domingo, 5 de maio de 2013

Pedra 90 - Artur Xexéo

 O Globo - 05/05/2013

O percurso não era muito longo. De Copacabana, ali na Figueiredo Magalhães, até o Jardim de Alá. Se o trânsito na Lagoa estivesse bom, chegaria em pouco mais de dez minutos. Foi o que aconteceu. Mas a viagem naquele táxi, de mais ou menos dez minutos, foi uma viagem no tempo.

A viagem começou pela trilha sonora promovida pelo motorista. Boleros. Ouvi uma versão em português de “Besame mucho”, que acho que não conhecia. Meu analfabetismo musical fez com que eu emitisse a mais ridícula das perguntas:
— É Altemar Dutra?
O motorista deu um risinho superior e me corrigiu:
— Não. É o Trio Irakitan.

A viagem foi mais longe. Trio Irakitan! Meus contemporâneos devem se lembrar deles — Edinho, Paulo Gilvan e Joãozinho. Eram simpaticíssimos. Brilhavam como nenhum outro grupo na televisão. Cada um tocava um instrumento: um violão, uma maraca e um tantã. Cantavam qualquer coisa. De baiões (eles eram do Rio Grande do Norte) a bossa nova. Lá em casa tinha um disco deles, “Os sambas que gostamos de cantar”. Tocou até furar. Foi nesse disco que conheci alguns clássicos da música brasileira, como “No tabuleiro da baiana”, de Ary Barroso, “Agora é cinza”, de Bide e Marçal, e “O samba da minha terra”, de Dorival Caymmi. No meu hit parade, as gravações de João Gilberto só vieram muito depois.

Não duvido que o Trio Irakitan tenha sido uma porta de entrada para as crianças de um tempo atrás conhecerem o melhor da música brasileira. O sucesso do grupo junto ao público infantil só aumentou quando eles estrelaram uma chanchada. Em “Três colegas de batina”, o trio contracenava com Eliana.
O motorista interrompeu minha viagem.
— Eu tive uma certa intimidade com o Trio Irakitan. Era colega do filho do Edinho. O Edinho foi o primeiro a morrer. Ele era Pedra 90.

Vem cá, isso era um táxi ou um túnel do tempo? Pedra 90? Há quanto tempo não ouvia essa expressão. Meu pai a empregava quando queria elogiar um amigo. Para quem está chegando agora, Pedra 90 significava algo como o atual “gente fina”. Será que “gente fina” é mesmo atual? Enfim, alguém em quem se podia confiar era Pedra 90.

Nunca soube a origem da expressão. Ainda estava no táxi, agora ouvindo o Irakitan cantar uma versão para “Quizas, quizas, quizas”, quando consultei o Google para saber de onde vinha a gíria. Descubro que vem do jogo de tômbola. Ninguém sabe mais o que é tômbola? Então, substituo a palavra por víspora. Ainda estão boiando? E loto. Não, não pronuncia-se “lóto”. É “lôto”. Nada feito. Tudo bem: e bingo? Agora nos entendemos. Tômbola era o jogo de víspora, de loto, de bingo, que a gente jogava em casa. Um bingo familiar, com um saco cheio de pedras numeradas que eram “cantadas” (dois patinhos na lagoa, a idade de Cristo...), enquanto os jogadores preenchiam suas cartelas com grãos de feijão. A diferença é que a tômbola tinha um número maior de pedras do que a víspora. A Pedra 90 era a mais valiosa. Daí...

Cheguei ao Jardim de Alá nos anos 60. Ouvindo boleros, jogando tômbola, elogiando as pessoas chamando-as de Pedra 90. Não durou muito tempo. O século XXI me esperava.

Percebes? - Caetano Veloso


 O Globo - 05/05/2013

 

Há uma evidente razão para que o português brasileiro seja mais inteligível a ouvidos lusitanos do que o português europeu a nossos ouvidos: nós pronunciamos as vogais das palavras

É o contrário do que senti ao ler Agustina Bessa-Luís. Toda a densidade da vida luso-brasileira se vê negada. Diante da TV, assistindo a um filme português no Canal Brasil, me deparei com uma experiência que já conhecia de antes mas que pensei que tivesse esquecido. O filme era falado em português europeu e estava legendado em português brasileiro. Foi vendo uma obra de Manuel de Oliveira no cinema que eu tinha passado pela mesma situação. Revivendo-a ao assistir televisão, pensei com mais convencimento que, dado o fato de os brasileiros em geral terem dificuldade de entender a fala lusitana, deve ser aceitável que filmes portugueses passem com legendas no Brasil.

Isso não é uma constatação que me traga alegria. Enchi-me de felicidade quando, por exemplo, ouvi José Saramago falar numa entrevista dada a um programa daqui e me pareceu que qualquer brasileiro o pudesse entender. (O mesmo, aliás, se dá no filme sobre Bessa-Luís que pode ser visto no YouTube: a fala da grande escritora é clara e pode ser entendida do Oiapoque ao Chuí.) Já no documentário que foi feito sobre Saramago e sua mulher, Pilar, o mesmo processo de legendas que me exasperou foi utilizado. Ocorreu-me que é impensável que filmes ingleses precisem ser legendados nos Estados Unidos ou no Canadá — ou que filmes espanhóis exijam subtítulos na Argentina ou no México. O caso do Brasil é diferente. Os portugueses veem novelas brasileiras na TV e ouvem música popular brasileira desde sempre. Quando eu era criança, em Santo Amaro, ouviam-se fados no rádio, e Ester de Abreu era uma estrela da Rádio Nacional. Eu próprio gostava de tentar imitar a pronúncia lusitana em shows amadores no Ginásio Teodoro Sampaio. Havia a força da colônia portuguesa no Rio. Mas há já décadas que os brasileiros perderam contato com o linguajar luso. Não me consta que em Portugal os filmes brasileiros tenham tido a receptividade que as novelas e as canções têm. Nem mesmo fenômenos como “Cidade de Deus” ou “Pixote”. Mas os portugueses mantêm contato com nosso modo de falar.

Há uma evidente razão para que o português brasileiro seja mais inteligível a ouvidos lusitanos do que o português europeu a nossos ouvidos: nós pronunciamos as vogais das palavras. Quando cheguei a Portugal, na fase inicial do nosso exílio durante a ditadura, Gil e eu fomos, com Roberto Pinho, amigo conhecedor e amante da cultura portuguesa, a Évora. Ele era apaixonado por essa cidade do Alentejo e queria que nós a conhecêssemos. Andamos pelas ruas e praças dessa bela cidade e, a certa altura, um jovem local, louro e bonito, com cabelos mais longos do que a maioria dos jovens portugueses de então, mostrou-se curioso a nosso respeito. Entramos num bar para tomar refrigerante, e ele, conversando conosco, nos dizia que entendia muito bem o nosso espanhol. Insisti em que nós falávamos português, mas ele não ficou convencido. Eram as vogais. Se alguém pronunciar todas (mas todas mesmo) as vogais das palavras portuguesas à espanhola (ou seja, com os és átonos finais soando ê e os ós átonos finais soando ô, ao invés dos respectivos i e u de nossa fala) nós entenderemos tudo. Já se alguém pronunciar todas as palavras espanholas com os sons do português brasileiro, ou seja, os jotas soando j, os tês e dês palatalizados diante da vogal i, os esses intervocálicos soando z, etc., um ouvinte de língua espanhola não entenderia nada. O português brasileiro está para o português lusitano um pouco como o espanhol está para o português em geral.

Mas há o fator exposição, que contribui para que os portugueses, que ouvem canções brasileiras desde os anos 1930 ou 40 do século passado (e mesmo antes) e veem novelas brasileiras desde que a TV Globo modernizou o gênero nos anos 1970, entendam as formas sintáticas usuais no Brasil, além das gírias e expressões do português americano. Não nos adestramos para ouvir o português europeu. E falta-nos o midatlantic que está esboçado na fala de Saramago e de Agustina.

Muito se deve ao poder que cerca as outras duas grandes línguas europeias que se transplantaram para as Américas: o inglês e o espanhol. Vendo essas legendas que, pelo mero fato de estarem ali, gritam que não nos entendemos — e, o que é pior, não sendo nem mesmo legendas que reproduzem o que está sendo dito pelos atores lusos (com o que nos familiarizaríamos com a sintaxe e o vocabulário deles), mas “traduções” para a sintaxe e o vocabulário nossos (por exemplo: “Percebes?” vem legendado como “Você está entendendo?”), sentimos nossa impotência histórica, nossa irrelevância política. Notamos que é demasiado o que tem que ser feito. E assim parece que nada faremos.