sábado, 19 de abril de 2014

Um cinema chamado saudade - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA  - 19/04/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da
Academia de Letras da Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Estão em andamento preparativos para o relançamento do livro Um cinema chamado saudade, de Geraldo Leal, já falecido, e do seu sobrinho Luís Leal Filho, cuja primeira edição é de 1997. Trata-se de meritória obra de pesquisa, talvez, pela abundância de dados, sem paralelos no Brasil, e que em boa hora a Assembleia Legislativa da Bahia, pelo seu setor editorial, tão competentemente dirigido pelos dinâmicos Bina e Délio, integrará em seu catálogo.

Não pretendo aqui efetuar uma resenha do livro, que, pela riqueza de informações, mereceria apreciação mais detalhada de críticos de teatro, cinema e historiadores emgeral. Na verdade, o que desejo é evocar a dedicação de duas figuras às coisas de teatro e cinema na Bahia: a primeira é o próprio Geraldo Leal, que, sem formação específica de historiador, foi uma das mais espontâneas vocações de pesquisador que conheci na Bahia.

Quanto à outra figura, vou puxar brasa para a sardinha da minha família, ou seja, pretendo falar um pouco sobre a figura excepcional do meu avô João Oliveira, fundador do Cine-Teatro Jandaia, que a incúria e a omissão dos órgãos ditos culturais do Estado e da Prefeitura de Salvador permitiram que se transformasse numa pirâmide de escombros.

Dentista de profissão, Geraldo Leal viveu grande parte da sua vida imerso nos alfarrábios e documentos existentes no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, tão zelosamente preservados pela sua eficiente presidente Consuelo Pondé de Sena, campeã na luta contra dificuldades tão comuns na vida das instituições brasileiras.

Todas as vezes emque precisei recorrer ao instituto em busca de dados para meus livros, lá encontrei, obstinado e incansável, Geraldo Leal a remexer papéis velhos, desenterrando, de uma pilha enorme de jornais antigos, informações sobre a fundação e a existência de antigos teatros e cinemas baianos, além de compulsar com devoção a pouca bibliografia existente sobre esses assuntos.

Era, além de grande pesquisador, um conversador educado e amável, que sentia prazer em trocar com seus interlocutores informações variadas sobre temas comuns, que sempre enriquecia com observações pertinentes. O que estivesse ao alcance das suas pesquisas ele colocava a serviço do interesse dos demais frequentadores do instituto. Não se limitava a assuntos ligados a seus livros ou áreas de conhecimento.

Prestimoso, era uma referência para contatos úteis, uma fonte permanente de incentivos e de informações. Além dos seus incomparáveis trabalhos sobre cinema e teatro na Bahia, ocupou-se largamente das coisas do nosso passado, pois a sua mais forte vocação era revolver o legado da vida baiana de antigamente para fazê-lo retornar à convivência do presente.

Foi o interesse de Geraldo Leal pelas primeiras manifestações do cinema na Bahia que o levou ao encontro da grande figura do meu avô João Oliveira, um autêntico pioneiro do cinema brasileiro. Empresário de sucesso emmúltiplos ramos de atividade, homem rico que morava na Vitória e já naquela época possuía sofisticados automóveis, nos quais levava os sete filhos a passear nos embrionários desfiles carnavalescos de Salvador, João Oliveira enterrou fortuna e saúde no desafiador projeto de erigir na Bahia, no início dos anos 40, o mais belo cinema e teatro da sua época, o Jandaia, num terreno que possuía na Baixa dos Sapateiros.

Não era uma simples casa de espetáculos. Era um palácio “art nouveau”, embelezado com alfaias e rico acervo ornamental trazido da França. O sistema de iluminação interna do Jandaia não tinha paralelos, consistindo em fiações embutidas com lâmpadas coloridas à mostra, que acendiam alternativamente. A plateia acomodava nas cadeiras, galerias e camarotes de luxo mais de 2.500 confortáveis unidades. A ornamentação das paredes e do imenso teto, obra audaciosa de engenharia, era feita com estátuas de belos relevos de mulheres nuas em estuque, assinados por artistas franceses.

Era, pois, uma obra de arte. Hoje, como tantas coisas na Bahia, é uma lembrança sepultada em ruínas.

Semana Santa de outrora - Luiz Mott

A Tarde/BA - 19/04/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Na infância e juventude dos/das coroas
nascidos como eu no século passado
(sou de 1946), Semana Santa e Páscoa
eram coisa muito mais solene do que o atual
consumismo pós-moderno. Começava mesmo
na quarta-feira de Cinzas, com a cruzinha
de cinza na testa e abstinência de carne nas
sextas-feiras da Quaresma.

A procissão de Ramos, no domingo que
antecede a Páscoa, era penitência gostosa,
festiva, lembrando a entrada gloriosa de Jesus
em Jerusalém. Os ramos de palmeira eram
guardados para afastar doenças e as ciladas
do demônio. Quinta-feira Santa, chamada na
Bahia de “maior”, era dia soleníssimo de visitar
igrejas, assistir à missa da instituição da
eucaristia e a cerimônia do lava pés: confissão
e comunhão obrigatórias.

Na Bahia há a tradição persistente do banquete
com tudo que é comida de azeite, incluindo
obrigatoriamente bacalhau e vinho
tinto. Nada dessas comilanças esdrúxulas na
minha Pauliceia de outrora.

A sexta-feira Santa era dia de passar fome:
no tempo de minha mãe e avó, não se comia
quase nada, quandomuito, fazia-se a consoada:
“leve refeição noturna, sem carne, em dia de
jejum”. Dia proibido de varrer a casa, interditado
cumprir o dever conjugal e se divertir.
Nas rádios, só música clássica, triste. Nos cinemas,
filmes da Paixão de Cristo. Às 15 horas,
cerimônia da adoração da santa cruz, seguida
da procissão do SenhorMorto, comcantoria da
Verônica e o reco-reco das matracas.

No sábado santo, na vigília pascal, o longo
ofício das trevas e solene acendimento do
círio, matéria-prima para confecção dos valorizados
agnus-dei, esses pequeninos patuás
católicos, antídotos contra as tentações infernais.
Comunhão pascal obrigatória.

À meia-noite, hora oficial da ressurreição
do crucificado, muito alarido de sinos, buzinas,
gente na rua batendo pedra nos postes
de ferro. Nas periferias ainda se queimava o
Judas. Ceia com leitoa assada, pururuca.

No domingo de Páscoa, os deliciosos ovos
de chocolate da Lacta. Nos lares mais abastados,
da Kopenhagen. Aleluia, aleluia!

Noll em viagem - José Castello

O Globo - 19/04/2014

Poucos livros que conheço retratam com tanta dramaticidade o nascimento da literatura quanto “Lorde”, romance que João Gilberto Noll publicou em 2004 pela editora Francis, ganhou o prêmio Jabuti em 2005, e agora é relançado pela Record. O romance ilustra também a nova figura do escritor como um eterno viajante que, sufocado por uma multiplicidade de destinos, muitas vezes já nem sabe mesmo onde está, ou por que viaja.

“Lorde” conta na primeira pessoa a história de um escritor brasileiro que chega a Londres a convite de um cidadão inglês desconhecido. Não são claros os objetivos da viagem — mas ele supõe que incluam uma agenda literária. A chegada já lhe traz a intuição constante do fracasso: “algo me dizia que ele iria faltar”. A partir dali, o escritor se aventura não em uma zona de conhecimento, mas de desconhecimento. Região turva e sem direção, ambiente inóspito no qual a literatura também nasce.

O personagem de Noll — como um escritor qualquer diante de sua folha em branco — nunca sabe o que o aguarda. Espera-o uma tarefa secreta, que parece estar além de suas forças, mas a qual, ainda assim, ele precisa cumprir, ou tentar cumprir. Esse esforço dá nascimento ao livro, que nada mais é do que o resto inesperado de uma busca cega. Sente-se pressionado, “tendo eu que me preparar para uma tarefa que poderia me exigir muito além do que eu poderia oferecer”. O escritor está sempre aquém do livro que imagina. Seus dotes são insuficientes. Seus recursos não bastam para dar conta da tarefa a que se propõe. E, no entanto, é assim, nessa zona de penúria, e “sem condições”, que ele deve escrever.

Também a viagem a Londres, que antes prometia algum tipo de consagração, só lhe devolve a mesma solidão em que já vivia no Brasil. Troca uma solidão por outra. Enfim, o anfitrião inglês resolve lhe mostrar a capital britânica. “Ele sabia o que eu mesmo já não sabia mais”. Às cegas, o escritor se entrega a um ritual de sagração que é também a chegada a um exílio. Quando entram no apartamento que lhe reservaram, o escritor se dá conta de que lhe falta um espelho. Sua identidade começa a se esfacelar. “Ah, eu estava na cidade de Churchill e seu charuto, murmurei, não deveria esquecer, deveria fazer algum exercício para a memória”. Mas quanto mais convoca sua ajuda, mais ela lhe falha. A literatura nasce assim: de um lugar desconhecido, com propósitos não controláveis e intenções obscuras. O escritor acha que caminha numa direção, quando caminha em outra.

Tateia — como o personagem em Londres — em busca de algo que não consegue pegar. “Não que eu fosse um idiota completo, de nada lembrasse”. Mas a verdade é que a vida começa a lhe faltar, e é aí que a escrita encontra um lugar para se estabelecer, um vão para nascer como um rascunho da verdade. Ronda pelo bairro da periferia em que se hospeda, continua sua busca de um espelho, mas tropeça em migrantes e se embrenha numa atmosfera turva.

“Queria me ver depois da viagem, ver se eu ainda era o mesmo”. Quando enfim pode se reconhecer, se desconhece: “Eu era um senhor velho. Antes não havia dúvida de que eu já tinha alguma idade. Mas agora já não me reconhecia, de tantos anos passados”.

A partir dessa ignorância de si, o escritor se embrenha em um turbilhão de acontecimentos cada vez mais bizarros. Segue em busca de uma identidade que teima em lhe escapar e, por fim, se dá conta de que é um dândi — um “lorde” — perdido em um mundo estrangeiro.

Passa a desconfiar que, em Londres, “já é outro”, mas não consegue nomear esse outro em que se transformou.

“Ah, eu me enganava de novo, o fato é que eu perdia a direção”, constata. Condição primeira da escrita, essa perda de direção.

Este vazio é a possibilidade de acolhimento de uma prosa que o preencha. Busca “uma precária garantia de que não cairia na sarjeta”, mas não existe garantia alguma. Tudo o que lhe resta é seguir em frente. Assim também caminha o escritor enquanto escreve: sem fiança, sem confiança, sem nada que o permita existir com leveza.

A entrada no mundo da ficção que a aventura do protagonista metaforiza é experimentada como um susto. “Ele sabia o que eu mesmo já não sabia mais”, diz o personagem de Noll, sublinhando a importância da ignorância na experiência literária. “Tudo o que eu vivera até ali parecia estar indo embora. Parecia só existir aquilo, uma casa desconhecida que teria de ocupar, uma língua nova”. Nesse mundo de sombras e de frágeis silhuetas, ele conclui que “é preciso saber olhar”.

Reaprender a olhar, e também se desapegar das ideias iniciais, rascunhos, projetos gloriosos que, diante do texto, se dissolvem. “Eu não tinha saudade do que deixara no Brasil nem de nada em qualquer esfera”, diz.

Aos poucos, o personagem original se decompõe, se fragmenta, abrindo caminho para outro homem, que ele mesmo desconhece. “Tinha vindo para Londres para ser vários”, conclui diante do cenário em fragmentos pelo qual transita. Tornando-se outro, ele se transforma em objeto. Objeto de que? Da ficção, que avança sobre o terreno e ocupa os espaços. A própria linguagem, ele experimenta, está em decomposição. Já não há nada conhecido, e todas as garantias estão desfeitas. “Eu tinha vindo nesse raio de mundo para isso, para preencher esse intervalo que na verdade não tinha fim”. Abre-se um abismo, e esse abismo é a própria ficção.

A aventura do personagem de Noll torna-se, a partir daí, insuportável, chegando a beirar o absurdo. É, enfim, uma travessia do desconhecido que, se abre uma rachadura no mundo estável, abre também um lugar para um novo mundo. “Só poderia então desejar que aquele impasse perdurasse pelo resto dos dias”, medita. O impasse é sua salvação. É diante da realidade insolúvel que ele pode, enfim, por falta de alternativa, criar. A criação se torna assim um destino, e não um ponto de partida. Uma meta, e não uma escolha.

Por fim, um erotismo forte toma conta de “Lorde”, como que a indicar que tudo se resolve no corpo ou em seu entorno. Que é na carne que as piores, mas também as melhores coisas se desvelam. É ali, chegando a si mesmo, que o homem enfim se constitui.

| Não te leves demasiado a sério, mas leva a sério o mundo - GONÇALO M. TAVARES

 O Globo 19/04/2014

CORRER E EXISTIR

“Um grupo de pessoas andava a passear e encontrou Nasreddin Hodja. Perguntaram-lhe:

— Quanto tempo levamos até à aldeia mais próxima?

— Andem — disse-lhes ele.

— Mas quanto tempo?

— Andem.

Não conseguiram arrancar-lhe mais nada além desse “andem” e deixaram-no ali.

Meia hora mais tarde chegaram à aldeia seguinte.

Ouviram atrás de si barulho de passos precipitados. Voltaram-se e viram Nasreddin que chegava a correr.

Sem fôlego, parou junto do grupo e disselhes:

— Demora uma meia hora.

— Mas porque não nos disse antes?

— Porque — respondeu Nasreddin — não sabia a que velocidade caminhavam.”

(História recolhida por Jean-Claude Carrière)

O HINO, A BANDEIRA

O hino e a bandeira, a bandeira e o hino.

A bandeira, qualquer bandeira, parecendo,

ao longe, um quadro mole em que as cores representariam uma espécie de outra paisagem, não exterior.

A bandeira de um país não é, de fato, um quadro realista, mas sim simbólico. O mais simbólico.

E sim. Se queres saber se há muito ou pouco vento fixa os olhos na bandeira, nos movimentos que ela faz — “as bandeiras são o vento tornado visível (…) os povos servem-se das bandeiras a fim de chamar seu o ar que paira sobre as suas cabeças”, escreve Elias Canetti. Eis, pois, o que representa a bandeira de um país que é levantada num estádio após uma vitória desportiva: subitamente, aquele bocado de ar fica com as nossas cores. Um retângulo de ar que é ocupado por uma bandeira. Parece pouco, mas é isso mesmo: o espaço aéreo de um outro país está ocupado pelo nosso país (um retângulo pequeno, a bandeira, sim, mas ocupa muito espaço mental porque, durante um minuto, é o centro — aquilo para onde todos olham).

E há ainda o hino, que não é nada irrelevante. Entre bilhões de associações de sons possíveis eis que surge a canção que reconhecemos.

E assim estamos, nesta cerimônia simples, na coroação de um vencedor olímpico, diante da ocupação temporária de olhos e ouvidos dos outros. Os olhos veem a bandeira, os ouvidos ouvem o hino. E esta ocupação temporária de olhos e ouvidos — os órgãos essenciais da atenção humana — é significativa. Invasão pacífica portanto: em vez de um exército a entrar em território alheio, ocupação — durante um minuto — dos olhos e ouvidos alheios. Olhos e ouvidos dinamarqueses, chineses, australianos (etc.) a verem e ouvirem a bandeira e o hino de um outro país. Pacífica ocupação visual e sonora do espaço aéreo estrangeiro por um minuto. É tempo suficiente? Sim.

1 - CORRIDA EM LINHA RETA VERSUS CORRIDA EM CÍRCULOS

Há dois tipos de corrida, isto é: duas formas de percorrer o espaço:

1 - Corrida em linha reta.

2 - Corrida em circunferência ou noutra forma “curva”, em que o ponto final é o mesmo do início.

E se viver for percorrer um espaço? Aqui está uma pergunta. Não é isso? Então o que é? É percorrer um tempo, resposta possível. Correr sobre um tempo, é isso? Mas como se corre sobre o tempo? É difícil pensá-lo a grande escala, mas uma corrida, a maratona por exemplo, é isso mesmo: é correr por cima do tempo, correr por cima do relógio, do cronômetro. O chão deixa de ser informe e neutro e passa a ser Tempo, tempo objetivo. Numa corrida percebemos então o que significa ainda não estar morto: é ter tempo a correr debaixo dos pés. E eis, pois, que correr muito, andar pouco ou ficar quieto ganham novos sentidos. É impossível correr mais rápido do que o tempo, por definição — mas podes correr ao mesmo ritmo do tempo, correr menos que o tempo, ou não correr, simplesmente. Neste sentido, duas formas de corrida são duas formas de existir sobre a terra. Duas formas completamente distintas. Resistência ou velocidade? Chegar rapidamente ao destino ou, no limite: avançar sempre, sem parar, tentando apenas não cair. As provas de atletismo resumem duas formas de estar vivo.

1A - Corrida em linha reta

Correr em linha reta: chegar o mais rápido possível a um ponto que está afastado — muito ou pouco — do ponto de partida.

— Corrida em linha reta curta — exemplo: corrida de cem metros.

— Corrida em linha reta longa — corrida de longo curso que não termina no ponto de partida (exemplo: atravessar uma cidade de um lado ao outro).

Qualquer que seja a distância, a verdade é que a corrida em linha reta esquece de onde partiu e só quer chegar ao destino. Aqui, então, o ponto de partida é isto mesmo: aquilo a que rapidamente se vira as costas. Esta indiferença em relação à origem, ao início, este não dar importância ao que está atrás de nós, deve merecer reflexão. Porque tal pode ser entendido como uma espécie de falta de memória. De onde parti, onde comecei? Eis aquilo de que j não me lembro e que já não importa nas corridas em linha reta. A corrida em linha reta — como nos 100 ou 200 metros — lembra até
uma fuga; tem, podemos dizer, o mesmo sistema mental da fuga (afastar-me o mais rápido possível do ponto onde estou!). Ao contrário, a longa corrida, como os dez mil metros, é para homens mais tranquilos.
Expliquemos porquê.

1B - Corridas em que se volta ao ponto de partida (circunferências mais ou menos imperfeitas)

Pois há então que dizê-lo: as corridas em circunferência (mesmo que muito imperfeita) são as mais sensatas. Façamos, então, um pequeno desvio e falemos de filosofia.

O filósofo Heidegger chamava a atenção para o que é filosofar: filosofar é andar em círculos, um itinerário longo, infinito, que regressa sempre ao ponto de onde partiu. Pois bem, explica ele, a filosofia anda em círculos porque está sempre à volta do centro. Ou seja, porqueestá sempre em redor do essencial. A filosofia, poderia dizer-se, traça uma circunferência cujo centro são os grandes temas humanos, ao contrário, por exemplo, de muitas ciências que avançam em linha reta — sempre em frente! Estas ciências, como é evidente, não têm centro porque uma linha reta, por definição, não tem centro.

E note-se que o essencial é aquilo para onde eu estou virado (nunca se vira as costas ao essencial); e, se é assim, em termos geométricos o centro de uma circunferência é o elemento para onde todos os pontos da linha da circunferência estão virados. Uma adoração sem Deus no centro.

Há, assim, uma diferença básica entre uma modalidade de atletismo como a corrida de cem metros, e uma modalidade como os 400 ou os 10 mil metros. Nestas modalidades, mesmo que não se trace uma circunferência, meta e partida estão no mesmo lugar. E esta característica é essencial.

São modalidades atlético-filosóficas, poderíamos dizer. Ao contrário dos 100 e 200 metros que são, continuando nesta lógica classificativa, modalidades atlético-científicas — (modalidades que têm o sistema mental da ciência: sempre em frente, é o caminho!). O atleta de dez mil metros nunca se afasta do centro — está sempre às voltas do essencial — mesmo que, por momentos, pareça afastar-se. E, além disso, corre muito, corre o mais rápido possível para chegar ao ponto de onde partiu. Parece um absurdo, mas é mesmo assim.
Do outro lado estão os velocistas.

2 – A CALMA DO ATLETA

De que é feita a calma? Disto: nada de espiritual ou psicológico — há que contar pelos dedos as pulsações cardíacas, eis tudo. A calma como um ritmo fisiológico — os metros por segundo que o sangue de um corpo percorre.

E as experiências individuais — correr a maratona, subir os Alpes, ver um filme, participar numa batalha — no fim, feitas as contas, não são o que sucede no exterior, são, sim, objetivamente, as pulsações cardíacas. Experiência individual não é o que se passa em frente ao corpo — é a consequência interna, no organismo, dos acontecimentos exteriores. Diante do mesmo acontecimento, duas pessoas têm reações orgânicas completamente distintas — um treme e grita, outro fica indiferente. Um tem 45 pulsações cardíacas, outro, cento e trinta. A experiência significativa é, então, aquela que altera brutalmente as pulsações cardíacas. Eis uma definição objetiva, quantitativa, neutra — mas definição.

(No entanto, se a aplicássemos em todas as situações, reduziríamos a vida pessoal a um gráfico de pulsações cardíacas. Em vez de um álbum de fotografias com os Alpes, Veneza e a mulher por quem nos apaixonamos, um gráfico de batimentos cardíacos por minuto. Aqui — dirá o dedo entusiasmado apontando para um número — aqui, quando me apaixonei: cento e vinte pulsações!)

Pois sim. A antiga definição de sabedoria poderia ser, afinal, uma mera constância nos batimentos cardíacos por minuto. O sábio como aquele que não se exalta, não se enerva. O sábio, no fundo, como um super-atleta, o atleta mais bem treinado para a Existência. A Existência entendida aqui como prova não Olímpica, mas prova, mesmo — exige esforço, força, velocidade, flexibilidade e capacidade de resistência.

(Texto que partiu de um texto-homenagem a Carlos Lopes, maratonista português que ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos)

Encontros e fantasmas da madrugada - Frei Betto

 O Globo 19/04/2014

Meu último encontro com Gabriel García Márquez e Mercedes, sua mulher, foi em Havana, a 11 de dezembro de 2008. Ele parecia cansado e já demonstrava sinais da enfermidade que o consumiria.

Conheci-o na capital de Cuba, em fevereiro de 1985. Perguntei-lhe se havia terminado seu novo romance, “O amor nos tempos do cólera”.

— Terminei o texto linear. Agora trabalho nos acertos.

Gabo havia enviado o texto a Fidel, que pouco depois chegou à casa onde nos encontrávamos. Ansioso, indagou se o Comandante já havia lido os originais.

— Sim, e com muita atenção — disse Fidel.

— Descobri um erro crasso.

Gabo ficou lívido.

— Você escreve que um barco saiu de Cartagena transportando toneladas de ouro. Fiz alguns cálculos. Um barco da época, todo de madeira, teria afundado no próprio porto.

Em novembro de 1985, Gabo me chamou à casa de protocolo 61, onde se refugiava para escrever, e mostrou-me seu discurso para a abertura do congresso de intelectuais. Uma irônica e divertida história de congressos.

— Sugiro a você ressaltar o múltiplo aspecto da cultura popular na América Latina — opinei. — Como cultura de resistência, solidariedade, protesto, jogo e festa.

Ele me fez subir para o segundo andar da casa, ligou seu Macintosh e acrescentou ao texto a sugestão.

— Em que período do dia você prefere escrever? — perguntei.

— Pela manhã, após banhar-me, vestir-me e tomar um vasto café.

Era a primeira vez que eu via o computador com a grife da maçã. Fiquei maravilhado diante daquela máquina. Ele me mostrou como funcionava e insistiu para que eu comprasse uma. Depois, “roubou” de Mercedes um exemplar de seu romance “O amor nos tempos do cólera”, a ser lançado em breve, e me presenteou com uma dedicatória.

Em julho de 1986, participei em Havana de uma recepção oferecida por Fidel a um chefe de Estado da África. Às três da madrugada, Gabo e eu deixamos o Palácio da Revolução e cada um se dirigiu à casa em que se hospedava.

Meia hora depois, quando eu já pegava no sono, soou o telefone da cozinha. Fui atender:

— Companheiro, aqui é da casa de García Márquez — disse uma voz anônima. — Ele está indo para aí.

Por que Gabo viria ao meu encontro àquela hora? Aguardei 20 minutos, bêbado de sono. Nenhum Prêmio Nobel vale o preço do meu sono. Como não apareceu, voltei à cama após deixar a porta da casa encostada.

Na manhã seguinte, fui informado de que na casa de Gabo haviam recebido telefonema de alguém que dissera: “Frei Betto pede que venha urgente à casa dele”.

Ao contrário de mim, que voltara a dormir, Gabo atendeu ao chamado e ficou até as 7h da manhã na varanda da casa em que eu estava hospedado, conversando com amigos que me acompanhavam na viagem.

Nunca entendi por que os fantasmas da madrugada pretenderam nos manter despertos e juntos... Gabo poderia ter aproveitado o estranho episódio para um de seus primorosos contos.