domingo, 8 de novembro de 2015

O QUE ACONTECEU COM AS LUTAS DE BETINHO?

Cl Ancelmo Gois - O Globo 08/11/2015

O sociólogo Herbert José de Souza, santificado seja o vosso nome, completaria 80 anos na última terça. Betinho, falecido em 1997, travou vários combates em diferentes direções. Aqui um balanço dessas lutas:


Ação da Cidadania contra a Fome
 

 O relatório “O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2015”, da ONU, mostra que o Brasil está vencendo a fome.



Ética na Política 

 

Movimento lançado em 1992, que culminou com o impeachment de Collor. De lá para cá, a situação piorou, acho, como mostra a Lava-Jato. A ironia suprema é que alguns capas pretas petistas, que aderiram à época, resolveram enricar às custas de empresas que dependem do governo.







 Terra e Democracia
 


Em 1990, o movimento liderado por Betinho lutava pela reforma agrária. Hoje, a questão permanece, mas sem a dramaticidade daquela época. Muitos miseráveis do campo foram beneficiados por programas sociais e há ainda uma política de assentamentos.



 Reage Rio

Em 1995, eram comuns longos sequestros de empresários e também tiroteios nas favelas. Uma passeata pela paz reuniu umas 300 mil pessoas na Av. Rio Branco. De lá para cá, esses sequestros cinematográficos diminuíram e surgiram as UPPs. Mas a sensação de insegurança, no Rio e no Brasil, cresceu.





Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids

Foi fundamental em1986 para mobilizar a sociedade e o governo contra uma doença que acabara de surgir e que levou à morte o próprio Betinho. De lá para cá, mudou o controle de sangue (Lei Betinho), e o Brasil foi o primeiro país do mundo a distribuir antirretrovirais gratuitamente. Hoje, entretanto, não são poucos os que acham que o governo anda desleixado em relação ao tema.




No Mais
 Uma frase do Betinho, atual nestes tempos de sangria econômica: “Não podemos aceitar a teoria de que se o pé é grande e o sapato, pequeno, devemos cortar o pé. Temos de trocar de sapato.”

A cultura do crime - Cacá Diegues


  • 8 nov 2015
  • O Globo
  • CACÁ DIEGUES Cacá Diegues é cineasta carlosdiegues2015@gmail.com

Estamos mudando para pior no Brasil em termos de convivência humana Oque há em comum entre a campanha racista, via rede social, contra Taís Araújo e o trabalho escravo no país, denunciado por Wagner Moura? E entre a violência que chega ao canibalismo em presídios brasileiros e o projeto de nossos deputados para dificultar e impedir o aborto das mulheres? Ou entre as mortes de PMs e crianças nas favelas, vítimas de tiros vindos dos dois lados, e a trapalhada aparentemente inocente do Simples Doméstico? E assim por diante.


Não é só a necessidade que gera o crime. O Brasil e o Rio de Janeiro já foram muito mais pobres do que são agora, e nossas taxas de violência sempre foram relativamente humanas. Nem sempre o motivo do assaltante é a fome. Se fosse assim, a incidência de crimes seria dominante em outras áreas, longe das cidades afluentes do Sul e do Sudeste. Não sei se esta é a mesma reação das novas gerações, mas eu, que conheci de perto um pouco desse passado, tenho a nítida impressão de que o Brasil, em termos de convivência humana, muda de cara. Para muito pior.

O que comparamos no primeiro parágrafo deste texto são descasos, ilícitos, delitos, contravenções e crimes, malfeitos frutos de uma nova cultura que alimenta um comportamento sem generosidade, sem confiança no outro, sem projeto comum. Essa cultura é fundada num suposto direito individual de satisfazer o desejo sem restrições, produzindo prazer, lucro e poder às custas dos outros. Através dela, o capitalismo financeiro e consumista sequestra a nossa vontade atendendo a nossos desejos.

É impossível proibir o sentimento de um desejo por mais sórdido e repulsivo que ele seja, do estupro à pedofilia, passando por todas as formas imagináveis de violência. Os mistérios do inconsciente humano prevalecem, ninguém é conscientemente responsável por seu próprio desejo. A responsabilidade de cada um é pelo controle da prática do desejo segundo uma ética pessoal, o direito dos outros e princípios acordados em cada sociedade. A vontade consciente existe para impedir o desejo indesejável.

A criação do Estado é um momento importante na história da humanidade. Ele se responsabiliza pelo controle dos desejos criminosos, nem que para isso seja necessário usar a força da qual possui o monopólio. O Estado é o agente da sociedade em defesa da civilização. Quando ele perde o controle disso, quando seus representantes incentivam o mau comportamento pelos exemplos de violência que dão, o caos vence a justiça, a arma se torna mais poderosa que a fala, a civilização desfalece. Como deve agir o cidadão de um país onde, no Congresso Nacional, um grupo de eminentes parlamentares é conhecido e se reconhece como a “bancada da bala”?

Nossos homens públicos, em seus diferentes planos e poderes, estão viciados na cultura do pensamento mágico, criando argumentos e teses mirabolantes (às vezes simplesmente cínicas) que tentam justificar seus malfeitos provocados por desejos materiais. O deputado Luiz Sérgio, relator da CPI da Petrobras, jurou de mãos postas que nenhum homem público havia praticado qualquer ilícito contra a empresa estatal. E ainda aproveitou para atacar a colaboração premiada, a mais civilizada atenuação de pena para quem cometeu um crime. O deputado põe o pensamento mágico a seu serviço e, de tanto repeti-lo aos outros, acaba convencendose do que diz e vai dormir em paz. O juiz Sérgio Moro e seus companheiros são uns inventores de moda.

É esse pensamento mágico a serviço do crime que, em diversas dimensões (ele existe à direita e à esquerda), nos ajuda a esclarecer o que Kenneth Maxwell, brasilianista inglês, afirma sobre nós: a elite brasileira se comporta como se nada se passou e tudo é passado. Ou seja, a elite brasileira se nega a pensar que é culpada de alguma coisa, ela não se dá conta do real porque é incapaz de pensar no outro. Se tudo é passado, não há nada a fazer no presente.
 _____________

São Paulo sempre gerou alguns de nossos melhores filmes, com cineastas, de Roberto Santos e Walter Hugo Khoury a Hector Babenco e Fernando Meirelles, que consagrariam o cinema paulista no mundo inteiro. Agora, o governador Geraldo Alckmin decidiu que São Paulo não precisa mais de cinema e está extinguindo o Programa de Fomento ao Cinema Paulista, gerido pelo estado. Justamente no momento em que a SPCine, empresa municipal criada por Juca Ferreira, atual ministro da Cultura, quando era secretário de Cultura da capital, começa a dar seu primeiros frutos.

Durante 12 anos, o Programa de Fomento ao Cinema Paulista viabilizou mais de cem filmes, inclusive nosso premiadíssimo sucesso e atual candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro, “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert. Para os cineastas paulistas, “o fim do programa é uma decisão política que, se confirmada, vai interromper o fluxo de produção com consequências desastrosas para o cinema paulista”, como dizem em manifesto recente. Estamos juntos com eles.

‘Porque estamos em 2015’ - Dorrit Harazim

  • 8 nov 2015
  • O Globo
  • DORRIT HARAZIM Dorrit Harazim é jornalista
 É mais fácil o presidente da Câmara tourear a cassação do seu mandato com os políticos do que abafar o movimento das mulheres

 Desde sua vitória de arromba nas eleições gerais de três semanas atrás, o canadense Justin Trudeau tem sido um deleite para fotógrafos. O segundo primeiro-ministro mais jovem do país (43 anos) mergulhou com entusiasmo em selfies com mulheres portandoo hijab, ensaiou uma dança típica com hindus, fez refeições com conterrâneos muçulmanos.


Também a cerimônia de posse desta quarta-feira ofereceu novidades telegênicas. Um dos pontos altos foi a lúdica apresentação de canto gutural inuit, uma tradição do povo indígena da Região Ártica. Trata-se, na verdade, de uma competição: duas mulheres ou meninas esquimós, posicionadas cara a cara, emitem pela garganta sons de animais ou da natureza. Perde aquela que rir primeiro. Educadamente, os presentes à posse do 23º chefe de governo também riram e aplaudiram.

Para quem vê nisso tudo sinais alarmantes de barato populismo multicultural, Trudeau reservou uma surpresa: a composição de seu gabinete. Os ministeriáveis chegaram juntos à cerimônia no centenário Rideau Hall de Ottawa. Num mesmo micro-ônibus, nada de limusines pretas.

A grande maioria dos integrantes do novo ministério tem entre 35 e 50 anos. Dois são aborígenes. Três são seguidores da doutrina sikh, surgida na região do Punjab indiano séculos atrás. E 15 são mulheres — metade exata do gabinete de 30 membros. “Por que considera esse equilíbrio de gênero tão crucial?”, quis saber a mídia logo após o anúncio. Trudeau pareceu espantado com a pergunta, pela obviedade da resposta: “Porque estamos em 2015”, disse apenas, antes de passar para questões mais complexas. Resumia assim o pensamento de um homem de seu tempo. No atual governo de Dilma Rousseff, aparelhado 275 dias após sua reeleição, o placar é de 27 homens para quatro mulheres.

No caso canadense, não se trata de uma questão apenas numérica. Ela também pretende ser qualitativa. Os ministérios de Comércio Internacional, da Justiça, das Instituições Democráticas e da Mudança Climática e Meio Ambiente estão entre as pastas agora comandadas por mulheres. Uma delas, Maryan Monsef, chegou ao Canadá aos 11 anos de idade, refugiada do Afeganistão.

No vasto país do Hemisfério Norte de apenas 36 milhões de habitantes, prevalece a compreensão de que a moderna nação-estado se construiu através de sucessivas ondas migratórias. Desde os egressos da Guerra de Independência americana, primeiros a receber do país vizinho um quinhão de terra, até os refugiados dos conflitos, desastres naturais e a fome de hoje, o Canadá se orgulha da tradição humanitária.

Nesse sentido, o governo conservador de Stephen Harper, que antecedeu a Trudeau e se manteve no poder por quase uma década, foi um ponto fora da curva. Centralizador, polemista, político de estilo combativo e autoritário, Harper considerava equivocado “derramar ajuda sobre gente que já morreu”, referindose aos despossuídos em busca de um recomeço de vida.

Foi surrado nas urnas em 2015 por não ter compreendido seu tempo nem sua gente, que votou em peso — 68% do eleitorado compareceram, apesar de o voto ser facultativo.

(Também Eduardo Cunha pretende não ver a dimensão do #AgoraÉQueSãoElas e a força do ronco feminino contra o seu projeto que dificulta o acesso ao aborto legal para vítimas de estupro. É mais fácil o presidente da Câmara tourear a cassação do seu mandato com os políticos do que abafar o movimento das mulheres).

“Meu governo é a cara do Canadá”, pode dizer Trudeau, “e a maioria sinalizou que é hora de uma mudança real”. O seu novo ministro da Defesa, por exemplo, usa turbante, barba e bigodão sikh, e nasceu na Índia. Mas não é por isso que o tenente-coronel Harjit Sajjan mereceu a pasta. Veterano de três temporadas na Guerra do Afeganistão e uma no conflito dos Balcãs dos anos 1990, o condecorado Sajjan pretende destrinchar o Canadá da reação ao ataque do 11 de Setembro que há 15 anos envenena a geopolítica mundial.

No dia da posse, Justin Trudeau foi mais uma vez perguntado se planejava perpetuar o legado do pai — Pierre Elliott Trudeau foi o premier mais pop e popular que o Canadá já teve e governou o país por 15 anos no século passado. “Meus pensamentos hoje não são para meu pai — sorry, Dad — mas para que meus próprios filhos e as crianças deste país tenham um futuro melhor”, respondeu o filho. Porque estamos em 2015.

Pergunta a Pedro Paulo Carvalho, secretário de Coordenação do Governo carioca e delfim do prefeito Eduardo Paes à sua sucessão nas eleições do próximo ano: em que órbita ele vive para classificar de “descontrole” a agressão à sua ex-mulher (à época ainda casados)? Pelo depoimento da acusadora feito em 2010 à Polícia Civil, ela foi derrubada no chão, agredida com chutes, socos e empurrões. Também teve um dente quebrado.

Porque estamos em 2015 isso se enquadra na Lei Maria da Penha.