segunda-feira, 5 de maio de 2014

Fotografo, logo vivencio

 O Globo 05/05/2014

Na era digital, a ansiedade do consumo visual vem ocupando o lugar da reflexão, fundamental para se usufruir a arte

DANIELA LABRA
segundocaderno@oglobo.com.br


Ao chegar na exposição do escultor australiano Ron Mueck no Museu de Arte Moderna, o visitante se surpreende com a apurada técnica do artista e com a multidão acotovelada para ver e fotografar os seus prodígios hiper- realistas. No grande salão, pessoas que até há pouco não sabiam quem era Mueck e muito menos o que acontecia no museu, empunham câmeras e celulares para captar, vorazes, imagens dos trabalhos e selfies atropelando quem tenta apenas apreciar as obras.

Se o enorme público estreante no MAM é um fato novo e positivo, pessoas fotografando a si ou a conhecidos diante de trabalhos de arte já não são novidade. Dentro ou fora do espaço expositivo é fácil comprovar que câmeras digitais e smartphones não só popularizaram o ato fotográfico como fazem-no parecer um gesto necessário para desfrutar a vida. No caso de exposições, onde encontra-se lazer associado a reflexão e conhecimento por meio do contato sensível, intelectual e até físico do espectador com a obra, tento imaginar o que os visitantes desejam capturar com suas lentes e como essa mediação digital transforma a experiência estética in loco. Entendo que a natureza de muitas mostras tem apelo publicitário e espetacular, estimulando a incontinência fotográfica, mas observo que o excesso de registros substitui o processo, hoje difícil, de postarse atentamente diante de umobjeto artístico para apreendêlo na sua forma e conteúdo. Afinal, uma obra de arte não se esgota na visão rápida.

O filósofo Jacques Rancière diz que na ordem da nossa sociedade espetacular, ver uma obra pode ser o contrário de conhecer Partindo do pensamento de Guy Debord, ele explica que o espetáculo é o reino da visão. Visão que neste caso é entendida como a desapropriação da essência do indivíduo e de sua atividade crítica. Assim, quanto mais contempla, mais o homem aliena-se do mundo. Por sua vez, na arte contemporânea não se espera do público contemplação passiva, mas posicionamentos críticos ativos que justamente correm o risco de ser diminuídos com o frenesi do fotografar. Embora a mediação da máquina resulte em novas experiências, seu excesso afasta o sujeito da dimensão crítica do objeto artístico e o leva para o lugar onde a visão, no sentido da alienação, impera.

Volume de fotos também não significa compreensão total de um evento. Na retrospectiva da japonesa Yayoi Kusama, “Obsessão infinita”, centenas de retratos e autorretratos foram feitos nas instalações espelhadas da artista e compartilhadas na internet. Enquanto as fotos comprovam a vivência daquelas pessoas na exposição, acredito que muitos saíram dali sem saber que, além de criar lúdicos ambientes de bolinhas, Kusama foi muito importante para a arte feminista e performática nos anos 1960-70, nos EUA.

A primeira visita ao museu, independentemente da idade, pode despertar um interesse pela arte que tende a crescer de acordo com a oferta cultural na cidade. Mas, já que o espaço expositivo é lugar de exercício crítico, criativo e de conhecimento, sugiro ao visitante neófito guardar a bengala fotográfica para observar a obra e ouvi-la. A ansiedade do consumo visual ocupa o lugar da reflexão, cara à arte em geral. Na era digital a experiência do olhar vem mudando mas, por enquanto, até a “Mona Lisa”, mitificada e banalizada pela publicidade, é mais emocionante se vista com os olhos — depois que se atravessa a barreira de turistas fotógrafos diante dela.