Opinião: O Globo
Um dos gêneros mais nobres da literatura é a biografia. Antes da era
dos documentários, era a única maneira de se conhecer com alguma
profundidade a vida dos grandes homens. Assim, lemos até hoje as “Vidas
paralelas” em que Plutarco pôs lado a lado personalidades da Grécia e da
Roma antigas. Pouca coisa, na literatura inglesa, é tão sedutora quanto
a vida de Samuel Johnson escrita por Boswell. Escritores franceses
modernos, como André Maurois, fizeram fama e carreira escrevendo uma
grande biografia atrás da outra — de Balzac, de Victor Hugo, de
Chateaubriand. Num outro plano, para o mundo moderno, foi importante
conhecer histórias terríveis como a de Hitler, a de Stalin, a de Mao
Tse-tung, para poder avaliar os falsos caminhos seguidos pelas mentes
autoritárias.
Nada disso seria possível no Brasil de hoje, a
julgar pelos obstáculos legais que se criaram para quem tenha a
pretensão de biografar alguém.
A Constituição brasileira garante a
liberdade de expressão. Mas o Código Civil, em seu artigo 20, que
pretende proteger a “imagem” de cada indivíduo, abre uma brecha para
coisas que são o mais puro retrato de uma mentalidade autoritária.
Também
há, nisso, interesses comerciais — como os de parentes de pessoas
famosas que pretendem ganhar dinheiro administrando esse tipo de
herança. Assim passaram por verdadeiros purgatórios os que quiseram
escrever a vida de um Garrincha, ou de um Guimarães Rosa.
É
diferente em países desenvolvidos como os Estados Unidos. Ali, onde as
biografias ocupam espaço importante nas estantes particulares ou das
livrarias, existe a chamada “biografia autorizada”. Mas isto não
significa que esteja vedado o caminho para outras biografias. Sobretudo
no caso de pessoas mortas, sequer existe o conceito de “difamação” que
aqui é brandido por qualquer advogado desejoso de satisfazer o seu
cliente.
No Brasil, o terreno da biografia tornou-se campo minado.
E, por causa disso, não existe, por exemplo, biografia competente de
uma figura como Mário de Andrade. Familiares de Manuel Bandeira, de
Cecilia Meireles, de Guimarães Rosa criam outras tantas fortalezas em
torno do que consideram ser de sua propriedade.
Roberto Carlos
chegou ao ponto, recentemente, de estender essa postura à própria
história da Jovem Guarda, de que ele evidentemente faz parte.
Um
projeto de lei destinado a consertar esses abusos passou incólume pela
Comissão de Constituição de Justiça da Câmara e já estava a caminho do
Senado quando foi barrado por um recurso do deputado Marcos Rogério
(PDT-RO), determinando que o texto seja antes debatido no plenário da
Câmara. Sua argumentação: biografias podem prejudicar políticos em
campanha. É o que basta para mostrar como, nesse assunto, fomos nos
afastando da essência do problema
| Outra opinião |
Cheque em branco - MARCO ANTÔNIO CAMPOS
Alguém cogita usar um apartamento para alugar, sem dar qualquer
quantia em dinheiro ao proprietário e sem pedir a ele qualquer
autorização? Será razoável que se utilize a obra musical ou literária de
um autor, sem a autorização dele, para ganhar dinheiro, por exemplo,
incluindo-a em propagandas comerciais? Parece lógico que se possa
utilizar o nome de alguém como se estivesse apoiando determinado
empreendimento comercial quando esta pessoa jamais autorizou a
utilização ou nada está recebendo por isto?
Nestes exemplos de
utilização desautorizada de bens juridicamente protegidos, tais como a
propriedade, o direito autoral e o nome, ficam claras a impossibilidade e
a completa falta de razoabilidade destas ideias. Trata-se exatamente da
mesma questão com relação à imagem (outro bem jurídico protegido) e às
chamadas biografias não autorizadas.
A questão vem sendo colocada
como uma discussão sobre a liberdade de expressão. Gostaria de
respeitosamente discordar. Não me parece que seja este o ponto central
da discussão. O foco, em minha opinião, é a necessidade ou não de
autorização da pessoa biografada.
Ou seja: tem lógica escrever uma
biografia sobre uma pessoa famosa (que levou anos de esforço e talento
pessoal para construir seu nome profissional ou artístico), levar este
livro para ser editado por uma empresa comercial e junto com esta
empresa ganhar o máximo de dinheiro possível com este projeto, mas não
cogitar a necessidade de pedir autorização para a pessoa enfocada —
personagem central — para escrevê-lo e/ou comercializá-lo?
E a
publicação de uma biografia é exatamente isto: uma exploração comercial
da imagem de alguém. A liberdade de expressão pressupõe, se renova e se
reforça, em qualquer circunstância, respeito aos direitos dos outros. Em
nada favorece a liberdade de expressão o sacrifício injustificado do
direito à imagem das pessoas.
Não altera este quadro o argumento
de que a necessidade de autorização pode deixar fora de mercado fatos
históricos do país ou relevantes para o conhecimento da sociedade. Que
tais publicações sejam feitas sob modalidade não comercial, pelo
jornalismo diário ou semanal, ou em livros de distribuição gratuita,
onde não é necessária a autorização.
Aos que defendem a mudança da
lei para retirar a necessidade de autorização do biografado, apenas
lembro que este “cheque em branco” para escrever estará sendo passado
não somente aos ótimos escritores que defendem as biografias não
autorizadas, mas a todos os piores caçadores de fofocas de plantão ou a
meros escribas interessados em lucros fáceis com a história dos outros.
Trata-se apenas de minha opinião sobre este tema. A democracia é feita e se fortalece da convivência entre opiniões diferentes.
Marco Antônio Campos é advogado