terça-feira, 19 de novembro de 2013

Antologia negra

O Globo 19/11/2013

O afrobeat de Femi Kuti, a emoção dos Blind Boys of Alabama, a intensidade de Buika e o soul verdadeiro de Bobby Womack compensaram os problemas logísticos do Back2Black



SILVIO ESSINGER
silvio.essinger@oglobo.com.br

Vários foram os problemas — da falta de estacionament aos atrasos nos shows —, mas os momentos antológicos compensaram de sobra as dore de cabeça ao longo da quinta edição do festival Back2Black, que ocorreu de sexta-feira a domingo. Em seu primeiro ano na Cidade das Artes, na Barra (depois de toda uma existência na Estação Leopoldina), o evento em celebração à cultura negra começou à toda na sexta, reunindo seu maior público (3.800 pessoas) em noite que teve, no Palco Rio (localizado no aconchegante pilotis da Cidade, com paredes e teto decorados por projeções), quatro grandes shows: os do MC congolês Baloji (incendiado de vez com uma participação do MC Marechal), do violonista nigeriano Keziah Jones (de groove incessante), do rapper Criolo (aditivado ao fim pela bateria do mestre do afrobeat Tony Allen) e, mais do que todos, o de Femi Kuti.

Acompanhado por dançarinas-cantoras e por uma banda para lá de azeitada, o muito elétrico maestro (filho do criador do afrobeat, Fela Kuti) se revezou no sax, na clarineta, nos vocais e nos teclados, num baile dos mais quentes, com canções de alto teor político (“Africa 4 Africa”, “The world is changing”) e metais em brasa.

No sábado, o espetáculo mais aclamado foi o da Grande Sala (onde, na noite anterior, se apresentara Milton Nascimento), de acústica perfeita, à qual se chega subindo escadas rolantes. Patrimônio do gospel, blues e r&b com mais de 70 anos de existência, o grupo The Blind Boys of Alabama, com seus três cantores cegos, fez jorrar emoção com suas canções de alegria e de louvor que vieram, em boa parte, do seu álbum mais recente, “I’ll find a way”. Gritos, falsetes arrepiantes e harmonias celestiais não faltaram no contagiante show, que culminou com a ida do cantor Jimmy Carter para o meio do público e a aparição surpresa no palco do reverendo Jesse Jackson, ajudando a animar a sala.

Enquanto isso, no Palco Rio, o bem costurado pop da cantora Mayra Andrade (nova estrela de Cabo Verde) e a cumbia africanizada da senegalesa Orchestra Baobab prepararam os ânimos para o show em homenagem a Miriam Makeba, mito da música e do ativismo sul-africanos. Guiado pela neta de Makeba, Zenzi, o espetáculo teve atrasos e foi longo, seguindo morno até a entrada de Gilberto Gil, que acordou o povo por volta das 2h com “Oração pela libertação da África do Sul”.


No domingo, a chuva que caiu ao longo do dia obrigou o festival Back2Black a realizar mudanças logísticas. O cantor e mito do soul americano Bobby Womack, de 69 anos, que estava programado para se apresentar no Palco Rio, teve seu show transferido para a Grande Sala. E quem acabou pagando o preço da transferência foi a cantora Mart’nália, que entrou no palco ainda em meio aos ajustes técnicos e tentou, com bom humor (mas em vão), reverter o atraso e os problemas técnicos e fazer a estreia de seu show em homenagem a Vinicius de Moraes.


Já sem problemas de som (mas também com atraso), a cantora espanhola Buika fez um dos grandes shows do Back2Black. Intensa, afro-cigana, com uma voz tirada do útero, Buika arrebatou ao passar por canções como “Santa Lucía”, “Tu volverás”, “Siboney” e “Se me hizo fácil”.


Já Bobby Womack chegou disposto a provar que estava bem vivo. Voz em dia, ele releu seus hits e abriu espaço para o trio de vocalistas de apoio (entre elas, a sua própria filha, GinaRe). Ficou para a extasiada plateia a impressão de ter visto, em pleno voo, um dos últimos exemplares da espécie dos soulmen verdadeiros. Quem sobreviveu ainda pôde conferir, madrugada adentro, um tributo a James Brown com a Banda Black Rio e o saxofonista de Brown, Pee Wee Ellis. Um belo (mas tardio) espetáculo.