domingo, 9 de junho de 2013

Texto e contexto - LUIS FERNANDO VERISSÍMO

O GLOBO - 09/06/2013
Na peça "Ricardo II", de Shakespeare, há uma fala famosa que é muito citada como um hino patriótico à InglaterraQuem a diz é o duque John de Gount, tio do rei Ricardo II e pai de Henry Bolingbroke, desafeto exilado do rei, que acabará derrubando do trono. John de Gount, à beira da morte, exalta as riquezas e as glórias do seu país ("este outro Eden", "esta pedra preciosa posta no mar prateado", a salvo "da inveja de terras menos felizes", "este lote abençoado, este chão, este reino, esta Inglaterra") num tom de entusiasmo crescente que empolga até quem não é inglês - se lido até a metade. O resto da fala, raramente citada, é um lamento pelo declínio desta maravilha, cuja grandeza o rei está dilapidando. "Esta Inglaterra acostumada a conquistar, hoje é vergonhosamente derrotada por si mesma", diz Gount, que termina desejando que "o escândalo desapareça junto com a minha vida, alegrando minha morte iminente".    
Já contei (umas cem vezes) que vi o Millôr Fernandes levantar uma plateia num encontro literário em Passo Fundo com a leitura de um texto de candente defesa da democracia e dos direitos humanos, e depois da ovação revelar que acabara de ler o discurso de posse do general Médici na Presidência da República, quando se inaugurava o período mais escuro da ditadura. Um período em que com frequência o discurso do poder contrastava com a realidade à sua volta, e o texto era desmentido pelo contexto. A aula do Millôr foi sobre a força autônoma da retórica, capaz de mobilizar uma multidão que ignora seu contexto.

Mas pior do que isto é quando o contexto é conhecido e mesmo assim as palavras compõem outra realidade, e empolgam e mobilizam do mesmo jeito. A história brasileira está cheia de exemplos do triunfo da oratória bacharelista sobre a realidade do momento, do dito sem a menor relação com o feito. Para ser justo com o Médici e o autor do seu discurso, é preciso reconhecer que em todo discurso de posse presidencial há um desencontro parecido entre intenção e realidade.

Quem não se lembra do discurso de posse do Collor? Shakespeare tem outros exemplos de textos em que uma parte se vira contra a outra, como a exaltação que vira lamento de John de Gount.

O mais notório é a fala de Marco Antonio sobre o corpo de César assassinado, que começa dando razão aos assassinos e termina incitando a massa a matá-los. Em outro trecho da peça alguém diz que se deve ter muito, mas muito cuidado com os bons oradores.

NSA e IMS - Caetano Veloso


 O GLOBO - 09/06/2013

Bush, Obama, Prism e o (nem tão) admirável mundo novo

Obama foi conversar com o premier chinês sobre a presença do Estado na internet justo quando o jornal “The Guardian” noticiou que o governo americano pode entrar nos e-mails, chats e redes sociais da Google, da Apple, da Yahoo. Pelo menos é o que acabo de ler aqui, na madrugada da quinta para a sexta-feira. Quando este errático artigo estiver impresso todo mundo já vai estar sabendo mais e melhor sobre isso do que posso saber agora. Os americanos que escrevem comments sobre a matéria do “New York Times” (os jornais americanos não pareciam saber antes de o britânico “Guardian” noticiar) se dividem entre os que se penitenciam por terem votado em Obama (às vezes com um subtexto de antiga agressividade reprimida contra ele), os que acham que, com as decisões do governo Bush sobre segurança nacional depois do 11 de setembro de 2001, estão vivendo um orwelliano 1984, e os que consideram desarrazoadas as queixas dos que cobram eficiência do governo contra atentados tipo maratona de Boston e, ao mesmo tempo, se mostram cheios de pruridos de resguardo da privacidade dos cidadãos e das liberdades individuais.

Mautner, que me mandou os links, sente (e diz naquele tom sempre mítico com que se expressa) o terror e a maravilha desse mundo novo nem sempre tão admirável. Eu não me sinto maduro o suficiente (não passou tempo bastante entre a leitura das reportagens e os comentários que me vejo escrevendo: na verdade, acabei de lê-las) para esboçar uma apreciação. Sobretudo porque não sei se dá para entender exatamente o que está se passando. Quem me lê aqui, em pleno domingo, já deve saber bem melhor. Está claro que a NSA (que em pouco tempo deverá tornar-se mais famosa do que a CIA) tem um programa chamado PRISM (prisma: nome bonito) que pode entrar nos textos, fotos, conversas, de qualquer habitante de qualquer país que não sejam os Estados Unidos (mas parece que podem entrar, com mais moderação, nos arquivos dos americanos e residentes também). A Google, a Apple e o Facebook podem ser varridos pela agência nacional de segurança. Esses e, segundo o “Guardian”, outros gigantes da internet. Cada um de nós pode se perguntar: será que algum curioso, em momentos de folga da busca de terroristas, vai ler segredos meus?

Sou um existencialista francês dos anos 1950: adolescente, gostava de ler Sartre dizendo que não queria ter segredos e que, no reino da liberdade, todos os homens deveriam dizer-se tudo uns aos outros. É claro que é uma maluquice. Mas eu era adolescente e morava em Santo Amaro. Isso me lembra também que o primeiro livro que li sobre o filósofo, “Sartre par lui même”, escrito por Francis Jeanson, um outro francês cujo nome eu tinha esquecido mas busquei no Google, continha uma recriminação a um livro americano que, estudando o estilo de Sartre (por exemplo: contando o número de interrogações etc.), concluía que se tratava de um exibicionista com alguma tendência homossexual. O francês desanca o psicólogo americano — e com razão (não li esse livro, mas a descrição que dele faz o ensaísta mostra tratar-se de algo bem americano, no mau sentido da palavra: psicologista, infantilmente direto e seguro de si). Mas a acusação de exibicionismo nunca foi por mim esquecida. E, nas minhas horas desatentas, ela volta como se fosse um insight. Pois bem: acho que não me incomodaria se um maluco desses lesse tudo o que já escrevi sobre mim para pessoas íntimas. Suponho que o exibicionismo é o verdadeiro traço que me atraiu, por semelhança, ao ex-famosíssimo filósofo francês.

Mas que feio para Obama herdar esse esquema de Bush e, em vez de criticá-lo, ampliá-lo. Bem, parece que política é assim. O poder ensina coisas que eu não gostaria de aprender. Como pensar esse mundo em que estamos vivendo? Nunca houve tanta fartura e liberdade para tanta gente em toda a história da Humanidade. No entanto, as dispariades são exasperantes, há fome e miséria, a concentração das riquezas e das oportunidades cresceu em anos recentes. E, mais assombroso, ninguém sabe como as forças do mundo — o modo de crescerem as economias e a violência das convicções religiosas — mover-se-ão para rearranjarem tudo de modo a podermos prosseguir. Não consigo imaginar que não prossigamos. Mas as mais variadas hipóteses são fantasiadas por essa minha cabeça insone e desorganizada.

A internet sempre acenou com uma liberdade imensa e com uma total possibilidade de controle. Como se desatará esse nó? Não há quem saiba e possa dizer de modo inteligível. No entanto, a alegria de estar no mundo permanece. Obama ainda é bonito nas fotos. Consultar o Google ainda é bom. Consultar o site do IMS às vezes é ainda melhor.