sábado, 22 de fevereiro de 2014

Folia e hipocrisia - Walter Queiroz Jr.

A Tarde/BA 22/01/2014

Walter Queiroz Jr.
Advogado, poeta, compositor,
membro da Confraria dos Saberes
waljunior44@hotmail.com

A palavra folia vem de uma palavra francesa
(folie) para designar loucura e não
é à toa que dela nos apropriamos como
sinônimo do carnaval. Nossa festa maior, entretanto,
não merece incorporar esse galicismo
ao pé da letra. Nosso carnaval não deveria ser
um evento louco e, sim, um conjunto de momentos
mágicos a favor da comunidade, pedindo
uma trégua à caretice, em favor da espontaneidade
e da catarse pela alegria. A transformação
do carnaval-participação da década de
setenta, quando Brasil e o mundo vinham pra
cá confraternizar descontraidamente, no modelo
atual é um desserviço à causa social e aos
legítimos anseios da nossa cultura popular. Praticamos
hojeumcarnavalmovido por interesses
argentários, num conluio político-empresarial,
privilegiando artistas que, ensandecidos pela
fama e glória, venderam a alma ao diabo.

A fúria eletrônica liquidou com as manifestações
acústicas e um gigantismo irresponsável
tomou conta da avenida. O pioneiro
afoxé Filhos de Ghandy, emblema do nosso
carnaval, transformou-se numa entidade que
passeia mais que dança, até por que já não
ouve os seus próprios agogôs. As rádios compradas
pelo “jabá” marginalizam milhares de
artistas e fabricam sucessos medíocres e que
contribuem para empobrecer o imaginário
das novas gerações. Atitudes hipócritas de
alguns desses artistas, como sair, eventualmente,
sem cordas, tentam transformar em
concessão, uma obrigação que sonegaram durante
décadas, privatizando as avenidas e locupletando-
se com a venda de abadás, a segurança
embutida no preço.

Em todo o Brasil começa a retomada dos
valores dos eternos carnavais, com manifestações
mais leves, e a juventude volta o seu
olhar para a beleza das festas de outrora, mais
líricas, mais críticas e bem-humoradas. Começa
a renovação do cancioneiro carnavalesco,
a exemplo do ótimo Bailinho de Quinta,
novos festivais e as batalhas de confete,
como a que hoje faremos na Associação Atlética
da Bahia, a partir das 13 horas, homenageando
os blocos do Barão e do Jacu, que
estaria completando 50 carnavais.

Racismo, macacos e a imbecilidade - Luiz Mott

A Tarde/BA 22/02/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Chamar negro de touro, gatão, é elogio.
Chamar um negro de macaco é crime
inafiançável no Brasil. Temos presenciado
nos últimos tempos deploráveis gestos de
racismo contra negroides vips, associando-os
aos nossos parentes antropoides mais semelhantes
na escala evolutiva: duas ministras negras,
na Itália e França, foram referidas de
orangotangas por colegas do governo. Nalguns
estádios da Europa, torcedores jogam banana
ou imitam macacos para insultar jogadores
negros. Há poucos dias, no Peru, um estádio
inteiro simulou o “guincho” de macaco quando
o futebolista afro-brasileiro de cabelo rastafári
pegava a bola. Racismo deprimente agravado
por serem os peruanos predominantemente
indígenas.

Essa associação de negros a macacos tem
como substrato ideológico a desumanização
dos cidadãos de pele escura, cabelos crespos e
narizes mais platirrínios do que os brancos e
amarelos. Como se os pretos não pertencessem
à nossa mesma classe homo sapiens, preconceituosamente
indissociáveis da desengonçada
natureza simiesca. Como diz racista provérbio
espanhol, “una mona, aún de seda, mona es y
mona se queda": uma macaca, ainda que vestida
de seda, é e continua sendo macaca.

Às vezes, contudo, somos obrigados a reconhecer
que esses nossos parentes próximos
pouco abaixo na escala evolutiva dão-nos sábias
lições de vida: “cada macaco no seu galho”,
“macaco velho não mete a mão embotija”. São,
contudo, desastrados: “comomacaco numa loja
de cristal”... ou mal sucedidos nalgum mister,
“fulano pagou um mico...”

Inédito episódio na história da Bahia retrata
essa associação simiesca: em 1645, “o
mulato Mateus Soares, pequeno de corpo,
acusado à Inquisição de ser sodomita,
acompanhava seu senhor em comédias fazendo
figura de bugio e dançando com um
pote na cabeça”. Creio ser essa primeira
referência a uma representação teatral nas
ruas da velha Salvador. Lastimavelmente, o
jovem mestiço afrodescendente prestando-
se à perpetuação do mesmo estereótipo
desumanizante da raça etíope.

Do racismo ao contrarracismo - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA 22/02/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da Academia de Letras da
Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Ninguém de bom
senso pode negar a
existência de racismo
no Brasil. Não vamos,
porém, acirrar tão
infame problema
praticando o racismo
ao contrário

Em meu último artigo, adverti que não gostava de escrever sobre racismo pelas paixões que o tema provoca, mas destaquei a “imensa dívida” que a sociedade brasileira tinha para coma população negra. Era uma referência ao legado desastroso da escravidão.

Dois artigos publicados em A TARDE me levaram a tratar do problema, ambos afirmando que pessoas brancas estavam dificultando o acesso aos shoppings de “jovens negros da periferia”, nos chamados “rolezinhos”. Rebati tais acusações, qualificando- as de “racismo ao contrário”. Entre o verdadeiro dilúvio de manifestações que meu artigo provocou, apenas duas eram contrárias, uma assinada por um cidadão que se qualificou com o pomposo título de “superintendente de Direitos Humanos da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos da Bahia”.


Não vou aqui evocar minha biografia jornalística, marcada pelo combate a toda forma de opressão e discriminação racial, o que me levou, como autêntico gladiador da pena, a travar numerosas polêmicas. Em todas, jamais pedi condescendência aos adversários, mas apenas honestidade intelectual. Que jamais distorcessem minhas ideias para obter vantagens na argumentação. Pois bem: foi isto que precisamente fez o superintendente citado.

Disse ele ter eu afirmado que “quem combate o racismo faz racismo ao contrário”. Jamais escrevi tal absurdo. O que escrevi, sim, foi que “precisamos combater no Brasil o pensamento que discrimina a pretexto de combater a discriminação”. Isto está claro diante da acusação que os articulistas mencionados lançaram a supostas “pessoas brancas”, que estariam exibindo “a face perversa” da exclusão ao combater a presença de “jovens negros” nos shoppings.


Reafirmo que tais afirmações delirantes são racistas, pois contribuem para criar antagonismos conflituosos na sociedade. “Rolezinhos” são integrados não apenas por negros, mas por pessoas de raças variadas. Depois, são concentrações de massa que, como tal, podem provocar distúrbios onde quer que se instalem. Gostaria de saber dos acusadores de que forma seria possível, diante de uma invasão dos shoppings, pinçar no meio da turba os “jovens pacíficos” dos arruaceiros violentos que, nos próprios bailes “funks” e nos pagodes da periferia, distribuem pancadaria a torto e a direito e exigem presença policial.


Contenham seus delírios, temerários acusadores! O que desejam agora? Levar o clima de violência e intranquilidade social para dentro dos únicos espaços no país em que os velhos, os moços e as famílias podem andar com relativa segurança, em vez de ficarem expostos ao crime nas proibitivas ruas do Brasil de hoje, conflagradas pela guerra civil urbana que mata com rojão na cabeça ou ainda por balas perdidas e achadas? Só no último fim de semana em Salvador quatro crianças foram assassinadas. Em Guarulhos, um casal foi morto dentro de uma igreja, durante um batizado! No Rio, os traficantes sustentados pelos ricos drogados do Leblon fuzilaram a Rocinha e fecharam o túnel Zuzu Angel com pneus incendiados. É esse clima que desejam ver instalados nos shoppings invadidos?


Ninguém de bom senso pode negar a existência de racismo no Brasil, a deplorável prática iniciada quando os colonizadores começaram a predar não os negros, mas os índios. É prática tão antiga quanto a maldade do homem e uma das suas expressões mais danosas. Já li que Jesus Cristo era mulato de cabelos crespos, tipo comum na Palestina bíblica, mas a iconografia ocidental só o mostra como um belo homem louro de olhos azuis. Não vamos, porém, acirrar tão infame problema praticando o racismo ao contrário. Vamos, sim, praticar o contrarracismo.

A Bahia não é a Roma Negra, nem somos afrodescendentes ou eurodescendentes, expressões importadas que ofendem nossa brasilidade. Somos apenas cidadãos brasileiros, em sua maioria mestiços. Valeria terminar lembrando que a lei Afonso Arinos, de 1951, proíbe manifestações racistas partidas de brancos ou negros em qualquer espaço em que elas se manifestem. Inclusive nos shoppings, onde o que prevalece não é a cor da pele, mas o poder dos bolsos.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Bahia de todos os nós - Antonio Risério

A Tarde/BA 15/02/2014


Antonio Risério
Escritor
ariserio@terra.com.br

Quando ouço
a conversa fiada de
que a Bahia é “de
todos nós”, penso
comigo mesmo:
sim, é de todos nós,
mas continua sendo
mais de alguns
do que de outros

A realidade baiana nos entristece a
cada passo. O índice de desemprego
em Salvador é o maior entre
as capitais brasileiras. E os números do
Bolsa Família, na Bahia, são escandalosos.
Para o governo estadual, um atestado
de incompetência. Para os baianos, sinônimo
de atraso e motivo de vergonha.
Enquanto Dilma Rousseff e seus colegas
fazem farras com dinheiro público dentro
e fora do país, 43% da população
baiana estão cadastrados no famigerado
programa. Nada menos que 1.8 milhão de
famílias, somando cerca de 6.5 milhões
de pessoas. É gente demais na miséria.
Gente demais de pires na mão. E o número
aumenta a cada ano, sem que nossos
governantes demonstrem disposição
e capacidade para enfrentar a questão.

Entrevistados, alguns ilustres economistas
locais fazem
comentários sobre
esse quadro de subcidadania.
E, quando
não se limitam a
emitir banalidades,
eles apenas deliram.
Um deles, por exemplo,
diz que as coisas
vão mudar nas próximas
gerações,
quando os filhos dos
beneficiários atuais
do Bolsa Família,
tendo acesso à educação,
poderão ingressar
galhardamente
no mercado
de trabalho. Quem diz uma baboseira
dessas quer nos enganar – ou se autoenganar.
Acesso à educação? Qual? Só se for
à mesma que tiveram os preparadíssimos
sindicalistas que hoje mandam e
desmandam no governo local.

Porque é o seguinte. No pé em que as
coisas estão, nenhum desses filhos das
famílias penduradas no programa vai ter
educação (qualificação) para ingressar
em boas condições no mercado de trabalho.
Pelo simples motivo de que nosso
ensino público – em todo o estado, mas,
principalmente, nas regiões mais pobres
– não prepara ninguém para nada. É um
ensino de merda. Afora isso, minha vontade
é dizer o seguinte ao doutor que deu
a declaração: pegue os 60 ou 70 reais do
Bolsa Família e tente matricular sua filha
num bom curso de informática ou de
inglês, por exemplo. Não vamos pensar
que peneira foi feita para tapar o sol. Pelo
andar da carruagem, os pobres e miseráveis
da Bahia se encontramsem perspectiva
alguma. Estão aprisionados no
círculo de ferro da subcidadania, da existência
infra-humana.

Os que fazem parte do governo seguem
repetindo: é preciso capacitar as pessoas,
qualificar a mão de obra. Se é assim, por
que não fazem isso? Por que não metem
a mão na massa e apostam fundo na
inteligência popular? Por que não investem
de fato nas pessoas? Porque, até prova
em contrário, falam da boca para fora.
Mais fazem o teatro da inclusão do que
realmente a promovem. E não adianta
ficar fazendo campanha publicitária para
dizer o contrário. É propaganda enganosa.
Quando ouço a conversa fiada de
que a Bahia é “de todos nós”, penso comigo
mesmo: sim, é de todos nós, mas
continua sendo mais de alguns do que de
outros.

Nossos governantes são engraçados. E
parece que pensam que somos todos cegos
ou burros. Diante dos números do
Bolsa Família na Bahia, a titular de um
desses ministérios inúteis que hoje enfeitam
o governo se justifica dizendo que
nossos problemas são antigos. Quando
questionam Sérgio
Cabral sobre as enchentes
devastando
casas e vidas no Rio,
ele diz a mesma coisa.
Aqui na Bahia, o
papo não é outro.
Ora, sejamos sérios:
quem está no governo
há dez anos, não
pode mais usar essa
desculpa esfarrapada.
Se não fez o que
deveria ter feito (e
teve tempo de sobra
para fazer), não jogue
a culpa no passado,
em seus antecessores
no posto, que isso é indecente.
Se Wagner tem hoje alguma “herança
maldita”, a herança é dele mesmo.

E desconfio que, se for pelo governo, a
pobreza vai se perpetuar. Outro dia, o
economista Eduardo Giannetti foi ao
grão da questão. Disse que vai ser muito
difícil derrotar Dilma Rousseff eleitoralmente,
pelo simples fato de que ela está
montada em 40 milhões de contracheques.
A observação vale para a Bahia. A
pobreza interessa a quem está no governo
e quer se manter no poder, pelo
que significa de desinformação e dependência.
Hoje, o curral eleitoral não é mais
geográfico. Pulverizou-se, preso agora às
rédeas ou coleiras da mesada assistencialista.

Escrita de libertação - Jose Castello

 O Globo - 15/02/2014


BERNARDO
KUCINSKI NOS
MOSTRA OS
INTERIORES DA
DITADURA. NÃO
SÓ O GRANDE
SOFRIMENTO, MAS
AS PEQUENAS
DORES QUE QUASE
NINGUÉM VIU


A literatura como um exercício de libertação:
eis como a pratica o escritor
Bernardo Kucinski, de quem
a Cosac Naify lança a coletânea de
contos “Você vai voltar pra mim”,
além de relançar o premiado romance
“K”. Sua escrita é um exorcismo dos dolorosos
anos da ditadura militar originada pelo golpe
de 1964. Não é, porém — como se pode temer
em um primeiro instante —, uma “literatura engajada”,
ou panfletária. Kucinski não escreve panfletos,
mas ficção da mais alta qualidade. Nela incluída
improváveis histórias pessoais, pequenos
sentimentos, dores secretas e toda a miudeza
atroz de aflições que definem o humano.

É uma escrita objetiva, seca, substantiva, como
observamos no conto “O garoto de Liverpool”, história
de um rapaz “magro, de rosto chupado e miúdo,
do qual só se viam o nariz, a boca e parte dos
olhos”, que vem para o Brasil fazer uma reportagem
sobre os índios da Amazônia e a construção
da Transamazônica e acaba preso, confundido
com um guerrilheiro. Depois da tortura, é jogado
em um buraco de quatro metros onde passa longos
dias de horror. Só é salvo porque aparece um
oficial que morou na Inglaterra, lhe dá ouvidos e
consegue, assim, entendendo sua verdadeira história,
libertá-lo. A história é feita não só de grandes
atos, mas também de pequenos mal-entendidos.
A ação do acaso — a chegada inesperada do militar
— tem, tantas vezes, a mesma força que a mais
terrível barbaridade.

Kucinski nos mostra, em seus relatos, os interiores
da ditadura. Não só o grande sofrimento —
repressão, brutalidade, torturas, ódio — mas as
pequenas dores que quase ninguém viu. É o caso
do conto “A suspeita” no qual um grupo de amigos
discute, tempos depois, sua responsabilidade
ou não sobre a loucura de um homem considerado,
por engano, um informante da repressão.
Admitem o erro, carregam agora o peso de
um homem ter enlouquecido por causa deles.
Mas, para se salvarem, se apegam a uma explicação
racional: “É como diz o filósofo: o homem e
suas circunstâncias. O sorriso era do homem, o
DNA da loucura também já estava nele e as circunstâncias
foram da ditadura. E ponto final”. Kucinscki
não passa a mão nas cabeças, tampouco
nas consciências, daqueles que tiveram a coragem
de se engajar na luta clandestina contra o regime
ditatorial. Reconhece sua coragem e a grandeza de
seu esforço, mas os vê, antes de tudo, como homens
comuns, que cometem
enganos e deslizes também.

O livro traz alguns retratos
preciosos como em “Um homem
muito alto”, a história de
um bravo militante que não
precisou de delatores: sua própria
altura incomum o denunciou.
Pernalonga, King Kong,
Golias — teve muitos apelidos,
até passar a ser chamado de Jamanta,
codinome dado pelos
serviços secretos. Escreve Kucinski:
“Antes mesmo de cair
prisioneiro da repressão, tornou-
se prisioneiro do próprio
corpo”. No fim, ao sair para comprar cigarros, é
preso em um subúrbio do Rio de Janeiro. Condenado
a dezessete anos de cadeia, uma das penas
mais longas para casos como o dele. “Uma pena
tão descomunal quanto sua altura”, resume, sem
se negar uma dose de humor.

Alguns contos, como “Terapia de família”, passam
apenas nas bordas da história política. Depois da
Lei da Anistia, um pai anistiado é tratado como o
centro da família, enquanto o filho passa seus dias
trancado no quarto, em fuga do mundo. A família —
esgotada — decide submeter-se a uma terapia familiar.
Surge então o ressentimento
do rapaz, abatido porque a mãe só
dava atenção ao pai herói. Durante
os seis anos de cadeia, embora
enviasse cartas para a mulher e
para a filha, só lhe destinou o silêncio.
As sessões de terapia em
família se revezam com sessões
individuais. O rapaz diz que não
procura emprego porque precisa
“arrumar o quarto antes”. Mas, ao
terapeuta, admite: “A arrumação
do quarto é uma desculpa; eu passo
as vinte e quatro horas do dia
pensando em maneiras de destruir
meu pai”. A terapia fracassa, o
impasse afetivo — efeito secreto da ditadura — derrota
a família.

Outras vezes não, como constatamos na leitura de
“Pais e filhos”. Quando soube que o filho Augusto é
suspeito de ter participado de um atentado, o dr.
Nicolau Junqueira, médico-cirurgião, fica possesso.
Depois de muito buscá-lo, encontra o filho escondido
na casa de uma tia. O pai é um defensor
intransigente do regime militar. Um dia, o rapaz é
intimado a entrar para o comando da organização
clandestina a que pertence. Prefere fugir para o
Chile. Só um ano depois, através da mãe, entrega
ao pai seu endereço em Santiago. Os pais viajam
para visitá-lo. O encontro é tenso, parece desastroso,
até que o doutor convida o rapaz para uma caminhada
a dois pela cidade. O fecho do conto é especialmente
forte: “Já na rua, o velho médico colocou
o braço em torno do ombro do filho, e assim
caminharam, lado a lado, abraçados, por muitos e
muitos quarteirões”. Sem trocar uma única palavra.
O afeto mais profundo e difícil, muitas vezes,
não encontra palavras que a ele correspondam. Só
se diz em silêncio. Sentimentos paradoxais, como
a ironia, o desconcerto, o amor e o humor, Kucinski
nos mostra, também fazem parte da história
da ditadura militar.

O estilo intimista — embora escrito em um
tenso realismo — dá o tom também, como seus
leitores já sabem, do premiado romance “K.”, que
agora ressurge em nova edição. Inspirado no desaparecimento,
40 anos atrás, da irmã de Kucinski,
Ana Rosa, e de seu marido Wilson, o romance
guarda um forte caráter autobiográfico
que, no entanto, não o encarcera no mero testemunho.
Há uma recriação corajosa da história
pessoal, o que reafirma a posição da literatura
como lugar não só de transformação, mas de libertação.
Embora sua identificação com as vítimas
da ditadura seja indisfarçável, Kucinski faz,
todo o tempo, um esforço (bem-sucedido) para
ampliar seu olhar, colocando-os assim em seu
devido tempo e circunstâncias, arrancando-os
da simples mitologia política e devolvendo-os ao
terreno do humano. O que pode parecer que os
apequena, na verdade os engrandece. A História,
mesmo a mais heroica, é feita por homens frágeis
e cheios de contradições e isso só reafirma o valor
de sua luta.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Mais um passo para aperfeiçoar a democracia

O Globo 14/02/2014

Colunistas do GLOBO analisam impacto da cassação de Donadon pelo voto aberto e apontam necessidade de novos avanços




sábado, 8 de fevereiro de 2014

O desviante - José Castello

O Globo 08/02/2014

HISTÓRIAS E BREVES NOTAS - GONÇALO M. TAVARES

O Globo 08/02/2014

Sergipe e Bahia - Luiz Mott

A Tärde/BA 08/02/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

A história oficial de Sergipe começa
em 1591, quando luso-baianos fundam
a cidade de São Cristóvão no
estuário do Vaza-barris, após sangrentas batalhas
contra os tupinambás. Como já existia
no recôncavo da Bahia Sergipe do Conde,
chamaram a novel conquista de Sergipe o
Novo, depois, Sergipe del Rey. Muitos dos
soldados baianos que participaram desta
conquista obtiveram grandes sesmarias,
comprometendo-se a povoá-las. Também
alguns delinquentes sentenciados pelo visitador
do Santo Oficio em Salvador tiveramSergipe
como lugar de degredo. Ordens
religiosas originalmente instaladas na Bahia
fundaram missões e novos conventos
em São Cristóvão, Santo Amaro das Brotas,
Tomar do Geru e outras freguesias.

Por 230 anos Sergipe foi comarca da Bahia,
e mesmo tornando-se capitania independente
em 1820, nem por isso deixou de ser considerada
e tratada como uma espécie de “quintal
da Bahia”, apodo considerado ofensivo pelos
sergipenses. Gregório de Mattos consagrou
esse estigma ao assim descrever a capital sergipense
nos finais dos seiscentos: “três dúzias
de casebres remendados, seis becos de mentrastos
entupidos, quinze soldados rotos e despidos,
doze porcos na praça bem criados, de
Sergipe del Rey, esta é a cidade...”

Já publiquei artigo sobre as seletas filhas de
senhores de engenho da vizinha comarca que
tomaram hábito no Recolhimento da Soledade
e outros conventos soteropolitanos. Destacados
sergipanos aqui brilharam e brilham nas
ciências, artes, política e negócios: José Calasans,
Thomas Cruz, Bernardino de Souza,
Mário Cabral, Geraldo Sobral, Lourival Batista,
Marcelino do Tem Postal, Selma Fraga Costa,
Paes Mendonça, Lícia Fábio, Jenner Augusto,
entre outros. Incontáveis sergipenses dedicam-
se ao comércio nos mercados de Salvador
e interior, quase todos ostentando fenótipo
típico de descendentes de puros portugueses
do Minho, do tipo “galego”, de pequena estatura,
olhos e cabelos claros.

Aracaju propagandeia ser o melhor fim
de semana da Bahia... Vale conferir!

Dinâmica saudade - Walter Queiroz Jr.

A Tarde/ BA 08/02/2014

 Walter Queiroz Jr.
Advogado, poeta, compositor, membro da
Confraria dos Saberes
waljunior44@hotmail.com

Sentimento melancólico, acorrentado ao
passado, saudade assim não me interessa,
é saudosismo. Agora, uma dinâmica saudade
que celebre e atualize acontecimentos
felizes, paramentando novas esperanças, esta
me apraz. Ninguém poderá banhar-se duas
vezes nas mesmas águas de um rio, nos lembra
o grande Heráclito, assim como novos beijos de
amor jamais serão os mesmos de outrora, mas,
certamente, poderão tornar-se saudosas carícias
no... futuro.

Não advogo, como querem alguns dos meus
detratores, uma volta aos antigos carnavais. Propugno,
sim, pela reedição dos seus valores eternos
nos carnavais atuais, onde estão ausentes a
poesia e o humor. Minha geração vestiu lindas
fantasias, chorou de dor e alegria, dançou e
cantou marchas e sambas que se (éter)nizaram
no imaginário do Brasil. De ponta a ponta, um
país vivenciando um mágico carnaval feliz.
Uma folia ritualizada, com dia e hora para
começar e acabar, onde cada minuto era precioso
e inesquecível, e se alguém quiser mesmo
saber o que significa uma saudade, pergunte a
um pierrô apaixonado pela dor de silêncio
devastador de uma quarta-feira de cinzas.

“Pobres moços”, parafraseando o grande Lupiscínio,
quando entregues à aventura vazia e,
meramente, hedonista, de um carnaval sem
alma, preferindo o conforto tedioso dos camarotes,
enquanto corações sonhadores brincam
nas ruas, sonhando ardentes paixões.

Este ano, o legendário Bloco do Jacu faria
50 anos, não tivesse sido alijado das avenidas
pela estridência eletrônica e predadora
desse modelo de carnaval. Há um projeto
da Saltur em andamento no sentido de,
juntos com a turma do Barão, coirmão de
históricos carnavais, possamos nos reunir,
filhos e netos, na grande festa, em local e
data a serem anunciadas.

No dia 22 de fevereiro, na AAB (Associação
Atlética da Bahia), faremos a terceira edição da
batalha de confete “Recordar é viver”. Em nome
da dinâmica saudade que une gerações, também
a nossa renovará seus abraços e canções,
com o privilégio depoder rememorar... um
cheiro de lança no ar!

Racismo e rolezinho - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA 08/02/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da Academia de Letras da
Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Precisamos evitar
no Brasil o exercício
do pensamento
que discrimina a
pretexto de combater
a discriminação.
Precisamos combater
o racismo
ao contrário

Tenho evitado escrever sobre racismo pela delicadeza de um tema que traduz imensas dívidas da sociedade brasileira para com a população negra. Mas dois artigos recentes sobre rolezinhos me fizeram mudar de ideia, um do meu amigo Jorge Portugal, outro do deputado petista Luiz Alberto. O primeiro vê tais manifestações como “caso de política”. Há anos, diz ele, os garotos de bairro populares, sobretudo negros, sentiam-se discriminados no “pedaço dos barões” (!), incluindo shoppings. Hoje, resolveram ocupar tais espaços “com a linguagem de seus corpos jovens e mestiços”.

Já para o petista Luiz Alberto, radical e contundente, discriminações em shoppings paulistas contra “jovens da periferia, na maioria negros” (sic), “num lugar onde não são esperados”, causariam pânico. A denúncia acusa “uma reação das pessoas brancas” (!), incomodadas como donas do “espaço do poder”, revelando “a face perversa” da exclusão orquestrada por brancos ricos contra negros pobres. Só faltou dizer que a Ku Klux Klan invadiu shoppings brasileiros para expulsar negros, num texto agressivo, cuja ideologia rançosa expõe objetivo eleitoreiro.

Não é a cor da pele que define presenças em shoppings: é o seletivo e excludente consumismo capitalista. Empresários não vacilam diante de lucros: o megaempresário Odebrecht está construindo em Cuba um porto para o comunista Fidel, com o farto dinheiro enviado pelo PT de Luiz Alberto. Não me consta que Pelé tenha sido barrado em um único shopping do mundo.

Templos do consumismo, shoppings são também centros de convivência social. À comodidade da concentração de lojas, acrescentam o prazer dos passeios em segurança. Sendo espaços limitados, grandes massas em seu interior podem intimidar fregueses, dificultar vendas e ameaçar patrimônios. Não por causa específica da presença de jovens negros: rolezinhos são formações compósitas e incluem negros, brancos, mulatos, louros, índios etc., como o próprio Brasil. Multidões em áreas fechadas podem ser ordeiras ou ficar imprevisíveis como bois em curral, doidos para arrombar a cerca ante um simples estalo. Lembremos que arruaceiros desvirtuaram as manifestações pacíficas do povo nas ruas brasileiras em 2013.

Precisamos evitar no Brasil o exercício do pensamento que discrimina a pretexto de combater a discriminação. Simplificando: precisamos combater o racismo ao contrário. Desde alguns anos, generalizou- se a absurda ideia de que usar a palavra “negro” era ofensa racial e passaram a trocá-la por “afrodescendente”. Mas os linguistas que o professor Jorge Portugal tão bem conhece lembram que existe o vocábulo “polissemia”, para explicar os conteúdos múltiplos das palavras. “Negro” pode designar não apenas a cor da pele, mas também “escuridão”, “treva” ou “dificuldade”, como ocorre quando dizemos “a situação está negra”. A eficiente repórter de TV Glória Maria já afirmou, com orgulho: “Eu não sou afrodescendente, eu sou é negra!”

Qualquer exaltação de uma raça particular é racismo. Na década de 70, quando eu chefiava o Jornal da Bahia, fui procurado pelo emérito sociólogo Thales de Azevedo, que me advertiu, ao ler que o setor de promoção do jornal realizava o concurso “A Mais Bela Mulata da Bahia”. Thales disse: “Vocês estão fomentando o racismo!”. O mestre estava certo. Hoje, no entanto, tornaram-se comuns no Brasil designações como “Dia da Beleza Negra”, da “Cultura Negra”, conjunto “Raça Negra”, há uma revista, “Raça”, dedicada apenas a negros, etc. Imaginem Jorge Portugal e o deputado Alberto se alguém andasse elogiando um conjunto “Raça Branca”!

Enfim, preocupados ambos em denunciar o rolezinho como a revolta de negros pobres contra brancos opressores, andam esquecidos de fazer o que deveriam: enaltecer o mais aplaudido negro do Brasil atual, emergente da pobreza para tornar nossa Justiça respeitada: refiro-me ao magistrado Joaquim Barbosa, que, aliás, meteu o branquelo Dirceu e outros petistas corruptos na Papuda, resgatando a dignidade nacional. Garanto a meus articulistas que o negro Joaquim Barbosa frequenta shoppings sob aplausos.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

No jogo da sucessão - Antonio Risério

 A Tarde/BA 01/02/2014

Antonio Risério
Escritor
ariserio@terra.com.br

 Bobagem sonhar
um segundo turno
entre Lídice e Costa.
A esquerda não tem
eleitorado para
colocar os dois na
reta final. Se quer
ser governadora,
Lídice tem de chegar
ao segundo turno

Tem cantora de axé music que, quando ouve a palavra “sucessão”, pensa que a gente está falando de um sucesso enorme, um sucessão. Não é para ela que escrevo. Nem para aquela outra que abriu seu show em Minas Gerais gritando “boa noite, galera! – boa noite, BO!”, achando que BO era a sigla, o apelido carinhoso da capital mineira, Belo... Orizonte. Vamos falar, portanto, não do, mas da sucessão. E sem Minas ou o bobo do Aécio na jogada. Vamos falar da eleição do próximo governador baiano.

Entre as candidaturas que contam, duas estão definidas: a do PT e a do PSB. A de Costa e a de Lídice. É o chamado “campo da esquerda”, muito embora o PT tenha soterrado há tempos sua vocação de esquerda, inclusive com a adoção desinibida dos piores métodos e das piores práticas da política oligárquica. O
compromisso maior do PT, hoje, é com o mercado e o consumo – na base de migalhas para os pobres, tesouros para os ricos. Nunca a história de um partido político brasileiro foi tão decepcionante, do extremo mais ingênuo da pureza ao extremo mais calhorda da degradação. Um partido que começou com o discurso da ética e hoje  uma empresa como outra qualquer, atolado em tudo quanto é tipo de jogo sujo.

Lídice é, portanto, a única candidata da esquerda, embora o poste de Wagner vá fazer esse teatro. Bobagem sonhar um segundo turno entre Lídice e Costa. A esquerda não temeleitorado para colocar os dois na reta final. Se quer ser governadora, Lídice tem de chegar ao segundo turno. Para chegar lá, seu adversário é o poste. Ela tem de derrotar o candidato do governador. Sabendo que Wagner, em busca do “terceiro mandato”, vai tentar abatê-la de qualquer jeito, usando as armas que estiverem ao seu alcance. Nada de jogo leve, nada de civilidade. Aqui, discurso e postura têm de ser bem claros: Lídice pode vir a ser a chamada terceira via. Mas, para isso, não pode ficar elogiando Wagner. Tem de saber distinguir, o tempo todo, entre o que ela pensa que é e a percepção social do que ela significa. Tem de demarcar com clareza que terceira via não é linha auxiliar. Ou não irá a lugar algum.

No outro campo, os nomes não estão definidos. Há quem fale que o candidato é Paulo Souto, há quem diga que é Geddel. São, ambos, candidatos realmente fortes. E, seja um ou outro o nome lançado, vai estar presente no segundo turno. O problema é que aí a porca pode torcer o rabo. Aviso que não acho impossível que a eleição ganhe caráter plebiscitário e se resolva num turno só, mas, com Souto ou Geddel, a tendência é a gente ter mais um round, o decisivo. Acontece que ainda não estou convencido de que um dos dois será o candidato. Às vezes, quando penso cá com os meus botões, acho que, na hora H, quem vai sair candidato é Neto, nosso atual prefeito. Razões para tanto não faltam.

Quando digo isso, em rodas de conversa com gente soi-disant de esquerda, todos descartam a hipótese, dizendo que Neto não vai deixar a prefeitura, não vai querer se queimar com a população de Salvador, etc. Ou seja: o raciocínio nada tem de político – é, antes, uma reação de medo diante de uma possibilidade que, para mim, é real. Não seria difícil articular um “queremismo” hoje, aqui na Bahia. Pedidos de “queremos Neto” podem partir de todos os pontos do estado. E ele pode atender ao “clamor” sem abandonar a cidade (e neutralizand sua vice, que dizem ser a pedra no sapato dele). Basta dizer que a população de Salvador já viu o que ele é capaz de fazer e que ele vai continuar fazendo, só que muito mais – mantendo sua equipe na prefeitura e, além disso, assumindo o controle da máquina estadual.

É muito fácil armar esse lance, em matéria de formulação, discurso e marketing. E Neto não vai, de modo algum, precisar se incompatibilizar com Dilma. Basta não entrar de sola na campanha do bobo do Aécio. E penso que isso é provável por dois motivos, basicamente. Em primeiro lugar, com Neto na parada, Wagner pode tirar seu postezinho da chuva. Em segundo, aí sim: as pesquisas indicam que a fatura seria liquidada no primeiro turno.


sábado, 1 de fevereiro de 2014

Poesia e alegria - José Castello

O Globo 01/02/2014

Uma poesia que dança. Uma poesia
que coloca o jogo divertido
das palavras acima do protocolo
dos significados. Uma
poesia nômade, ambulante,
que passeia por vários mundos.
Eis a poesia de Luis Turiba, de quem leio
“Qtais” (7 Letras). Antes de tudo, o império dos
sons, como em “Ser minério é coisa sério”, poema
em homenagem a Minas e aos mineiros. Antes
de qualquer coisa, a busca do novo: “caminhar
é pisar chão/ sem pisá-lo de antemão”. O
poeta é um caminhante — é uma espécie de ambulante
que avança apoiado em seu cajado. Um
poeta libertário, cujo cajado (a língua?) dele
também se desvia. “Meu cajado é libertário/ temos
quase a mesma altura/ caminhando em paralelo/
olhando o mundo às avessas”.

Avançam os dois, “plugados à lei do impulso”,
em uma grande aventura zen. Vão aos tropeções,
mas deles, em vez de tirar dores, tiram lições.
O poeta caminha contra a lógica: “A lógica
dos lógicos já não me interessa/ (...)/ Meu tempo
está no vento peso q não pesa”. Avança sem
uma bússola, parece um sonâmbulo, Turiba nos
faz ver. “Sou cego e calado e escrevo ensimesmado”,
define-se. Ainda assim, cultiva uma intensa
luz interior. Diz a si mesmo: “Não apague a luz
interna e intensifique-se”. Sem direção, resta-lhe
a própria força para construir seu caminho: “levo-
me leve em voos sem lei/ meu fio terra é madeira
de fibra/ sou andarilho”. Carrega um cajado
“alado e desconfiado” e assim privilegia a leveza,
os voos e os grandes saltos. “Um fariseu
distraído/ afável & aviolado”.

Muitas vezes ligamos a poesia ao peso, à densidade,
ao sofrimento — mas é contra essas relações
difíceis que Luis Turiba escreve. É um poeta que
escreve, antes de tudo, para se divertir. A poesia
como brincadeira, como dança sem método e
sem partitura, como improviso. Assim Turiba
brinca enquanto faz poesia, e nós, seus leitores,
nos deliciamos. Vai buscar seus materiais nos cantos
mais remotos — como em “O que é o sol?”, segundo
ele escrito “a partir de um poema oral búlgaro
do século V”. Verdade? Mentira? E isso importa?
Interessa sim a distância que o poeta toma para desenrolar
seus versos. Para erguer-se em seu tapete
voador. Faz uma poesia que voa, mas que é também
uma poesia andante, que rasteja, que cheira o chão
e suas brechas. Seja como for, escreve uma poesia
que canta. Importante definir o
que faz? Não parece. “Ainda não
aprendi teu nome/ Mas já sei
(quase) tudo sobre”, ele diz, descortinando
uma resposta.

Busca um verso “arrítmico”, aos
soluços, aos impulsos. “Quisera
fazer um verso/ com a sublime
arritmia do amor/ um verso míssil/
neurastênico e febril/ ar do
dia anterior à criação do universo”.
Destino dos poetas, não só de
Turiba: estar às voltas com as origens.
“Um verso de trivela/ transverso e subversivo”,
prossegue em seu sonho. “Um verso de fogo e batom/
histórico, histérico e erudito”. Origem (fogo) e
beleza (batom) se misturam para anunciar uma estratégia
que o traz de muito longe e leva para mais
distante ainda. Matéria da poesia: o tempo, que nas
mãos de Turiba se converte em um material maleável
e perigosamente desdobrável.

Uma poesia na qual as identidades se misturam
e é assim que se aproximam, como está dito:
“quem manda em mim/ sou ela”. Poesia da mistura,
mas também da confluência e do diálogo feliz
entre as palavras. Nos versos elas encontram seu
lugar de honra, encontram provavelmente seu
berço. Por exemplo, quando Turiba
brinca assim: “caramba/ carambolas/
sou de jambo/ não
me amora”. Uma escrita contra o
senso, uma escrita de contrassensos:
“agnóstico/ benzo-me
ao olhar o Cristo Redentor”. Exatamente
como somos, seres de
contradição e de desmentidos,
seres instáveis, de pequenas demências,
dos quais a poesia é a
língua mais exemplar.

Há nela um gosto não só pelos
sons, mas pela desafinação. O poeta relata: “Mas
cuíca também falha/ Em plena Sapucaí/ Quebra a
vara, rompe o couro/ Desarma o circo e o estilo”. A
desafinação como uma nova maneira de os sons
se encontrarem e se desencontrarem. Como uma
outra arritmia, que perde o prumo, mas não deixa
de avançar. O poeta, precavido, multiplica seus
instrumentos. “Por isso, digo em sigilo:/ Tenho
duas cuícas/ Florença e Nikita”. Iguais, mas diferentes
— e é dessa diferença que vem a desafinação
inevitável e original. “Enquanto Florença
aflora/ Nikita quica/ E assim floreiam o mundo/
Desafinadas as cuícas”. Também a desarmonia
tem seu valor. Também o desajuste é promotor
de beleza, o poeta nos leva a ver. O mundo não é
uma orquestra afinada e impecável; ao contrário,
é um grande sopro de desencontros, e muita beleza
sai disso.

Um poeta, portanto, que desconfia das excessivas
habilidades. E que privilegia as diferenças.
Por exemplo, a estranheza que ele encontra nas
girafas. “ouvi dizer que elas dormem/ dez minutos
a cada hora/ também pudera, natureza mátria/
com aqueles pescoços quilométricos/ (que
um dia hei de beijá-los)/ um cochilo faz descansá-
los”. Girafas: exceções em um mundo de exceções,
e eis aí a origem da poesia. Nesses desencontros,
nesses desalinhamentos. Em um poema
como “Língua à brasileira”, Turiba evoca Caetano
Veloso, José Saramago, Guimarães Rosa, os irmãos
Campos, tornando difícil que o leitor vislumbre
uma ascendência nítida para sua poética.
Poeta da mistura, Turiba louva seus vários caminhos,
que volta a percorrer como um ermitão
em busca do próprio nascimento.

Aprecia o indecifrável, o vago, aquilo que causa
medo — tudo que os poetas de gabinete veriam
como obstáculo e atrito, ele enxerga como impulso
e leveza. Sabe que “dos signos, a linguagem é a
mais subversiva”. Por isso não se interessa em organizar
o desorganizado, ou em hierarquizar o
que não tem posição fixa. Não: Turiba é um poeta
em que a alegria de escrever (viver) serve de combustível
primeiro. Escreve “por escrever”, e por isso
é tão dono de sua escrita, ainda que ela lhe fuja a
cada verso, ainda que lhe dê rasteiras e subverta
sua própria palavra. As palavras se impõem, e Luis
Turiba sabe ouvi-las. Vê Exu (perigo, mas energia)
“até nas lesmas/ do mago Manoel de Barros”. Exu,
anjo das manhas, em torno de quem o poeta se
contorce para escrever.