
sonho realizado”, diz.

CL. Gente Boa 
Cleo Guimarães
COM MARIA FORTUNA, ISABELA BASTOS E THAMINE LETA

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Meia tonelada de cocaína‏

Meia tonelada de cocaína

Polícia apreende no Espírito Santo helicóptero com 443 quilos da droga. Proprietária da empresa à qual pertence a aeronave, família Perrella diz que piloto agiu sem autorização

Estado de Minas: 26/11/2013

 
Helicóptero carregado com cocaína foi apreendido no domingo na comunidade rural de Afonso Cláudio (ES), divisa de Minas com Espírito Santo (FOTOS BERNARDO COUTINHO/A GAZETA)
Helicóptero carregado com cocaína foi apreendido no domingo na comunidade rural de Afonso Cláudio (ES), divisa de Minas com Espírito Santo
 Quase meia tonelada de cocaína com cerca de 95% de grau de pureza foi apreendida na noite de domingo em um helicóptero – Robson 66 – que pousou na comunidade rural de Afonso Cláudio (ES), divisa de Minas com o Espírito Santo. A aeronave é de propriedade da Limeira Agropecuária Ltda, que pertence à família do senador Zezé Perrella, ex-presidente do Cruzeiro Esporte Clube. Quatro homens foram presos durante o cerco policial montado pela Polícia Militar capixaba com apoio da Polícia Federal. Entre os presos estão o piloto da aeronave, Rogério Almeida Antunes, de 36 anos, funcionário da Limeira, o copiloto Alexandre José de Oliveira Júnior, de 26, Robson Ferreira Dias, de 56, e Everaldo Lopes de Souza, de 27. Os dois últimos deram apoio em terra para descarregar a droga acondicionada em papel colorido impermeabilizante e caixas de papelão.

A empresa proprietária da aeronave foi criada em maio de 1999, e o senador Zezé Perrella deixou de ser sócio em maio de 2008. Atualmente, a Limeira Agropecuária tem em seu quadro societário o deputado estadual Gustavo Perrella – que recentemente deixou o PDT e migrou para o novato Solidariedade, – a irmã dele, Carolina Perrella Amaral Costa, e um primo, André Almeida Costa. Todos negam envolvimento com o transporte da droga, apesar de confirmar a propriedade da aeronave.

A investigação sobre movimentação na cidade capixaba começou há 15 dias, depois que levantamento da 2ª Companhia Independente da PM identificou a compra de uma pequena fazenda por valor superfaturado. Segundo o major Flávio Santiago, comandante da unidade, o terreno avaliado em pouco mais de R$ 150 mil teria sido adquirido por R$ 500 mil, apesar de ser pedregoso, sem plantio de culturas e benfeitorias.

Outras suspeitas partiram de informações de moradores da pequena comunidade sobre movimentação estranha no local, inclusive com veículos com placa de outros estados. E ainda a chegada de uma picape com cerca de 30 galões de combustíveis para aeronaves.

A partir daí, segundo o major Santiago, a PM reforçou o efetivo com o Núcleo de Operações e Transporte Aéreo (Notaer) da corporação. E a Polícia Federal montou campana no local desde sábado. No fim da tarde de domingo, o avião pousou por volta das 17h com 443 quilos de cocaína. O oficial informou que estavam no helicóptero o piloto e o copiloto, e os outros dois davam apoio em terra sinalizando o local correto de aterrissagem com sacos plásticos pretos.

O major Santiago disse que, apesar da obrigatoriedade, o helicóptero não tinha plano de voo e o pouso foi feito apenas com base em coordenadas repassadas ao piloto. “O local é de difícil acesso e, por isso, foi necessária a ajuda dos homens em terra”, explicou o oficial.

Os quatro presos se recusaram a prestar depoimento aos federais, alegando o direito de falar apenas em juízo. Informalmente, o major Santiago informou que o piloto Rogério Antunes é natural de Campinas (SP) e teria dito que tinha autonomia para voar com a aeronave, mas quem o havia contratado foi o copiloto Alexandre, que nasceu em São Paulo.

A Polícia Federal do Espírito Santo, onde foi instaurado inquérito para apurar o caso, disse que ainda não tem informações sobre a origem da droga e o responsável por ela.




Deputado demite piloto e faz queixa de roubo

O deputado Gustavo Perrella afirmou que o piloto Rogério Almeida Antunes agiu sem autorização: “O piloto não tinha consentimento para fazer essa operação”. Ele disse que ficou sabendo pela imprensa da apreensão da cocaína no helicóptero da família e que acionou seus advogados. Além de ter demitido o piloto por justa causa, ele afirmou que fará queixa por roubo do helicóptero.

Perrella alegou que não voou no helicóptero no fim de semana porque o piloto disse que a aeronave estaria em manutenção. “Eu o tinha (o piloto) por uma pessoa de boa índole, mas agora vejo que não se pode confiar em todo mundo”, afirmou o deputado.

Rogério Antunes foi indicado por um amigo de Campinas do deputado. “Para contratar examinamos currículo e horas de voo, e o que pesou é que ele é experiente”, explicou Perrella. Ele afirmou também que não poderia ser mais criterioso na contratação do piloto nem em relação ao uso da aeronave. “Seria como um funcionário pegar um veículo de qualquer empresa e o dono ser o responsável pelo que acontecer”, comparou.

O advogado Antônio Carlos de Almeida Casto, o Kakay, que representa Gustavo Perrella, confirmou que o piloto usou o helicóptero sem autorização da família ou de representantes da empresa. "Ele usou fora do ambiente de trabalho, sem autorização, e ainda para fim absolutamente ilegal", afirmou.

De acordo com Kakay, Gustavo Perrella estava em Brasília no momento da operação e o helicóptero costuma ficar estacionado em um restaurante em Belo Horizonte. Ele informou ainda que a família procurou a Polícia Civil para registrar ocorrência por apropriação indébita. O defensor disse que o responsável pela operação afirmou que o piloto não foi coagido a transportar a droga e agiu intencionalmente.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Entrevista: Paulo André - O próximo lance é uma greve

Veja - 25/11/2013

O líder do Bom Senso F.C., o movimento de jogadores que pressiona a CBF por um calendário racional, diz que o "jeitinho brasileiro" foi o grande mal do futebol.

Paulo André Cren Benini é um jogador fora do padrão. Enquanto a maioria de seus colegas passa o tempo na concentração jogando videogame, ele lê Dostoievski e Voltaire, pinta e escreve. Nas horas de folga, os boieiros vão a um churrasco com pagode e Paulo André prefere os museus.

Aos 30 anos, o zagueiro campeão mundial pelo Corinthians (contratado do Le Mans da França, onde atuou durante quatro temporadas) resolveu aproveitar sua experiência na Europa e a capacidade de liderança para promover um inédito movimento de jogadores que enfrenta a sisuda e antiquada Confederação Brasileira de Futebol (CBF) na organização dos campeonatos e mesmo na gestão financeira dos clubes. Entre uma partida e uma reunião Paulo André falou a VEJA.

 O que quer o Bom Senso F.C.?

Há dois pontos principais. O primeiro é a redução do número de jogos dos clubes da elite e o aumento do calendário para os times das divisões inferiores. O segundo é a implementação do que chamamos defair play financeiro, com o objetivo de punir os clubes que gastarem mais do que arrecadarem.

Como começou esse movimento?

O Alex (meia do Coritiba) e o Juan (zagueiro do Internacional) tiveram uma primeira conversa depois de um jogo (em 1º de setembro). Soube da conversa, liguei para o Alex e em cinco minutos a gente decidiu começar um movimento. Daí, convidamos outros atletas. Vieram o Juninho Pernambucano, o Seedorf. o Rogério Ceni, o Edu Dracena, o Fred e o Elias. A queixa é geral. Há uma sensação unânime. Quem volta da Europa vê que o potencial humano no Brasil é gigantesco, mas que a estrutura está emperrada, enferrujada. A gente tem tudo neste país, por que não explorar melhor?

Nas mais recentes rodadas do Campeonato Brasileiro, os jogadores entraram em campo com faixas e ficaram parados por alguns segundos depois do apito inicial do juiz. Quais são os próximos protestos?
A ideia é aumentar gradativamente enquanto não houver uma resposta da CBF às nossas exigências. O jogo do Flamengo com o São Paulo (em 13 de novembro, quando os jogadores adversários ficaram trocando passes de um lado para o outro do campo por um minuto) foi marcante. O torcedor claramente entendeu e apoiou.

Os jogadores podem entrar em greve?

É uma possibilidade real. Não é um absurdo se resolvermos parar. A gente espera que a CBF apresente uma proposta que seja benéfica para o futebol. Senão, não há muito que fazer além da greve. As ameaças de punição não vão nos deter.

A greve pode ocorrer ainda neste campeonato?

A CBF não acredita na força do nosso movimento. Eles estão nos testando e vamos aumentar o tom. Nas próximas rodadas, os jogos começam no mesmo horário, o que aumenta a repercussão do que fizermos. O risco de greve é muito grande. Já nos deram a ideia até de cada time fazer um gol contra de propósito. Mas isso seria inaceitável pelo desrespeito com o torcedor. Aceito desafiar os poderosos, mas não desmoralizar o futebol.

Como vocês combinam as ações?

Há 150 jogadores que trocam mensagens pelo WhatsApp. Hoje mesmo (sexta-feira retrasada) trocamos mais de 200.

O jogador hoje é mais consciente?

No geral, o jogador tem mais acesso à informação. Ainda há medo de se posicionar e sofrer retaliação da torcida, da diretoria e das entidades, mas entre os jogadores há muita discussão sobre os problemas do futebol. Entretanto, pelo medo de retaliação e por historicamente a classe ser desunida, é difícil o jogador se expor em público.

Os líderes do Bom Senso F.C. são atletas em fim de carreira. Os novos estão com medo ou foram orientados a não protestar?

Os dois. Os jogadores que começaram a reclamar do calendário foram aqueles que passaram um tempo na Europa e voltaram para o Brasil. A pergunta que todos fazem é: "Como é possível eu ter saído daqui há tanto tempo e nada ter melhorado?". Começamos a conversar e perceber a evidente precariedade do futebol no nosso país. Por terem uma condição financeira melhor, os mais velhos são o carro-chefe do grupo. Os mais novos sempre estão mais expostos a retaliações.

A CBF atrapalha o futebol brasileiro?

A Fifa sabe que seu papel é vender futebol. Percebeu que para ganhar mais dinheiro é preciso qualificar o produto. Então, começou a cuidar do gramado, do estádio, da qualidade dos times. É o padrão Fifa. Na Uefa é a mesma coisa. É uma entidade que organiza a Champions League e a Euro e decidiu dar prioridade à capacitação de treinadores. Porque são eles os formadores dos atletas, que vão desenvolver o futebol-arte e, assim, atrair público para o espetáculo. Dessa forma, a Uefa ganha mais dinheiro. Já a CBF não faz nada para melhorar a qualidade do que vende. Nada. A CBF não entende que o ingresso está caro para o jogo que está sendo vendido. A CBF ganha milhões com a seleção, com os patrocínios e, segundo ela, não ganha nada com o Campeonato Brasileiro. Talvez seja por isso que ela não se interesse em fazer um calendário que propicie um futebol de qualidade. Os gramados são horríveis, os antigos estádios estão péssimos. Tem jogo todo dia na televisão sem o menor critério de qualidade. Só quantidade. Seria fundamental adotar o modelo inglês, em que a confederação cuida da seleção e a liga de clubes dos campeonatos.

A Rede Globo tem interesse nessa mudança?

A Globo tem diálogo total com o movimento. Eles estão sendo solícitos e são os mais preparados para a discussão do novo calendário. A Globo aceita que não haja mais futebol em janeiro. Como a audiência nesse mês é baixa, é melhor aumentar a pré-temporada. Eles estão no direito deles, de lucrar com o futebol. O problema é a CBF, que não defende o futebol.


Um caminho seria limitar o mandato dos dirigentes das entidades esportivas?

Sim. A democracia e a alternância de poder são fundamentais para qualquer instituição. A medida provisória que prevê o direito a apenas uma reeleição nas federações que usam dinheiro público é crucial. O direito a voto direto dos atletas também tem o apoio do Bom Senso F.C.

Como respondem à crítica de que vocês querem jogar menos e ganhar a mesma coisa?

Essa é a maior inverdade. Reduzindo o número de jogos, o espetáculo fica melhor e o interesse do público aumenta. A gente busca o bem do futebol. não nosso conforto. Queremos reduzir o limite anual máximo de jogos para 73. Hoje, o Campeonato Brasileiro tem 38 jogos, a Copa Libertadores catorze, ou dezesseis se a equipe tiver de disputar a pré-Libertadores. Ainda há a Sul-Americana e a Copa do Brasil. Antes de tudo isso, os times têm de disputar os campeonatos estaduais. Para fazer um estadual com um mínimo de charme, uma das propostas é a redução de dezenove para sete jogos, com as mesmas regras da Copa do Mundo. Nesse formato, mesmo um estadual com 32 times pode ter um campeão definido em apenas um mês. No caso de clubes menores, da terceira à quinta divisão do Brasileiro, o problema é o oposto. Eles precisam de mais jogos. É a única maneira de sobreviverem.

Os jogadores aceitam ganhar menos para que os clubes reorganizem suas finanças?

Sim. O movimento defende a implantação do fair play financeiro, que pode resultar na redução dos altos salários dos jogadores. O clube terá de apresentar a cada três meses uma comprovação do pagamento de todas as suas obrigações, correndo o risco de ser suspenso se estiver inadimplente. Para conseguirem isso, alguns times deverão contar com elencos mais baratos. O torcedor e os atletas terão de entender que esse é o preço a ser pago para que o futebol brasileiro se reorganize.

O que, nos serviços brasileiros, tem padrão Fifa?

De padrão Fifa não temos nada. A CBF é padrão "jeitinho brasileiro".

É bom para o Brasil sediar a Copa do Mundo?

Quando foi anunciada a Copa com dinheiro privado, eu comprei a ideia. Hoje, vejo que 90% dos estádios utilizaram dinheiro público. Percebi que não foi cumprido o combinado.A Copa mexe com o imaginário, desde 1950 o Brasil sonhava em sediar mais uma. Mas havia outras prioridades para o uso desse dinheiro. Era melhor investir em educação de qualidade, saúde pública decente, transporte melhor. Se fosse a Copa do dinheiro privado, não teria problema. Como não foi, lamento a gastança na construção dos estádios.

Existe corrupção no futebol?

Existe, assim como na sociedade. Se não houver regulação e fiscalização, haverá desvio.

O futebol brasileiro está decadente?

Está em crise desde 2002. As vitórias tapam os erros e as péssimas administrações. O Brasil corre o risco de ganhar a Copa, mascarar os problemas estruturais e só voltar a essa discussão em dois ou três anos. Mesmo assim, torço para que o Brasil erga a taça e o futebol melhore. As duas coisas juntas seriam o verdadeiro legado da Copa.

Como é a rotina de um jogador de primeira divisão?

Desde os 20 anos eu não vou nem a casamento de amigo. Toda sexta, sábado e domingo estou concentrado ou jogando. Desde que sou atleta, não viajo no fim de semana, não sei o que é feriado, não sei o que são dois dias de folga seguidos.

O torcedor, como só vê o time nos dias de jogos, na quarta e no domingo, acha que trabalhamos pouco. É ilusão pensar que todo jogador é milionário. Só 3% dos profissionais recebem bem a ponto de poder encerrar a carreira aos 35 anos e viver de renda. Para 97%, a vida é atribulada e não dá chance de poupar para o futuro.

A vontade de jogar uma partida de primeira fase no estadual é a mesma que se tem em um jogo de Libertadores?

Nem se compara. Tem dia que você vai para o jogo e o último lugar que queria estar é no gramado. É um sentimento inconsciente, claro, muito em razão da pressão psicológica sofrida o ano todo. Fizemos um levantamento que mostra que o jogador de um grande clube brasileiro tem vinte dias de folga no ano. Já o trabalhador comum tem 52 fins de semana. Ou seja, mais de 100 dias.E nossos vinte dias são afetados pela pressão que sofremos por resultados, pelas críticas, por caras que atiram rojões ou pedras contra nós.

A concentração é necessária?

Não, mas para mim acabou sendo útil. Uso o tempo da concentração em coisas produtivas, como escrever meu livro. Os caras achavam que eu estava ficando louco, não saía do quarto. Já pintei quadros, vi muito seriado. Agora gasto o tempo fazendo essa agitação do Bom Senso F.C.

Qual a diferença do cotidiano de um jogador no Brasil e na França?

Aqui  chego sexta-feira às 15h30 para treinar e só volto para casa no domingo à noite, depois do jogo. Mesmo que eu fique em um bom hotel, são dois dias e meio concentrado. Como jogo duas vezes por semana, são 160 dias do ano concentrado. Na Europa, eu me apresentava na hora do almoço, descansava e jogava à noite. Não tem concentração. Há ainda o exagero das viagens. Lá, a média de um time é viajar 8000 quilômetros por temporada. Aqui, os grandes clubes de São Paulo voam 35000 só nos campeonatos nacionais. A queda de rendimento é inevitável.

Você pinta e escreve. De onde veio essa motivação? 

Quando jovem, fui estudar porque achava que não seria jogador. Mas virei profissional no Guarani, ganhei meu dinheiro, fui para a França. Lá, machuquei o joelho e fiz três cirurgias. Fiquei um ano e meio parado. Aí decidi voltar a estudar, fui ler filosofia e psicologia, porque estava com depressão. Li tudo de Dostoievski, tudo de Voltaire. Fiz curso de educação financeira. Fui ao Louvre e achei tão incrível que resolvi pintar. Não entendo de arte. Aquilo começou como um hobby para acabar com a minha dor.

domingo, 24 de novembro de 2013

Poesia renovada

 O Globo 24/11/2013

AOS PÉS DE ANA C.



Nome de destaque entre os chamados poetas marginais, com uma obra que permanece ao longo dos anos, Ana Cristina Cesar tem seus vários livros reunidos no volume ‘Poética’, lançamento da Companhia das Letras que lembra os 30 anos de sua morte e que traz, ainda, alguns inéditos da autora

NANI RUBIN
nani@oglobo.com.br

Ana Cristina Cesar morreu há 30 anos, mas, como diz um de seus amigos mais próximos, o também poeta Armando Freitas Filho, está vivíssima, mais viva do que nunca. A poeta que teve apenas um livro publicado comercialmente (“A teus pés”, em 1981), antes de se jogar do apartamento de seus pais, em Copacabana, num ensolarado 29 de outubro de 1983, teve mais seis volumes publicados postumamente, virou objeto de procura em sebos, fio condutor de espetáculos de dança e de teatro tema de teses acadêmicas e documentário. Agora, sua obra volta a ficar disponível, com o lançamento, amanhã, de “Poética”, edição da Companhia das Letras, detentora dos direitos sobre os escritos de Ana C., como às vezes assinava.


“Poética” reúne, além de “A teus pés”, seus três livros lançados de modo independente — “Cenas de abril” (1979), “Correspondência completa” (1979) e “Luvas de pelica” (1980). Traz ainda dois dos títulos lançados após sua morte: “Inéditos e dispersos” (1985), organizado por Freitas Filho, e “Antigos e soltos” (2008) selecionados por Viviana Bosi.

Um apêndice com textos de Armando Freitas Filho, Clara Alvim e Silviano Santiago, entre outros, e uma cronologia assinada por Waldo Cesar, pai da autora, enriquecem o volume, que tem inéditos garimpados por Mariano Marovatto no acervo da poeta no Instituto Moreira Salles. O capítulo, chamado “Visitas à oficina”, inclui um poema escrito à máquina pela secundarista do Colégio Bennett, aos 16 anos (leia ao lado), sobre o qual o professor escreveu “Lindo!”. Outro, “Noite carioca II”, deveria ter entrado em “A teus pés”. Freitas Filho, curador editorial de “Poética”, a quem Ana Cristina pediu aos pais que entregassem todos os seus escrito caso lhe acontecesse algo, encara a publicação dos inéditos, desde 1985, como uma espécie de deslealdade permitida:

— Eu traí a Ana para nós termos a Ana. Pensei assim: se o Max Brod tivesse aceitado o pedido de Kafka de destruir seus manuscritos, a gente não teria Kafka — compara ele, que pensou (e pesou) cuidadosamente cada um dos textos. — Eu me fazia o tempo todo a pergunta: o que a Ana iria achar? Porque ela tinha uma autoexigência enorme, tudo tinha que ser perfeito — conta ele, que fala com conhecimento de causa: foi revisor final de “A teus pés”, leitor privilegiado e personagem da “Correspondência completa”, sob o nome de Gil (Mary, outra personagem, é Heloisa Buarque de Hollanda, que, em 1976, incluiu Ana Cristina, então sem nenhum livro publicado, na sua mítica antologia “26 poetas hoje”).

O amigo e confidente escolheu o que achou “que valesse a pena”, mesmo duvidando, como diz, “que ela aprovasse com grau dez, que era a nota dela, tudo isso”. A menina que ditava poemas para a mãe aos 5 anos de idade, que escreveu, aos 16, “Eu não sabia/ que virar pelo avesso/ era uma experiência mortal”, que se dizia “uma mulher do século XIX/ disfarçada em século XX”, e que, dois meses antes de morrer, declarou em versos “Estou vivendo de hora em hora, com muito temor”, era uma poeta sofisticada, leitora de Emily Dickinson, Katherine Mansfield (sua tese de mestrado em Essex, na Inglaterra, foi sobre “Bliss”, da autora), Jorge de Lima e Manuel Bandeira. Como seus colegas de geração, partiu de uma espécie de diário íntimo para alçar voos mais complexos, embebidos em feminilidade, com um texto trabalhado, “tudo muito bem feito entre o cálculo e o acaso”, define Freitas Filho:

— Enquanto a geração marginal fazia um poema do tipo polaroide, de revelação instantânea, a poesia da Ana sempre exigiu o contrário, uma segunda leitura para você apreender aquilo, para ir em frente com aquilo. Por isso ela durou.

Por isso, também, seus leitores se renovam. Hoje com 28 anos, a atriz Bianca Comparato conheceu sua poesia aos 19, na PUC, onde Ana Cristina cursou Letras, e agora, prepara-se para interpretála no cinema. Cooptou para o projeto o também poeta Michel Melamed, que escreverá o roteiro, e a cineasta Julia Murat.

— O sucesso do Paulo Leminski (“Toda poesia”, da mesma editora, vendeu 65 mil exemplares) mostra que existe um desejo por poesia — diz a atriz, que, enquanto trabalha no argumento, vai conquistando, no boca a boca, ou no poema a poema, novos fãs para Ana C.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A luta é dura, e não termina - Tarso Araujo

Valor Econômico - 22/11/2013

Eram três horas da tarde de 2 de dezembro de 1993. Sobre um telhado na cidade de Medellín, o grupo de homens armados posava para uma foto ao redor da caça recém-abatida. Jazia ali a presa mais poderosa que a guerra às drogas já conhecera: Pablo Escobar, o traficante que fez da cocaína um dos negócios mais lucrativos do mundo. Em pouco mais de duas décadas de atividade, o colombiano exportou centenas de toneladas de pó para os Estados Unidos e submeteu o governo de seu país a uma longa temporada de terror e humilhação. Assassinou dezenas de milhares de pessoas e tornou-se um exemplo seguido por legiões de criminosos no mercado que "el patrón" ajudou a ampliar e consolidar. Depois de longa caçada, ele estava morto. Uma batalha fora vencida, mas a guerra contra as drogas continuaria longe do fim.
Vinte anos após sua morte, o legado de Escobar se mantém vivo, com franca globalização do tráfico de cocaína. No México, hoje um dos polos do mercado internacional da droga em mais rápida expansão nos últimos anos, a violência veio crescendo em ritmo correspondente. As gangues não apenas matam, como assumem abertamente a autoria de homicídios - e, para intimidar os adversários, divulgam pela internet vídeos de decapitações e esquartejamentos. A produção de cocaína nos Andes (Colômbia, Peru e Bolívia), em 2011, é estimada pela ONU em, no mínimo, 776 toneladas, podendo ter chegado a 1.050 toneladas. Tudo isso, apesar de os Estados Unidos investirem cerca de US$ 15 bilhões por ano, em média, perseguindo traficantes, ao mesmo tempo que pressionam outros países a fazer o mesmo.

César Gaviria, presidente da Colômbia na época da caçada a Escobar, hoje roda o mundo defendendo a revisão das políticas de drogas. "Acreditávamos que o tratamento criminal do problema iria resolvê-lo. As convenções da ONU falam em um mundo livre de drogas, mas isso é utópico. O que há que fazer é administrar o problema", disse Gaviria em entrevista após palestra em Brasília, na qual criticou duramente o projeto de lei em discussão no Senado, que altera a lei de drogas e aumenta a repressão sobre usuários e traficantes. "É impressionante como o mundo inteiro vai em outra direção e o Brasil está dando um passo atrás."

Ao lado de Fernando Henrique Cardoso, Gaviria foi um dos ex-presidentes fundadores da Comissão Latino-Americana de Drogas e Democracia (hoje, Comissão Global de Políticas de Drogas), que, a partir de 2009, passou a pedir mudanças nas políticas de drogas. Eles abriram caminho para outros líderes da região expressarem sua insatisfação com a linha dura, que custa tanto dinheiro e tantas vidas, sem produzir os efeitos desejados de redução da demanda e da oferta - e ainda cria terreno para todo tipo de violações de direitos humanos. Depois de algumas manifestações a favor da descriminalização do uso de drogas, o debate sobre a legalização se intensificou, principalmente a partir de 2012. Em junho do ano passado, o presidente do Uruguai, José Mujica, anunciou seu plano de regulamentar a maconha no país, e em outubro dois Estados americanos aprovaram leis para legalizar o uso recreativo da droga. A ideia de discutir a legalização recebeu o apoio de mais dois ex-presidentes, os mexicanos Vicente Fox e Felipe Calderón, e dois presidentes em exercício: Otto Pérez Molina, da Guatemala, e Juan Manuel Santos, da Colômbia.
A luta que a Colômbia e os Estados Unidos empreenderam contra Escobar é um exemplo histórico de como a estratégia de guerra pode custar caro a um país. Enquanto as autoridades aumentavam seus investimentos no combate ao cartel de Medellín e fechavam o cerco a seu chefe, Escobar levava às últimas consequências sua política de "plata o plomo", oferecendo o dinheiro da propina ou o chumbo das balas de revólver a quem se colocasse em seu caminho. "Escobar se sobressaiu porque não tinha nenhum tipo de escrúpulo para praticar a violência", diz Eduardo Sáenz-Rovner, historiador especialista em narcotráfico da Universidad Nacional de Colombia. "E tinha a vantagem de que nessa época o país era um Afeganistão, onde se podia operar com total impunidade."

Quando a "guerra" destrói uma grande organização, seu lugar geralmente é ocupado não por uma, mas por várias outras, menores"


Com seu poder econômico e de fogo, Escobar inauguraria o narcoterrorismo e afundaria o país numa profunda crise institucional e de segurança. Comprando alianças e a simpatia popular com distribuição de dinheiro e casas, ele chegou a se eleger suplente de deputado em 1982, para evitar a extradição aos Estados Unidos. Denunciado como traficante em 1983, declarou guerra ao Estado. Executou dezenas de juízes e ministros da Suprema Corte e centenas de policiais e inocentes. Ordenou centenas de atentados a bomba, vários deles contra jornais, e sequestrou centenas de pessoas, incluindo o vice-presidente Francisco Santos Calderón, em 1990. Em 1989, no auge da guerra, mandou matar o líder da corrida presidencial, Luis Carlos Galán, que havia feito da extradição uma promessa de campanha. Três meses depois, explodiu um avião comercial com 107 passageiros, para tentar matar Cesar Gaviria, que assumira a candidatura no lugar de Galán. Morreram todos os passageiros e três pessoas atingidas no solo por partes do avião. Mas o canditato não havia embarcado e acabou sendo eleito.

Em 19 de junho de 1991, a assembleia que votava a nova Constituição tornou inconstitucional a extradição de cidadãos colombianos, possibilidade restaurada em 1997. Na tarde do mesmo dia, com a garantia do governo de que não seria enviado para os Estados Unidos, Escobar e seus principais guarda-costas enfim se renderam - e se mudaram para "La Catedral", prisão de luxo que ele mesmo construíra. Um ano depois, torturou e matou dois traficantes suspeitos de roubá-lo, dentro da "cadeia", para humilhação de Gaviria e de todo o governo colombiano perante a opinião pública e a comunidade internacional. Determinado a prendê-lo de verdade, o presidente ordenou a invasão de La Catedral. Mas, como não havia cercas, Escobar fugiu pelos fundos. Começou então a caçada - "uma operação militar extremamente complexa", segundo Gaviria -, que só terminaria com sua morte.

Apesar de todo o apoio de inteligência e tecnologia dos Estados Unidos, a perseguição durou 16 meses. "Era difícil, porque as pessoas, em Medellín, o amavam e o ajudavam. E quem não gostava dele tinha medo", diz Javier Peña, agente da Drug Enforcement Administration (DEA), que a partir de 1988 colaborou com a polícia colombiana na operação. Em 1º de dezembro de 1993, dia do seu aniversário de 44 anos, o traficante se descuidou e fez uma longa ligação telefônica para sua família. As escutas da DEA o rastrearam e no dia seguinte ele era morto a tiros numa emboscada. Fim da linha para Pablo Escobar. Para a guerra contra a cocaína, era apenas o desfecho de uma primeira temporada.

A notícia da morte do chefão de Medellín na TV colombiana já anunciava as cenas dos próximos capítulos, apresentando o Cartel de Cali, numa espécie de linha de sucessão, como "a maior empresa de exportação de cocaína do mundo". Em 1991, já preso, Escobar era o maior exportador da droga para os Estados Unidos. Mas o novo esquema sofreria um baque, em 1995, com a prisão de seis dos sete líderes da organização.

"Muita gente achou que, sem Escobar e o cartel de Cali, se resolveria o problema do tráfico de cocaína. Mas isso era uma falsa premissa, porque o negócio continuava muito lucrativo", diz Bruce Bagley, cientista político do Departamento de Assuntos Internacionais da Universidade de Miami, especialista em narcotráfico.

Além de não conter o tráfico, a queda dos dois grandes cartéis colombianos nos anos 1990 produziu uma série de "efeitos colaterais indesejados". Com a demanda americana por cocaína mantida, outros grupos preencheram o vácuo deixado por eles. "É o que eu chamo de efeito barata. Se você dedetiza uma cozinha suja, elas simplesmente aparecem em outro lugar", diz Bagley. A história tem mostrado que esse fenômeno sempre se repete: quando um traficante ou grupo é tirado de circulação, surge outro para ocupar seu lugar.

AP / AP 
 
Ex-presidente César Gaviria: "As convenções da ONU falam em um mundo livre de drogas, mas isso é utópico. O que há que fazer é administrar o problema"
 
Os primeiros a aproveitar a oportunidade foram os cartéis mexicanos do Golfo, de Tijuana e de Juárez - hoje famosos pela violência, que matou mais de 60 mil pessoas nos últimos seis anos no México, segundo a Procuradoria Geral daquele país. Na Colômbia, também surgiram diversos grupos menores disputando pequenas fatias do mercado, chamados de "cartelitos". "No fim de 1994, já havia centenas deles", diz Bagley.

Enquanto os mexicanos assumiam a distribuição para os Estados Unidos, outros grupos ocupavam o vazio deixado pelos grandes cartéis na etapa de produção - na Colômbia, em conluio com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs), grupo armado rebelde que até hoje se sustenta com a droga. "Se eles não tivessem a cocaína não haveria como pagar suas armas. É a cocaína que financia a guerra aqui", diz o dinamarquês Bo Mathiasen, representante do Departamento de Drogas e Crime da ONU (UNODC, na sigla em inglês) na Colômbia. Afora esses dois maiores grupos, surgiram também centenas de organizações menores.

O "efeito barata" tem pelo menos duas complicações. O primeiro é seu caráter exponencial. Quando a "guerra" destrói uma grande organização, seu lugar geralmente é ocupado não por uma, mas por várias outras, menores. Em 2006, o tráfico do México para os Estados Unidos já era dominado por pelo menos sete organizações independentes. Hoje, são pelo menos 13. Além disso, nos grupos menores não existem lideranças tão centralizadas. A hierarquia mais horizontal dificulta as investigações e o desmantelamento da organização quando algum chefe é preso. "Hoje, lidamos com um problema muito mais sério e difícil de controlar, que se espalhou por todo o continente, com consequências até para a África e a Europa", diz Bagley.

O "efeito balão" é outra consequência crônica da guerra às drogas. Do mesmo modo que aniquilar uma organização criminosa acaba levando ao surgimento de outra(s), interditar uma rota ou erradicar plantações só provoca mudanças de endereço. Quando a polícia aperta uma ponta do balão, a outra se enche, mas o volume total de droga que circula e é produzida permanece mais ou menos o mesmo.

As autoridades conhecem esse fenômeno desde os tempos de Pablo Escobar. Nos anos 1970, o grupo de Medellín transportava toneladas de cocaína usando as velhas rotas caribenhas de contrabando de maconha e esmeraldas. Quando os americanos fecharam o cerco na região, em meados dos anos 1980, as rotas da América Central e do Pacífico ganharam importância. Em 1985, 75% das apreensões de cocaína destinada aos Estados Unidos eram feitas no Caribe. Cinco anos depois, a rota representava apenas 25% das apreensões. A maior parte era feita agora no México.

Acontece o mesmo no caso das plantações. Na décadas de 1980, praticamente toda a cocaína consumida no mundo vinha do Peru e da Bolívia. Na segunda metade dos anos 1990, os colombianos do cartel do Vale do Norte e as Farcs trouxeram a produção de pasta para o país, para aumentar sua margem de lucro. Nessa época, a Colômbia tornou-se o maior produtor de folha de coca do mundo e fez a produção global atingir seu ponto máximo histórico No início da década de 2000, os Estados Unidos começam a financiar a fumigação de cultivos na zona rural do país, como uma das principais ações do Plano Colômbia. A produção local caiu e em 2012 o Peru voltou a ser o maior produtor mundial de folha de coca.



A busca de novas rotas e mercados não cessa, e deixa marcas incisivas em várias partes da América Latina. Em 2006, o presidente mexicano Felipe Calderón colocou o exército na luta contra o tráfico e recebeu apoio americano. Os cartéis locais começaram uma luta sangrenta pelo controle de rotas e começaram a buscar outras saídas. No comando da divisão da DEA em Houston, Texas, a 500 quilômetros da fronteira, Javier Peña já sente os efeitos. "Sabemos que a América Central está vindo por aí. Aqui na cidade, temos muitas células de tráfico trabalhando com essas conexões", diz. Desde 2009, tornaram-se comum as chacinas e as prisões por tráfico e crimes conexos na Guatemala e em Honduras, principalmente.

Como a produção mundial se manteve na mesma faixa das 800 toneladas por ano, apesar de toda a repressão aos cartéis e dos planos Colômbia e Mérida, os traficantes andinos também procuram novas rotas rumo à Europa. E aí entra o Brasil na história. Segundo o UNODC, as apreensões de cocaína no Cone Sul aumentaram quase cinco vezes na última década, de 10 para mais de 45 toneladas por ano. O país é considerado hoje um dos principais corredores da droga para a Europa, mercado cuja dimensão está prestes a superar o dos Estados Unidos. O fato de o Brasil estar a meio caminho também ajuda a explicar a tendência de aumento de consumo percebida na região, inclusive a chamada "epidemia" de crack. O Brasil, com sua grande população, já é o segundo mercado mundial de cocaína em termos absolutos. Na Argentina, a fração da população que consome já é maior que nos Estados Unidos, com 2,5% de uso no ano. O movimento fez até países da África Ocidental, como Benin e Guiné Bissau, entrarem para a categoria dos "narco-estados".

"Eles estão sempre explorando a vulnerabilidade institucional dos países para conseguir novas rotas", diz Mathiasen, do UNODC. "O narcotráfico vai para onde houver menos risco - onde o Estado não funciona bem, sem juízes fortes, sem promotores bem pagos. E onde se instala' acaba piorando a situação. Cria-se um círculo vicioso. É a última grande guerra do continente."

Enquanto isso, os Estados Unidos comemoram o sucesso da erradicação de cultivos na Colômbia e uma redução de cerca de 40% no consumo de cocaína em relação aos níveis de 2005, ano de elevação máxima do consumo. Mas, comparando a produção e a demanda atual com as de 1993, quando Escobar morreu, os níveis são os mesmos. Para os americanos, a guerra à cocaína também não adiantou de muita coisa, graças a uma espécie de "efeito balão" da dependência química.

No Oeste americano, especialmente nos anos 1990, a metanfetamina tornou-se o principal problema do uso de drogas. Mais recentemente, a tendência é o aumento do consumo de remédios vendidos sob prescrição - principalmente opiáceos -, com altas alarmantes no índice de overdose. Especialistas consideram que a demanda interna por cocaína pode ter caído simplesmente por que a droga saiu de moda, e não por causa de uma redução da oferta que se possa atribuir ao combate frontal ao tráfico.

Resumindo, a nova temporada da guerra às drogas pode não ter causado grande comoção nos Estados Unidos, mas tem custado caro para o resto do continente, com reflexos até do outro lado do Atlântico.

Reuters / Reuters 
 
"É a cocaína que financia a guerra aqui", diz Bo Mathiasen, da ONU, referindo-se à ligação das Farcs com o tráfico (na foto, guerrilheiros em região dominada)
 
A insatisfação com o resultado da guerra às drogas na América Latina e o debate provocado pela Comissão Global teve seu primeiro desdobramento diplomático deste ano. As políticas de drogas foram o tema central da última assembleia geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em junho na Guatemala. Um mês antes, a organização apresentou dois relatórios sobre o assunto. Um deles analisa a situação das drogas no continente, o outro examina cenários hipotéticos do que poderia acontecer na região em 2025. Em um deles, tratou-se objetivamente dos efeitos e desafios de se regulamentar o comércio das drogas proibidas por convenções internacionais.

"Isso não é uma conclusão, mas apenas o início de uma discussão longamente aguardada", disse o secretário-geral José Miguel Insulza no discurso de apresentação do documento. "Ninguém aqui está defendendo a legalização nem a guerra total, mas precisamos de estudos como esses para encontrar soluções melhores. Às vezes, divergimos sobre como chegaremos lá, e isso vai nos ajudar a alcançar um acordo."

Especialistas esperam que o documento influencie o debate regional e permita uma discussão mais pragmática. "Esperamos que, a partir de uma discussão honesta e baseada em evidências científicas, surja uma coalização na América Latina", diz Ilona Szabó, especialista em relações internacionais e colaboradora do Informe de Cenários da OEA. Diretora da rede Pense Livre, que promove o debate no Brasil, ela defende uma atuação em bloco dos países da região na Assembleia Geral das Nações Unidas Sobre Drogas, que acontecerá em 2016. "Para o Brasil, seria importante deixar de defender a abordagem americana e avaliar sua adesão aos países que buscam políticas mais eficientes."

Bagley é cético sobre uma ação conjunta. Ele lembra que os países da América Latina têm rivalidades históricas e que há 500 anos resolvem seus problemas de modo individual - muitas vezes, sob influência direta dos Estados Unidos. "Quando mataram Escobar, os colombianos queriam resolver seus próprios problemas e não estavam preocupados com os países vizinhos. Os mexicanos estão fazendo a mesma coisa agora, empurrando seus problemas para a América Central", diz. Para o acadêmico, o que se verá na região serão soluções individuais tomadas por países isolados, como tem feito o Uruguai. "É claro que seria melhor uma resposta única e coordenada, mas não acho que isso seja provável."

O fato é que até na ONU, responsável pelas convenções que proíbem as drogas e historicamente atua como uma das principais defensoras da linha dura no combate às drogas, já se admite a importância de discutir alternativas. "Esse debate é muito importante. É preciso discutir sobre porque nem tudo funciona", diz Mathiasen. "Creio que o resultado serão políticas mais voltadas à proteção das pessoas, porque muitas vezes há um desequilíbrio, com muito investimento em punição, sem cuidado com prevenção, saúde e bem-estar social."

O principal sintoma de que os ventos estão mudando vem dos Estados Unidos, centro de comando planetário da guerra às drogas. Em 1996, uma onda de leis que regulamentam o uso de maconha "medicinal" nasceu na Califórnia e chegou a outros 19 Estados. A rigor, os dispensários só podem fornecer a droga para doentes com receita médica. Na prática, as leis viraram uma forma de driblar convenções e legalizar o uso. Até o governo federal, em seu documento anual sobre o controle de drogas, usa aspas para falar da droga vendida nas farmácias de maconha. No ano passado, Colorado e Washington foram direto ao ponto e legalizaram a venda para usuários recreativos, sem indicação médica. As vendas começam no início de 2014.
Folhapress / Folhapress 
 
Brasil na rota da cocaína: policial federal acompanha dinamitação de pista utilizada por traficantes na fronteira com a Colômbia
 
 
"Certamente, já se pode falar no fim da guerra às drogas. Os Estados Unidos já mudaram sua política interna sobre drogas, quando o governo federal permitiu que os Estados de Colorado e Washington implementem a regulação da maconha. Precisamos agora cobrar que a política externa também mude", diz Szabó.

Para Gaviria, os avanços americanos são consequência de uma opinião pública mais esclarecida que a do resto da América Latina. "Eles já não acreditam que a maconha seja mais daninha que o álcool e sabem que essas políticas repressivas são um fracasso", diz o ex-presidente colombiano. De fato, pesquisas em diversos países mostram que os latino-americanos são geralmente contra a legalização. Nos Estados Unidos, uma pesquisa feita pelo Instituto Gallup em outubro mostrou que 51% da população americana apoiam a medida.

Isso não quer dizer que os Estados Unidos vão dar o braço a torcer tão cedo. Para Bagley, há pelo menos três razões para explicar a resistência americana. "A primeira, ideológica e religiosa, é que as drogas são simplesmente uma coisa má e devem ser combatidas por razões morais. Some-se a segunda, o medo das famílias de classe média de que seus filhos e comunidades sejam dominados pelo uso de drogas, e chegamos ao "x" da questão. Essas duas coisas converteram o problema das drogas em uma questão eleitoral. O medo de perder votos colocou o governo federal numa paralisia de mais de 20 anos que impediu qualquer discussão racional."

O que, afinal, permite que os Estados avancem, apesar dessa "paralisia", é a crise financeira. Os Estados Unidos são o país com a maior população carcerária do mundo e sua política de drogas está diretamente ligada a isso. Dados do Departamento de Justiça mostram que, em 2011, 1,5 milhão de pessoas foram detidas no país, 80% delas por simples posse de drogas. E cerca de 17% dos presos em penitenciárias estaduais são acusados de crimes relacionados a drogas. Só que correr atrás de usuários e mantê-los presos custa muito dinheiro. Profundamente endividados após a crise global de 2008, os Estados começaram a fazer as contas e viram que, em vez de gastar milhões prendendo usuários, podem lucrar com impostos sobre a venda da droga.

"Por causa da crise fiscal, os Estados estão em busca de alternativas para economizar e arrecadar e isso criou uma ruptura no consenso sobre as leis de drogas", diz Bagley. "Depois de Colorado e Washington, já se organizam iniciativas semelhantes em outros quatro Estados, que provavelmente vão legalizar em 2014. Em 2016, podemos esperar uma avalanche de outro Estados fazendo o mesmo porque, simplesmente, não podem mais continuar com a linha dura que tem saído tão caro para os contribuintes."
Com essa implosão do proibicionismo em seu próprio ninho, parece que a guerra às drogas tende mesmo a acabar, depois de ter feito milhões de vítimas e nenhum vencedor. Com tanto sangue derramado, o conflito provavelmente acabará por causa da "plata', e não do "plomo".