domingo, 31 de março de 2013

Tudo a que tem direito - KENNETH SERBIN

O Estado de S. Paulo - 31/03/2013

Com a bandeira do casamento igualitário, gays buscam apenas um senso de pertencimento na comunidade maior

As históricas audiências da Suprema Corte dos Estados Unidos na semana passada sobre duas leis que barram direitos ao casamento gay revelaram o quão rápida e profundamente essa questão entrou no tecido da vida americana.

Como disse o juiz Samuel Alito, porém, a ideia de casamento gay “é mais recente do que telefones celulares e a internet”.

Na terça e na quarta, a Corte ouviu argumentos de advogados com respeito à lei federal de 1996 (a Lei de Defesa do Casamento) negando benefícios a casais do mesmo sexo casados de acordo com leis estaduais e o plebiscito de 2008 na Califórnia emendando a Constituição estadual para definir casamento como entre um homem e uma mulher, medida esta derrubada por um tribunal federal de recursos.

Curiosamente, a referência de Alito a duas das invenções que estão redefinindo as relações interpessoais no século 21 oferece também um parâmetro para as tendências históricas por trás do movimento a favor do casamento gay.

O individualismo extremo e o isolamento físico criados pelo uso de celulares e da internet são as mesmas forças motrizes poderosas que impelem os direitos gays.

Os direitos individuais, assim como os direitos humanos, ganharam força com a Revolução Francesa e, em particular, a Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos. “Tomamos essas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que eles são dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre esses estão Vida, Liberdade, e a busca da Felicidade”, escreveu Thomas Jefferson na Declaração.

Esses ideais trouxeram grandes avanços sociais para os Estados Unidos, como a emancipação dos escravos em 1863 e, um século depois, a concessão definitiva de plenos direitos civis aos descendentes de escravos graças ao movimento não violento forjado por Martin Luther King Jr.

Esses ideais – em particular a “busca da Felicidade” – também produziram a cultura de consumo em que a ênfase no “direito” a produtos e serviços excelentes substituiu, em grande medida, a cidadania e a participação democrática que caracterizaram a maior parte da vida americana nos séculos 19 e 20. Os americanos já não veem a si e a seus compatriotas principalmente como “cidadãos”, mas como “consumidores”.

O ideal de igualdade inspirou uma parcela crescente da população americana a redescobrir noções de liberdade e direitos civis na forma domovimento pelo casamento gay.

Numa pesquisa USA Today/Gallup de novembro de 2012, 32% dos entrevistados citaram“ direitos iguais/todos devem ter as mesmas liberdades” como sua razão para apoiar o direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo. A mesma porcentagem também apontou “escolha pessoal” e a importância de amor e felicidade,em oposição à orientação sexual, como determinantes de seu apoio ao casamento gay.

O preconceito contra gays e a negação de direitos ao casamento capturaram o imaginário político da juventude americana de uma maneira não muito diferente do apoio de ativistas a LutherKing e aos direitos civis nos anos 1960. Na faixa de 18 a 29 anos, 73% dos entrevistados na pesquisa apoiaram a validade legal do casamento gay, enquanto entre as pessoas com 65 anos ou mais somente 39% expressaram esse apoio.

A controvérsia em torno do movimento por direitos gays talvez possa reavivar noções de cidadania e participação. Entretanto, a Suprema Corte, que deve decidir sobre as duas leis no final de junho, indicou que, embora possa perfeitamente se mostrar favorável aos direitos gays, provavelmente não produzirá uma aprovação abrangente do casamento gay.

Esse é um território muito novo tanto para o tribunal como para a nação, como os comentários do juiz Alito sugeriram. Alguns juízes expressaram dúvidas até sobre se os dois casos deviam ter sido levados ao tribunal superior.

A instituição do casamento heterossexual cristão existiu por 2 mil anos.Ninguém pode prever as consequências de longo prazo de legalizar o casamento gay para a nação inteira. (Nove Estados reconhecem o casamento gay, enquanto trinta têm emendas constitucionais proibindo-o).

Nessa linha,o juiz Antonin Scalia questionou se existiam dados suficientes para demonstrar que filhos não são afetados adversamente quando criados por casais do mesmo sexo. Aliás, adversários do casamento gay têm enfatizado que o casamento heterossexual oferece um ambiente melhor para criar filhos psicologicamente saudáveis. Eles defendem o casamento tradicional, de homem e mulher, como um alicerce fundamental da sociedade americana.

Mas a questão do juiz Scalia opera nos dois sentidos.Logicamente falando, se a falta de evidências( de longo prazo) não permite estabelecer a ausência de danos a filhos de casamentos do mesmo sexo, ela não pode provar tampouco que há danos.

A Suprema Corte se preocupa principalmente com a interpretação da lei e da Constituição. Ela não faz leis, embora conservadores nas últimas décadas tenham acusado o sistema de tribunais federais “ativista” de usurpar os deveres de elaboração de leis do Congresso.

O direito de casar não seria uma panaceia para a comunidade gay – assim como não foi para heterossexuais. Aliás, metade dos casamentos heterossexuais americanos termina em divórcio,e muitos casamentos são assolados por violência conjugal e outros problemas sérios.

Alguns gays – talvez maioria até – nem estarão interessados em casar. Como observou uma professora de Direito lésbica, casar é apenas uma maneira de pessoas gays ganharem um senso de pertencimento na comunidade maior.

Assim, é provável que a Suprema Corte queira decidir o mínimo possível e, como assinalaram alguns comentaristas, deixar a sociedade continuar a elaborar as questões de casamento e criação de filhos.

À SupremaCorte cabe defender a igualdade e o direito à felicidade. Seja qual for a sua decisão, ela pode dar à nação uma lição importante de civismo e tolerância.

Mas ela seguramente não está prestes a começar a definir o que é felicidade.


 /TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

KENNETH SERBIN É CHEFE DO DEPARTAMENTO DE
HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SAN DIEGO E
AUTOR DE PADRES, CELIBATO E CONFLITO SOCIAL:
UMA HISTÓRIA DA IGREJA CATÓLICA NO
BRASIL (COMPANHIA DAS LETRAS)

Índio de museu - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

 O Estado de S.Paulo - 31/03/2013

O conflito na ‘Aldeia do Maracanã’, no Rio, pôs em questão o nativismo brasileiro, criação do homem branco em cima de uma memória fantasiosa de Ceci e Peri

O desencontro entre os índios da chamada “aldeia do Maracanã” e o governo do Rio de Janeiro, no litígio pelo edifício abandonado do antigo Museu do Índio, indica uma nova característica das populações indígenas que sobreviveram aos cinco séculos de sua vitimização genocida. A muitos parecerá estranho que o grupo de 22 índios, oriundos de 17 diferentes grupos étnicos, constituam uma aldeia indígena verdadeira,como as conhecidas da maioria, depois de décadas de reportagens televisivas sobre índios do Brasil. Todos nós sabemos o que é uma aldeia de índios, mas não sabíamos que essa ocupação de um velho casarão também o era.

Este índio de agora, não é apenas o índio biológico e étnico que povoa as páginas de livros de história. É o índio cultural e político, situado no marco da modernidade, uma espécie de índio do futuro e não apenas índio do passado. Embora de carne e osso, é em boa medida um índio imaginário, nem por isso menos real e menos legítimo.Um índio cujas danças misturam movimentos corporais de tradições indígenas e não indígenas, com pinturas de corpo que são marcas tribais, com telefones celulares e câmeras fotográficas, que são adornos tribais de branco.

Aqueles índios formam pouco mais do que um albergue multiétnico, em casarão abandonado do século 19, dotado, no entanto, de uma função evocativa e identitária que não pode ser ignorada.Ainda que seja de dificílima compreensão porque foge da “receita” do que o índio “deve ser”. Procuram enquadrar-se na concepção estereotipada que do índio tem o branco, na verdade o índio genérico e sem identidade própria. Índio de museu. Porque é esse índio de ficção que tem obtido reconhecimento constitucional e legal do Estado brasileiro. Sem render-se a ele,o índio de verdade,não tem como reivindicar direitos. As populações de diferentes grupos humanos, quando deslocadas espacial e historicamente, se recriam a partir das condições que encontram no cenário de sua adversidade. O nosso imigrante italiano se reinventou italiano no Brasil. Era outro italiano, sendo o mesmo. É no marco de sua uniformidade fictícia, a de “índio”, que os índios podem assegurar-se a proteção legal que lhes permite lutar por sua diferença contra o índio genérico do branco. Pagam um preço, o da dupla personalidade, a do conflito interior que divide sua pessoa na disputa entre o falso índio do branco e o verdadeiro índio do índio.

O nativismo brasileiro, criação de branco em cima de uma memória fantasiosa de Ceci e Peri, está sendo questionado. O próprio índio quer escrever o seu enredo e desempenhar os papéis da trama que diz quem ele é e não é. O índio dócil e submisso da sujeiçã violenta e da catequese de amansamento tem sido apenas o dar-se a ver do vencido. Mas, índio morde e morde por legítimas razões auto defensivas. Se o índio chegou à história de escola primária como representante de uma das “três raças”, que não são três nem são raças, na constituição de uma nacionalidade dominante, fraterna e harmoniosa, no novo enredo ele desconstrói essa história inventada pelos que venceram e pelos que mandam.Estamos vivendo um momento de reprotagonização no processo histórico brasileiro. Não só índios se repropõem como sujeitos de direitos.Mas também outros grupos humanos que a ficção política de uma nação trirracial criada pelo Império e mantida pela República acomoda apertadamente na ideologia da brasilidade. O Brasil dessa ficção política de fundo racial vive sua crise e, provavelmente, seus últimos tempos.

De modo que o que para muitos pode parecer uma comédia, uma variante do permanent carnaval brasileiro, não regulado pelas demarcações cronológicas da Quaresma, constitui, na verdade, momento e expressão de germinação social e de reinvenção do Brasil. Não por acaso, com apoio de outros índios e de brancos,houve uma tentativa de invadir o verdadeiro Museu do Índio, em Botafogo. É nessa tentativa que está , muito provavelmente, a chave da compreensão da resistência do pequeno grupo indígena à desocupação e à demolição do velho e arruinado casarão que ocupam nas imediações do Maracanã.

Para nós,museu é museu.Para muitas pessoas, não só os índios,um museu, pelos objetos que contém, pode ser muito mais um templo do que uma casa de cultura. O que para muitos é uma obra de arte,para outros continua sendo um objeto de culto.Não é diferente para o índio. Um objeto de sua cultura, exibido num museu, não perde para ele as funções rituais e até sua dimensão sagrada. Não é incomum que índios em visita a museus fiquem chocados ao verem expostos objetos de sua cultura que a tradiçã omanda que fiquem longe dos olhos dos não iniciados ritualmente para sua manipulação cerimonial.

De modoque,nãoconstituipropriamente uma anomalia que esse grupo de indígena se congregue no que para eles é não só uma extensão do Museu do Índio, mas extensão também de suas aldeias pelos objetos que o Museu abriga e expõe,cuja significação identitária permanece.


JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR
EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA
USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE FRONTEIRA –
A DEGRADAÇÃO DO OUTRO NOS CONFINS DO
HUMANO (CONTEXTO)

Arte e realidade - Lee Siegel

Lee Siegel
 
NOVA JERSEY - Ainda precisamos da arte? Embora me horrorize, a pergunta me ocorre cada vez mais. Primeiro, devo dizer que, sem a arte, minha vida não teria sentido. O que a leitura de literatura séria, o desfrute de artes plásticas e teatro sérios fizeram por mim quando eu era criança foi me ensinarem a não aceitar os dados concretos da vida. A arte é um testemunho de todas as barreiras que a sociedade erige diante do indivíduo. A arte nos diz que coisas não precisam ser do jeito que são. Ela nos diz que nada, nem classe, nem dinheiro, nem pedigree, pode esmagar um dom natural. Ela nos diz que, apesar de meros mortais, podemos criar do nada algo belo e duradouro.

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Peitos pelo progresso - João Ubaldo Ribeiro


JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo

Como já tive oportunidade de comentar aqui diversas vezes, Itaparica sempre esteve na vanguarda e não raro puxou o bonde nacional. Assim foi quando, depois de os aturarmos durante quase um ano, na época do padre Vieira, enchemos o saco de tantos vanderdiques e vanderleis e botamos os holandeses da ilha para fora - e tudo às carreiras, tanto assim que vários ficaram para trás, para usufruto das conterrâneas mais necessitadas ou mais assanhadinhas, assim se originando as flores que são nossas mulatas de olhos verdes, as quais vem gente de todo o mundo para conhecer. Quase dois séculos mais tarde, se não fosse a ilha, talvez não houvesse independência, pois a convicção dos historiadores sérios é de que o grito do Ipiranga não passou de gogó e sair mesmo no tapa com os portugueses foi na ilha e redondezas.

O grande mito - Caetano Veloso


 Publicado em:


O GLOBO

 

Se a Comissão fizer algo útil e justo, mesmo sob Feliciano, aplaudirei a Comissão. O que não quer dizer que aplaudo a escolha do seu presidente.

A pauta da primeira reunião da Comissão de Direitos Humanos e Minorias sob a presidência de Marco Feliciano foi o grave caso da contaminação por chumbo na cidade de Santo Amaro da Purificação, no estado da Bahia. Feliciano disse aos reclamantes que eles teriam sucesso em suas demandas se tivessem o apoio de ruidosos manifestantes, como os que desejam destituí-lo. Bem, ele não o disse nessas palavras, mas redigi como pude o que captei do sentido de sua fala. Participei de uma manifestação pela saída de Feliciano e já mencionei brevemente aqui que acho inapropriada a escolha do seu nome para o cargo. Mas usei muito mais espaço quando, faz algum tempo, tratei da questão do chumbo em minha cidade. Nossas respostas públicas ao andamento dos fatos políticos são quase inevitavelmente desproporcionais. Nesse caso, a minha não foi: dou muito maior importância à questão da violência ambiental que Santo Amaro sofreu e sofre do que ao disparate que é a escolha do presidente da Comissão. Não estou dizendo que aquela questão é objetivamente mais importante do que esta (talvez o seja), mas que pessoalmente dou muito maior importância à questão santamarense. Se a Comissão fizer algo útil e justo a respeito, mesmo sob Feliciano, aplaudirei a Comissão. O que não quer dizer que aplaudo a escolha do seu presidente.

Vi Feliciano no programa “Agora é tarde”, de Danilo Gentili. Achei boa a entrevista. Tanto o apresentador quanto o entrevistado se saíram bem. Gentili foi irreverente e um tanto obsceno (parece que é esse o tom do programa), e Feliciano foi firme (sem deixar de ser levado pela ousadia de Gentili, tendo chegado, na ânsia de mostrar que não se assombrava com coisa nenhuma, a soar um tanto obsceno ele próprio). Gentili conseguiu dizer diretamente a ele coisas que a maioria das pessoas que veem seu programa (e muitas que não veem) gostariam de poder dizer. Numa determinada altura, por causa da história de não admitir que suas filhas se expusessem a ver “dois homens barbados e com as pernas raspadas se beijando”, Feliciano disse que a sociedade brasileira não está preparada para isso. Bom, o passo seguinte seria: então preparemo-la. De fato, a frase do pastor esconde um “ainda”. O diálogo aberto entre Gentili e ele, na TV, pareceu contribuir consideravelmente para essa preparação. O melhor momento do pastor foi quando ele disse que é um deputado eleito com muitos votos e, portanto, representa um aspecto da mentalidade do povo. O pior foi quando, tendo de responder sobre sexo anal heterossexual (que Gentili chamou de “transar pela bunda”, expressão que foi, pelo menos em parte, repetida por Feliciano), ele se saiu com uma restrição higiênica, chamando o ânus de “um esgoto”. Agostinho já notara, com muito maior elegância, que nascemos “entre fezes e urina”.

Vi hoje na internet (estou gripado) uma briga bastante feia entre, de um lado, Marco Feliciano e Silas Malafaia, e, de outro, Edir Macedo. O bispo editou imagens de umbanda (que ele chama de “sessão espírita”) ao lado de cenas de possessão pelo Espírito Santo de fiéis de igrejas pentecostais. Estampando a pergunta: “Qual a diferença?” Com isso dizendo que esses rodopios e esse lançar-se ao chão dos evangélicos é algo tão suspeitamente demoníaco quanto os rituais afro-brasileiros. As respostas dos dois pastores são muito bem articuladas. Vale a pena ver no YouTube: basta escrever “Feliciano responde a Edir Macedo” (Silas aparece logo ao lado). Ambos dizem que a Universal de Macedo já fez e faz muita coisa igualmente parecida com aqueles ritos. Mais sério: Moisés faz o galho virar serpente, os feiticeiros do faraó também fazem, mas a serpente de Moisés engole as deles: Deus é maior que quaisquer manifestações do demônio. Os três líderes religiosos parecem estar lutando por clientela. Para um homem não religioso como eu, é o que fica evidente.

Vi Mautner no Jô. Sou um homem não religioso? Ouvi-o dizer que o Brasil e sua amálgama são a nova coisa, que salvaremos o mundo. Na luta contra os malditos que envenenaram minha terra, invoquei Nossa Senhora da Purificação. Lendo “O mundo líquido”, de Bauman, aprendi que os países em desenvolvimento estão fadados à desgraça. Mas tendo a pensar que a política econômica mal explicada de Dilmantega (sugestões como as de André Nassif , Carmem Feijó e Eliane Araújo sendo cruamente rejeitadas) nos atrasa em relação aos outros países para nos resguardar de um sucesso dentro do que ainda não é o que devemos ser. Nossa Senhora da Purificação de Santo Amaro, o Jesus de Nazaré do Mautner, o Dom Sebastião de Agostinho, é isso que minha alma intui que nos guia a algo acima dessa lixeira.


sábado, 30 de março de 2013

Engenharia do Engenhão - José Miguel Wisnik


 O GLOBO - 30/03/2013

 

A realização da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, bem como das Olimpíadas, no Brasil, põe à prova capacidades fundamentais como as de criar e de gerir

Todos sabemos que a realização da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, bem como das Olimpíadas, no Brasil, põe à prova capacidades fundamentais como as de criar e de gerir, de potencializar os talentos e de administrar as condições de sua realização em benefício público. É por isso mesmo que o futebol está no centro da interrogação sobre os atravessados destinos da modernização brasileira. Corresponderemos à nossa inventividade lúdica e invejável de pentacampeões mundiais? Somos capazes de sustentar consequentemente a gestão das estruturas necessárias e de incorporá-las como um legado? As duas perguntas cairão como meteoros pré-datados sobre o nosso atraso atual, no qual se confundem o atraso histórico imemorial com o atraso da construção das obras e o da construção do time (que está mais atrasada do que a dos estádios). A ruptura visível na estrutura do Engenhão soa a essa altura do campeonato como o sintoma incômodo que põe tudo isso a nu, como a gafe de mau gosto que desvela a incompetência cósmica.

Os arcos que sustentam o teto do estádio inaugurado no Pan de 2007 não se acomodaram na estrutura como previa o projeto, e podem desabar. O laudo de uma empresa de consultoria alemã recomenda a interdição. Começa a brasileiríssima dança das denegações: Cesar Maia, prefeito na ocasião da obra, declara categoricamente que o problema não é de projeto nem de execução, mas de manutenção; o engenheiro responsável afirma que o laudo alemão é “brilhante”, mas parte de “premissas diferentes” das do projeto, razão pela qual apresenta um resultado que ele não compartilha, completando que iria tranquilo com a família, se fosse o caso, para assistir a um jogo no Engenhão. Tudo se passa como se não tivesse existido o descarrilamento do bonde de Santa Teresa, nem o desabamento dos três prédios junto do Municipal, nem a tragédia da boate Kiss.

A cultura da irresponsabilidade — que consiste em não responder pelo que se faz — é corrente no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos é costume que alguém pague pelos desmandos e pelos erros; no Japão, o engenheiro praticaria o haraquiri. Aqui, é de praxe que os envolvidos finjam que nada está acontecendo. Para completar, o contrato assinado, até onde entendi, libera o consórcio construtor de responsabilidade sobre problemas que se revelem após o término da construção, ficando tudo na conta da prefeitura.

A opção brasileira para a realização dos novos estádios da Copa não foi a do convite a arquitetos autorais, como os do Ninho de Pássaro em Pequim, projetado por Herzog e De Meuron com participação do artista chinês Ai Weiwei. O novo estádio de Wembley, por sua vez, é da autoria de Norman Foster, importante arquiteto inglês e, curiosamente, contendo uma evidente citação do projeto não realizado de Oscar Niemeyer para o Maracanã, que era também baseado num imenso arco do qual penderiam finos cabos de aço, sustentando a cobertura. O pouco conhecido projeto de Niemeyer apontava pioneiramente, nos anos 1940, para os vários estádios atirantados contemporâneos, isto é, com a cobertura suspensa por cabos, como é o caso também do Stade de France, construído para a Copa de 1998. O Engenhão é uma versão pouco elegante e low-tech dessa tendência, onde a estrutura se baseia não em cabos, mas em perfis tubulares largos e pesados, halterofilísticos, que, ao que parece, não aguentaram o levantamento de peso.

Não escolher arquitetos de renome, pertencentes ao star system da arquitetura espetacularizada, poderia ser visto como uma virtude, se não fosse pelo fato de que os projetos foram entregues na maioria a conglomerados internacionais de construtoras com empreiteiras, aparecendo os arquitetos como parte secundária do pacote dos negócios. No mesmo bolo, as duas maiores e principais cidades-símbolos do Brasil, Rio e São Paulo, comparecem vexaminosamente com um estádio baleado, herdado do Pan e com importante papel projetado para as Olímpiadas, o Engenhão, com o Maracanã atrasado e o Itaquerão corintiano, suposto estádio do jogo de abertura da Copa, travado por um imbróglio financeiro.

Construir uma seleção, por sua vez, é mais difícil do que construir vinte estádios. Não há espaço aqui para desenvolver esse tema. Só quero dizer que eu, que sou santista, que fui um entusiasta da permanência de Neymar no Brasil e que sou seu fã total, acho que ele tem que ir o quanto antes para o Barcelona, testar o seu tamanho real, temperar o seu talento no contato com marcações futebolísticas diferentes do cerco e do circo de mídia, de publicidade e de futebol precário que se criou em torno dele aqui.


domingo, 24 de março de 2013

Você tem nome de quê? - HUMBERTO WERNECK

Rendeu marola a conversa da semana passada, em torno de nomes de gente que são também nomes de coisa, bicho ou vegetal. Como o guilherme que o Guilherme usa na carpintaria. Poucas reclamações: um Bernardo não gostou de se saber xará daquele berloque da anatomia masculina, e uma Cecília, ao ver-se no balaio das serpentes, só faltou me picar. Duas Betes perguntaram que jogo é esse originado do beisebol. Talvez o "bete (ou bente) altas" da minha infância, em que o desafio era derrubar com a bolinha a base adversária, tripé armado com gravetos. Não tem no Houaiss, mas eu estive nos anos 50 e dou fé.

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O Plano Borges - João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo
 
Pouco mais de meio-dia, no aclamado boteco Tio Sam, tudo parece estar de acordo com a filosofia do proprietário do estabelecimento, ou seja, a normalidade. O domingo não se apresenta dos mais gloriosos, mas não chove e, a cada trinta segundos, passa uma bela moça ou formosa senhora, a caminho da praia. Às mesas do Tio Sam e do boteco que lhe é vizinho, os coroas de sempre - nenhum dos quais jamais precisou de Viagra ou semelhante, mas sempre tem um amigo que precisa - se postam tão perto quanto possível da calçada, para desfrutar da paisagem e comentar as qualidades organolépticas das desfilantes. Amavelmente cafajestes, denominam isso "apreciar o cânter" - e o cânter aqui desta calçada leblonina nunca decepciona os aficionados.

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Baboseiras - Luis Fernando Verissimo

O Estado de S.Paulo

O motoboy entregou o pacote de cartas e disse:
- Ele falou que tinha resposta.
- Espera - disse ela. E pôs-se a examinar as cartas. Procurava uma em especial, que não encontrou. Fez um sinal para o motoboy aguardar enquanto telefonava.
- Alô...
- Amauri, cadê a carta do ursinho?
Era uma das primeiras cartas que ela tinha lhe mandado. Ainda eram namorados. Uma carta toda escrita como se fosse de uma criança para o seu ursinho de pelúcia.
- Eu mandei. Não mandei?
- Não. E se você não mandar a carta do ursinho eu não mando as suas.
- Heleninha...
- Não tem "Heleninha", Amauri. Ou você manda todas as minhas cartas ou eu começo a mostrar as suas. Sou capaz até de publicá-las. Quero ver como fica a sua reputação no meio.
- Eu pensei em guardar pelo menos uma carta sua, Heleninha.
- Logo a mais ridícula? Devolve a minha carta, Amauri. Nosso trato foi esse.
Todas as cartas.
- Deixa eu ficar só com esta. É a minha favorita.
- Eu sei o que você está pensando, Amauri. Quer ficar com a carta para me chantagear depois.
- Chantagear, Heleninha?!
- Chantagear. Eu conheço você.
- Heleninha! Eu acho esta carta linda. Uma lembrança do tempo em que a gente se amava.
- Não banca o sentimental comigo, Amauri. Essa carta é só um exemplo das baboseiras que e gente diz e escreve quando acha que o amor nunca vai acabar. Mas o amor acaba e fica a baboseira. Me devolve essa carta, Amauri!
- Heleninha, você lembra de como eu chamava você? Na cama?
- Eu não quero ouvir!
- Lembra? Está certo, era baboseira. Mas era bonito. Era carinhoso. Eu era o seu ursinho e você era a minha...
- Amauri, manda essa carta ou eu publico as suas. Já sei exatamente para quem mandar a primeira.
- Está bem, Heleninha. Manda o motoboy de volta.

Zuneide pensou: não dá mais. Morar nesta cidade, não dá mais. Não vejo mais o Ique, não sei nada da vida dele. E todas as noites é este suplício, nunca sei se ele vai voltar pra casa ou não, se está vivo ou morto. Dizem que morre um motoboy por dia na cidade. Todos os dias uma mãe perde um filho nesta cidade. Se o Ique ainda fosse procurar outra coisa pra fazer. Mas não. Trata aquela moto como se fosse um bicho de estimação. À noite, a moto fica ao lado da cama dele. Dorme com ele. Vou tentar convencer o Ique a voltar para São Carlos. Respirar outros ares. Antes que ele morra e me deixe.

- Não dá mais, doutor Amauri. Esta cidade está me deixando maluco. Sabe que no outro dia, quando me dei conta, estava correndo pela calçada e buzinando? A pé, na calçada, e buzinando para os outros pedestres saírem da frente. Bi, bi, bi. Olha que loucura.
- Você acha que isso pode ter alguma coisa a ver com os problemas em casa. Com a Mercedes?
- Não sei. Nosso amor acabou, doutor. Não tem mais sexo, não tem mais nada. Na outra noite eu chamei ela por um apelido que a gente usava quando era recém-casados, eu era Pimpão e ela era Pimpinha, e ela deu uma gargalhada. Não se lembrava mais. E ela também está enlouquecendo, doutor. Agora deu para dizer que se eu não comprar uma TV digital ela se mata. Vou dizer para ela vir consultar com o senhor tam...
Tocou o telefone e Amauri pediu licença para atender.
- Alô? Sim, Helena. Não chegou? Eu mandei pelo motoboy perto do meio-dia. Mandei, Helena. Por que eu iria mentir? Deve ter acontecido alguma coisa com o motoboy.

Só em casa, depois de deixar o Ique no hospital, Zuneide descobriu a carta no bolso do blusão do filho. Uma carta carinhosa, que começava assim: "Querido Ursinho". Ele tinha uma namorada e ela não sabia! O nome dela era Heleninha. Uma boa menina, ingênua, pura, que obviamente o amava muito, a julgar pela carta. Preciso encontrar um jeito de avisá-la de que o Ique teve um acidente, pensou Zuleide. Será uma maneira de conhecê-la, também. De conversarmos, de combinarmos a ida deles para São Carlos, para outros ares, depois do casamento. Zuneide leu e releu a carta várias vezes. Que coisa bonita. Que coisa carinhosa. No dia seguinte ela diria ao Ique que ainda não conhecia a Heleninha mas já gostava dela.

- Amauri, você pediu. Vou começar a distribuir as suas cartas.
- Heleninha...
- Você mentiu. O tal motoboy não apareceu com a minha carta.
- Heleninha...
- Prepare-se para o pior, Amauri.

Dolores e Eric - Caetano Veloso


Publicado em:

FALA CAETANO

O GLOBO

 

Colunista responde autora que escreve biografia da cantora sobre artigo publicado esta semana no Segundo Caderno

Fiquei surpreso com o artigo de Angela de Almeida publicado aqui ao lado na quarta-feira. O título era “Em defesa de Dolores Duran” mas, apesar da redação sóbria, não se entende de que a articulista está defendendo a cantora. Pela citação direta de comentário feito aqui nesta coluna, pareceria que ela quer defender Dolores de mim. Ela acha mesmo que diminuí Dolores ao reconhecer que “Por causa de você” é uma canção de amor afirmativa e que “Estrada do sol” resplandece de contraste com o pessimismo amoroso dos sambas-canções dos anos 1950? Angela reclama de eu ter dito que a figura vital e engraçada que aparece na biografia escrita por Rodrigo Faour não me surpreende. Mas por que diabos isso estaria na contramão da admiração pela personalidade artística da compositora que exponho no parágrafo precedente? Na verdade, toda a angustiante história da cardiopatia que acabou matando nossa adorada artista está narrada no livro de Faour. Se Angela tem críticas a fazer ao livro desse autor, que as faça. Mas essa velada acusação não procede: Faour não omite, nega ou desmente a tensão que acompanhou Dolores por toda a sua curta vida.

De minha parte, sempre tive e tenho a sensação nítida de que Dolores não era uma moça triste, nem mesmo uma autora especialmente pra baixo dentre os fazedores de baladas brasileiras daqueles tempos. Eu a vi de perto no auditório da Rádio Nacional e senti uma simpatia imediata, passando a achar que a conhecia. Deplorarei sempre não ter podido encontrá-la quando finalmente vim para o Rio. Lendo o livro de Faour, eu me encontrei com a pessoa que intuía a partir da aparência, da voz e das músicas. As canções de Dolores são as mais convincentes, sinceras e diretas que se podem escrever. Todas as referências ao “tempo passando” e à certeza terrível da mortalidade entrelaçada com a sede sem fim de ser amada que aparecem em suas composições são registradas por Faour. Pode-se não gostar (eu não gosto) do tom demasiado jocoso e do coloquialismo extravagante do autor, mas a pesquisa sobre quem foi a mulher que ganhou o nome Dolores Duran é abrangente e honesta. Dolores aparece como uma menina excepcionalmente inteligente, que gostava de curtir a vida e que sentia alegria com a própria inteligência. O jeito de ela cantar os baiões engraçados de Chico Anysio e os não menos engraçados sambas de Billy Blanco mostra bem que tipo de piadista ela era. As lembranças dos seus ex-amantes coincidem em descrever uma mulher apaixonada e sensual, com grande culto do amor físico. A irmã e as amigas descrevem uma pessoa reconhecível. Uma personagem vívida sai das páginas do livro. Nenhum dos seus próximos desmente as características da personalidade brincalhona. Faour sempre parece perfeitamente honesto na transcrição dos depoimentos. Se Angela está escrevendo uma biografia mais aprofundada da compositora, ótimo. Que ela a publique o quanto antes. Mas não venha ralhar comigo pelo que eu não fiz.

.Dolores é o máximo. Sem ela eu não estaria tão firme contra Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos; eu não teria entendido nem um décimo do que entendo da linguagem da canção popular; o Brasil não seria o que, a duras penas, consegue ser. Dolores é uma glória da língua portuguesa, sem a qual o samba não existiria.

Estou escrevendo quase sem usar a cabeça. Em meio aos preparativos para a estreia do show “Abraçaço” (quando este artigo sair, já terei feito três dos quatro shows que anunciei fazer no Circo Voador), só tenho na mente as palavras e as notas embaralhadas de “Um comunista”, “Alexandre” (que vou ler, pois nunca a cantei em público, já que não decorei a letra) e “Funk melódico” (que gravei lendo e nunca mais cantei). Gosto de música popular. Sempre gostei. Há algo aí. Quando, em suas análises da formação social do jazz, Eric Hobsbawm fala com desprezo de Tin Pan Alley (a rua que deu nome à produção de canções americanas nos anos 1920, 30 e 40), ou seja, de Irvin Berlin, George Gershwin e Cole Porter, eu me sinto mal. Não é que eu queira a aprovação dele para a canção pop (como ele já chama o tipo de música feita por essa gente): é que eu acho que há algo errado em não se captar a grandeza desse gênero. Hobsbawm é que fica sem minha aprovação. Sou mais Dolores.

É simpático que Hobsbawm não embarque no ódio ao jazz que Adorno nutria. Apesar da crítica do capitalismo (Hobsbawm também era marxista), ele não desqualifica uma forma de expressão complexa como o jazz. (Embora eu ache que têm graça algumas arengas de Adorno: ele entendia mais de música do que Hobsbawm.) Mas nada de “Night and day”, “The man I love” ou “Por causa de você” com ele

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Para ler o artigo de Angela de Almeida :



Em defesa de Dolores Duran - ANGELA DE ALMEIDA


sábado, 23 de março de 2013

SABÁTICO

 
A ARTE COMO UM JOGO DE ESPELHOS

Coletânea reúne textos nos quais Milan Kundera aborda música, literatura, pintura ou teatro para definir a si mesmo


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REFLEXÕES SOBRE UMA REVOLUÇÃO


Em Mercadores de Cultura, que sai no País no fim de abril, John B. Thompson traça um vasto painel do mercado editorial americano e inglês; aqui ele discute o tema de forma ampla, incluindo o Brasil


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A INDÚSTRIA DE ‘CISNES NEGROS


Leia trecho de um capítulo no qual o autor analisa o funcionamento das editoras comerciais


 

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UMA RARA COLEÇÃO, FEITA COM ALEGRIA


Com 45 mil volumes, num extraordinário conjunto de primeiras edições, manuscritos, mapas, revistas, etc., a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin abre neste sábado sua nova sede


 

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sexta-feira, 22 de março de 2013

Solidão e silêncio no fundo da agulha - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

O Estado de S.Paulo


Todos os domingos, à meia-noite, quando Nabor cantava "Quizás, quizás, quizás", eu sabia que a domingueira tinha acabado e aquelas meninas de Araraquara desceriam as escadas, passariam por mim, nem me olhando, e iriam para casa. Algumas com os pais, várias sozinhas (não havia perigo), outras acompanhadas pelos namorados. Inveja daqueles namorados, tinham dançado com as moças mais lindas, colado o rosto (apesar da vigilância materna), conseguido um beijo furtivo. Dali a pouco, nos portões, viriam os "amassos", porque mais do que carinhos, os namorados se amassavam com sofreguidão. Em que estado iam dormir.

Dia desses, indo para uma reunião na Fundação Carlos Chagas, ouvi no táxi ouvi o bolero siempre que te pregunto, que quando, donde y como. Comentei na reunião: "Ali estou, sentado no banco gelado, sabendo que o domingo acabou". Sandra e Mariana Lapeiz, condutoras do projeto maravilhoso que é o Livro para Todos, (que este ano tem Milton Hatoum como padrinho, assim como Lygia Fagundes Telles e eu fomos nos dois últimos anos), indagou: "O que isso quer dizer?" E eu: "Há canções que me provocam, volto no tempo". Ela: "Já escreveu sobre isso? Não é um livro?"

Era. É. Nove meses depois, o livro estava terminado. Tempo de gestação de um ser humano. Vim arrancando de dentro desde aquela canção Amado Mio, do filme Gilda, ainda na minha infância, até Alfonsina y el Mar, com Mercedes Sosa, que Irina e eu ouvíamos em Hanabanilla, Cuba, pouco antes dela, jovem jornalista mexicana, linda, partir para a Nicarágua para lutar com os sandinistas contra o ditador Somoza. Fui reencontrando Valsinha, de Chico e Vinicius, que embala duas mulheres solitárias numa sala a tecerem bordados de uma vida, bem como Patricia, bolero para ser dançado cheek to cheek nas festinhas da adolescência, mas que Fellini usou para a orgia final em A Doce Vida, filme que marcou uma geração. "Quero, quero ser chamada de querida", lembram-se?

Uma noite, no Recife, no Sesc, vi e ouvi no palco uma mulher que me impressionou ao falar sobre educação e ao contar sobre seus textos, Viviane Mosé. Dela retirei o título de meu livro, Solidão no Fundo da Agulha, porque me trouxe minhas tias e primas em tardes araraquarenses, me trouxe mulheres que conheci e se encerraram no silêncio do fundo da agulha. Mulheres que esperaram ou ainda esperam que ele chegue um dia com um jeito diferente daquele jeito que ele tinha ao chegar. Nossas vidas são atravessadas e marcadas por músicas, por canções que nos devolvem momentos, felizes ou não. Recuperei algumas, mas a cada dia acumulo outras.

Por que uma americana que vi certa manhã, uma única vez, em Roma, perto da Praça de Espanha, eu voltaria a reencontrar 17 anos depois, mulher madura, numa palestra em San Diego, Estados Unidos, ligada por uma carta que ela recebeu e eu nunca li? Ligada ainda por Antonio Tabucchi, o escritor italiano falecido ano passado, um grande amigo. Mais, ligada por Isaura Garcia a cantar: "Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com uma carta na mão". Como e por que a vida estende linhas misteriosas, unido ou desunindo pedaços de nós?

A primeira entrevista de sua vida, capa do caderno de variedades do jornal Última Hora, fui eu que fiz com Dina Sfat, quando ela começou no Teatro de Arena, em 1962. Naquela tarde, nos fundos do teatro vazio, alguém cantava Estrela do Mar. Quem não conhece? Um pequenino grão de areia. Dina ficou de descobrir quem era a cantora. Descobriu? Um mistério que continua. Dina morreu três meses do dia em que, indo a Israel, me vi na cidade de Sfat, terra dos cabalistas. Sfat que lhe deu o nome.

Solidão no Fundo da Agulha está pronto e será lançado terça-feira, dia 26, no bar Vianna, em Pinheiros. O bar vizinho à minha casa, onde vou certos fins de tarde e sento-me na mesma mesa, lendo, anotando coisas, ou simplesmente esperando a noite chegar ao meu bairro, porque com ela chegam Marcia e Rita para sentar comigo. O livro está saindo pelo selo Livro para Todos, um dos projetos que tornam diferenciada a Fundação Carlos Chagas, a que estrutura todos os grandes concursos públicos deste Brasil. Projeto que dá a ela um plus.

Paulo Melo Jr., um fotógrafo pernambucano, leu os textos e, câmera em punho, saiu para capturar o espírito de Araraquara, ou de lugares de São Paulo: Rua Javari, Livraria Francesa, ruas do centro, bancas de frutas ao sol, estação da Luz, Avenida 23 de Maio vazia, um pastel de feira sendo frito, o teatrinho de Arena, o relógio do Mappin, debaixo do qual gerações marcaram encontros. O que é este livro? Minhas memórias? Mas são as suas também. Minha músicas? São as de todos. É realidade, lembrança, é ficção. E tanto é um livro de gerações mais velhas ou atuais, que a jovem Rita Gullo interpreta as 11 canções do livro (porque haverá um CD dentro) como se fossem dela, do tempo dela. Ela se comprometeu com cada nota, cada palavra. Tocaremos todas as canções na noite do dia 26, na Rua Cristiano Vianna, 315, e beberemos, e falaremos, porque será um encontro de todos nós, a partir de 19 horas.

Quem acredita em estrelas? - Nelson Motta

 Estado de Minas - 22/03/2013

A perigo de dançar na troca de cadeiras de Dilma, o ministro do Turismo, Gastão Vieira, publicou artigo nos jornais anunciando seu grande projeto: recadastrar todos os hotéis do Brasil e classificá-los com estrelas. A justificativa é que o turista paga um hotel de tantas estrelas, mas chega aqui e se decepciona.

Bem, isso era no século passado, hoje ninguém faz uma reserva sem antes ver fotos e vídeos nos sites dos hotéis, ler as críticas dos hóspedes e avaliar preços, serviços e quartos. Ninguém liga mais para estrelas, ministro.

Propaganda enganosa, ciladas e otários sempre vão existir, mas para isso existe o Procon. Para o ministro, a atual classificação por estrelas dos hotéis "provocou constrangimentos durante dez anos e perda de confiança na hotelaria brasileira". As estrelas, não os péssimos serviços e preços abusivos.

Então, com dez anos de atraso, anunciou o SBClass - Sistema Brasileiro de Classificação de Meios de Hospedagem, o bolsa-estrela. Para quê? Basta os hotéis manterem seus sites atualizados - o que todos já fazem, como marketing: hoje são os consumidores que dão as estrelas.

O projeto estelar oficial fez viagens e oficinas, pesquisas em 24 países, seis cursos de capacitação e 26 avaliações-piloto, contratou 300 especialistas. Mas o ministro estranha que só 30 dos 6.260 hotéis brasileiros tenham se interessado no SBClass. Por que será?

Imaginem quanto vai nos custar esse plano genial, tão atrasado quanto inútil? E, como sempre no Brasil, alguns vão querer uma estrela a mais na camaradagem, ou coisa pior, para enganar os otários.
Falando em estrelas, o Movimento Cinco Estrelas, do comediante Beppe Grillo, que conquistou 25% dos votos na Itália e elegeu 166 parlamentares, divulgou suas contas de campanha: arrecadou 570 mil (R$ 1,5 milhão) com cerca de 15 mil doações individuais e média de 40 per capita.

Quase tudo foi gasto na montagem de palcos, som e luz dos comícios, as sobras da campanha vão ser doadas às vítimas do terremoto na Emilia. Quem precisa de empresas ou financiamento público quando tem novas propostas e a internet?

Humor terapêutico - Arthur Dapieve


O sucesso do canal Porta dos Fundos no YouTube

Os funcionários de uma firma fazem uma espécie de pausa para o chá, todos os dias, a fim de assistir a seus episódios favoritos no Porta dos Fundos. O taxista liga o computador quando chega em casa para esquecer o caos do trânsito vendo dois ou três vídeos do Porta dos Fundos. Este colunista também encerra suas jornadas de trabalho com doses terapêuticas do Porta dos Fundos. Viciei-me.

Linguagens de programação - Hermano Vianna


‘Toda escola deveria oferecer oportunidade de aprender a fazer código’

Muitas vezes esta coluna aborda assuntos que aparentemente só são interesse de minoria. A vontade de divulgar aquilo que pouca gente conhece é consciente. Estou experimentando o experimental, falando sobre o que também é grego para mim, mas onde intuo linguagem comum no futuro, artigo que será de primeira necessidade. Isso é a tese, a carta de intenções. A realidade acontece diferente. Igualmente muitas vezes, logo depois de publicar texto sobre novidade que considerava totalmente esotérica, descubro multidão que só pensa naquilo, com militância exaltada. É o que Ágata, personagem de “O homem sem qualidades”, denomina “salvação pela estatística”.

quarta-feira, 20 de março de 2013

UMA ESTAÇÃO SÓ PARA A ARTE

 O GLOBO - 20/03/2013

Alavancado pela nova lei de TV paga, que prevê mais conteúdo nacional nas transmissões, Grupo Bandeirantes lança hoje um canal, o Arte1, com séries, óperas, balés, filmes e jornalismo cultural

MÁRCIA ABOS
São Paulo
marcia.abos@sp.oglobo.com.br

.Anova lei de TV paga teve papel decisivo na criação do Arte1, novo canal dedicado a artes e cultura do Grupo Bandeirantes, sob a direção de Rogério Gallo. Desde dezembro no ar, em caráter experimental, em algumas operadoras de TV por assinatura, o Arte1 faz hoje sua estreia oficial na grade de pacotes básicos, sem custo adicional, com a marca de 10 milhões de assinantes, número bem acima da previsão inicial de 2 milhões.

A entrada com força no mercado deve-se ao perfil do canal, classificado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) como espaço de conteúdo nacional qualificado. Essa classificação impulsionou as operadoras a inclui-lo nos pacotes básicos de assinatura para cumprir a exigência da nova lei de um canal brasileiro para cada seis estrangeiros na grade.

ACERVO DA VIDEOFILMES

Gallo conta que o projeto tem mais de dois anos, mas a estreia do canal foi adiada para se adequar à lei da TV paga. — Adaptamos o projeto para tornar o Arte1 um canal brasileiro de espaço qualificado, com mais da metade da programação do horário nobre com conteúdo nacional, metade produzido pelo próprio canal e a outra metade, de coproduções — explica Gallo, admitindo que a adaptação aumentou os custos do negócio, mas foi também uma oportunidade. — A nova lei encareceu o conteúdo nacional, por causa do aumento da demanda. Mas foi para nós uma oportunidade. Sem ela não entraríamos no mercado com essa força e essa base de assinantes.

A programação traz séries, filmes de ficção, documentários, shows, concertos, óperas e balés, além de três programas semanais de jornalismo cultural. O diretor conta que o Arte1 comprou os direitos de exibição de todo o acervo da Videofilmes, que inclui o conjunto de documentários de Eduardo Coutinho (“As canções”, “Jogo de cena”), e clássicos do cinema brasileiro, como longas de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Luís Sérgio Person.

— Não temos como foco um público de iniciados, nem queremos ser um canal educativo. Ao contrário, trata-se de um canal de entretenimento que quer ser acessível — diz Gallo, citando como exemplo de programação de apelo popular uma série ainda em fase de produção, feita em parceria com a produtora independente Comalt, de Nelson Hoineff, sobre roubos de obras de arte no Brasil. — Nessa série, falaremos sobre museus e história da arte, mas ela tem também o apelo de um thriller policial.

Arte de rua no Brasil é o tema de outra série coproduzida pela Aeue, um nova produtora independente de São Paulo, também em fase de produção. O canal fechou parcerias com a Pinacoteca do Estado de São Paulo, que resultou numa série de reportagens sobre o restauro de obras de arte, e com a feira SP Arte. Negocia um acordo nos mesmos moldes com a São Paulo Companhia de Dança, para a exibição de espetáculos e produção de séries. O projeto prevê ainda parcerias com outros corpos estáveis brasileiros e com instituições como a Bienal Internacional de Arte de São Paulo e eventos como a Feira Literária Internacional de Paraty (Flip).

— Está em avaliação um projeto de teleteatro, gênero tão antigo da TV brasileira. A ideia é simplesmente exibir a peça, nos moldes de um antigo programa da TV Bandeirantes, o “Teleteatro Cacilda Becker” — adianta Gallo.

Com a grande quantidade de assinantes , a expectativa é que o crescimento do Arte1 acompanhe nos próximos cinco anos o aumento da base de assinantes de TV paga, cuja perspectiva é de expansão de 25% ao ano. A programação de 24 horas do novo canal é exibida no número 115 da Net, 101 da Sky, 31 na Claro TV, e 84 na GVT. l

O cheio e o vazio - Francisco Bosco


‘Hoje, o mundo se tornou um hipermercado. E o campo digital tornou esse hipermercado globalizado em tempo real’

Há algumas semanas, Hermano Vianna publicou aqui um comentário (assim entendi, pois a menção não era explícita) à edição da “Carta Capital” que declarava “o vazio da cultura” brasileira contemporânea e, nos termos do editorial de Mino Carta, a “imbecilização do Brasil”. Na “Carta” dessa semana, Vladimir Safatle volta ao tema, afastando-se do modo como Mino Carta tratou o problema — uma avaliação objetiva e negativa sobre a qualidade das obras produzidas hoje — e lançando questões oportunas, como a necessidade de se repensar a noção de “cultura popular”. Farei aqui um comentário indireto às visões de Hermano e Safatle (talvez volte a elas mais detidamente na próxima semana), chamando atenção para um ponto que me parece importante nessa discussão.

Pautando a imprensa - ZUENIR VENTURA

O GLOBO - 20/03/2013
É da natureza da imprensa correr atrás dos fatos, mas há fatos que correm atrás da imprensa. São assuntos, personagens e acontecimentos que, por seu interesse e importância, se impõem como notícia e assim permanecem por mais tempo em destaque.

Nesses casos, diz-se que eles "pautam" os jornalistas, como está acontecendo agora com Francisco, o mais simpático, comunicativo e carismático Sumo Pontífice dos últimos tempos. Em uma semana, tudo o que ele disse ou fez foi correndo para os jornais, rádios e TVs.

Há quem não se conforme: "É um marqueteiro", já me escreveram, jogando sobre nós a culpa.

Sobra sempre para a mídia: "Vocês não resistem à sedução dele." Será isso? Sabe-se que são insondáveis os mecanismos do sucesso (se estivessem à mão de qualquer um, todo mundo usaria), mas, se tivesse que tentar explicar esse fenômeno de comunicação e marketing, abandonaria as teorias sofisticadas, inclusive as conspiratórias, e prestaria atenção no uso que o novo Papa faz da maior fonte de notícia que existe: a surpresa ou seus equivalentes, a novidade e o improviso.

Tudo nele e em torno tem sido inesperado, a começar pela humildade (alguém já tinha visto um argentino humilde?) e sem falar na eleição.

Quando se esperava qualquer outro, veio ele.

Depois foi a "revolução da simplicidade": as quebras de protocolo, as pequenas mudanças nas cerimônias, nos ritos e na tradição. Em vez dos trajes alegóricos, a batina branca, o crucifixo de prata e não de ouro, o sapato preto em lugar do chamativo vermelho do seu antecessor, o despojamento e não a pompa e a opulência.

Por fim, talvez não precisasse exagerar, o beijo no rosto de Cristina, que até há pouco não era flor que ele cheirasse.

A dúvida é se tudo isso é gratuito, espontâneo ou se disfarça e esconde uma intenção programada e uma orquestração. Há teólogos e especialistas que acreditam que os gestos de Francisco "vão além das aparências" e são um "recado" de que ele vai ser bem diferente de Bento XVI, e não apenas na cor dos sapatos. Como já foi dito, ainda é cedo para santificar o novo Francisco, e é possível que ele decepcione a direita e a esquerda. Ao contrário do que muitos gostariam, como, por exemplo, a própria presidente Dilma, ele não vai contemplar as "opções diferenciadas do indivíduo", se isso significa mexer em dogmas como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Mas, por outro lado, os que acham que ele é apenas um factoide, uma passageira "criação da mídia", também não perdem por esperar.

Fantasias e realidades - Roberto DaMatta

 O Estado de S.Paulo - 20/03/2013

A avalanche passou. Os fatos (sempre estranhos) foram canibalizados e assim transformados em sinais, sintomas, índices, tendências, retornos e nulidades. A sociedade tem suas estruturas que lutam contra, a favor ou apesar dos fatos. Agora vai, pensamos, gritamos ou escrevemos, mas o mundo continua o mesmo.

Chávez morreu. Como outros heróis, ele morreu e, mesmo se for devidamente embalsamado, terá o destino de todos nós: um pouco mais ou menos de lembrança e o nobre esquecimento de uma paz enfim, perpétua. Entrementes, nesses tempos de renúncias e realinhamentos políticos, surgiu - graças aos volteios do Espírito Santo - essa figura mediadora entre a nossa permanente burrice e alguma coisa que nos faça voar e tentar ver mais longe - um novo papa. O tema nos pautou por algum tempo, mas já voltamos para a novela e para a tal política (a novidade esperada), deixando de lado o inesperado da novidade.

Assisti a Argo, o ganhador de melhor filme do ano. Para quem curtiu Preminger, Wyler, Clair, Ford, o velho Hitch, Wilder, Truffaut e Capra, é um "bom" filme. Mas a trama interessa: como sair de uma gravata de realidade por meio de uma fantasia? Americanos são reféns na casa de uma embaixada que pode ruir e eles serão mortos por uma onda descontrolada de radicais. Ora, o radicalismo é o outro da rotina social. Rotinas são programas que seguem uma ordem automática ou "natural". O sinal de trânsito deve funcionar, mas quando chove ele desliga. Então, surge o radicalismo de uma rua engarrafada. Nervosos, vemos baixar em cada um de nós, um espírito diferente. O estranhamento é a crise dos princípios: tenho pressa e o mundo me ordena não ser preguiçoso, mas os sinais deste mesmo mundo não me deixam passar.

Voltando a Argo. Um agente da CIA, órgão especializado em roteirizar anormalidades, descobre que o real pode ser salvo pelo mito. Num filme, inventa-se um filme para salvar os reféns. Mudando seus papéis sociais rotineiros de inimigos demonizados do aiatolá, eles se transformam em produtores, diretores, fotógrafos e atores de um filme de ficção científica a ser realizado no Irã. Temos, então, um diálogo intenso do metonímico com o metafórico. Se os radicais acreditam na montagem, podemos salvar os reféns de um roteiro absoluto dado naquele momento revolucionário. Se nossa contraficção é bem contada, o filme vira sucesso e pode ser devorado por um prêmio Oscar. Aliás, deixe que eu diga entre linhas: não pode haver nada pior do que ser consagrado. O prêmio é o fim. É o cemitério da criação.

O melhor do filme é quando no aeroporto em Teerã um agente desconfia do grupo, mas é envolvido na narrativa do filme de ficção que ficticiamente estaria sendo feito pelo grupo.

E como ninguém resiste a uma piada ou narrativa, sobretudo se ela não terminou, os agentes deixam passar o grupo tal como Sherazade viveu mil e uma noites, contando uma história para o sultão e marido traído que a condenou à morte.

Tentar ver o fim (ou em alguns casos chegar aos finalmente) é o que nos move. Eu escrevo sem saber o final. E, no final, revejo o milagre da superação da minha mediocridade por uma mediocridade escrita.

Ninguém seria capaz de viver sem uma narrativa - sem um início, meio e fim num universo interminável.

* * * *

Estou no aeroporto de Congonhas em São Paulo e tenho umas duas horas para voar para Brasília. Duas horas para matar! Sessenta minutos sem narrativa ou ficção. Vale dizer, sem foco ou fantasia. Tenho que "passar hora". Vejo um caro BMW em conveniente exposição ladeado por uma bela jovem que me informa o que interessa em toda fantasia: o preço é de 150 paus. Nem pensar...

Caminho sem rumo dentro de um lugar absolutamente demarcado pelo utilitarismo. Dizem que seria um não lugar. Eu não concordo. Somos humanos precisamente porque, entre nós, tudo tem um lugar. Se não há lugar, há a crise.

Ando em busca de um enredo. Vejo algumas pessoas assistindo, num comedor, ao jogo entre o Milan e o Barcelona. Todos ficam matando o tempo, mas o futebol ressuscita o tempo com os gols de Messi e o seu infalível enredo. Rola o jogo e os passageiros viram torcedores, tal como em Argo e na vida, quando fazemos uma coisa por outra. De repente, um companheiro de torcida grita que perdeu o avião. O jogo ocasional englobou a viagem estabelecida. Voltou a si mesmo, xingando-se por ter sido enganado por uma fantasia.

Por via das dúvidas, armei meu despertador.

domingo, 17 de março de 2013

Que elites, que esquerda? - JOÃO UBALDO RIBEIRO

A cada instante e cada vez mais, somos alvejados por milhares de informações de todos os tipos, muitas delas procurando, como consequência final, alterar nosso comportamento, seja para pormos fé nas lorotas pseudoestatísticas e conceituais que nos pregam os fabricantes de remédios, pastas de dentes e produtos de farmácia em geral, seja para acreditarmos que determinado partido político, ao pedir com fervor nossa adesão, realmente tem alguma identidade que não seja a que lhes emprestam seus tão frequentemente volúveis caciques. Aparentemente, nossos cérebros se defendem de ser entulhados com essa tralha e grande parte dela é esquecida.

LEIA EM:

O GLOBO

Uma nação estressada - DORRIT HARAZIM

Nos EUA, declarar-se estressado passou a significar inserção e ascensão social

Com a divulgação, esta semana, do novo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), compilado pela Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, ficamos sabendo que o Brasil estacionou na 85. posição entre os 187 países avaliados. Com base num índice compósito de indicadores de renda, educação (anos de estudo) e saúde (expectativa de vida), aquartelamos no mesmo patamar que a Jamaica e Omã, o que soa pouco animador mas também não quer dizer nada. Dói bem mais, nestes primeiros dias de papa Francisco, saber que estamos 40 posições atrás da Argentina. No topo da pirâmide permanece a Noruega, seguida da Austrália e com os Estados Unidos em terceiro.

LEIA EM:

Papa inesperado - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

 Publicado em:

O Globo - 17/03/2013

Eu sei que ninguém mais diz coisas como “Pelas barbas do profeta!”, mas acho que deveríamos ter uma expressão parecida pronta para os casos de grandes surpresas (minha sugestão: “Pelas coxas da Beyoncé!”) como a eleição de um papa inesperado. Guardadas as óbvias diferenças, a escolha do argentino Jorge Mario Bergoglio equivale a um daqueles prêmios Nobel de Literatura dados a um autor que só dezessete pessoas no mundo conhecem, e dez estão mentindo. Na Venezuela corre a versão de que a escolha de Bergoglio foi resultado de um pedido feito pessoalmente a Deus pelo Hugo Chávez. Pode ser verdade, mas o que não contam é que a primeira reação do Senhor ao ouvir o nome do argentino foi: “Quien?”. As piadas proliferam. Já ouvi que, junto com a euforia, nota-se um certo desapontamento na Argentina pelo fato do novo papa ter preferido se chamar Francisco e não Diego Armando. A eleição do Jorge Mario, junto com os gols do Messi, espalham um certo temor pelo mundo: o de que a certeza argentina da sua superioridade sobre todos nós pode não ser megalomania!

É um pouco injusto evocar agora o suposto apoio ao regime, ou a suposta omissão, do novo papa durante a ditadura militar no seu país. A Igreja argentina sempre teve um poder junto à classe conservadora e o pensamento dos seus líderes muito maior do que a Igreja brasileira junto à nossa elite, por exemplo. O que de certa forma a exime, se não a redime. É compreensível que ela tenha sido cautelosa na preservação do seu poder em meio à selvageria, e que hoje se confunda isto com colaboração. Mas também é verdade que um regime repressor tão extraordinariamente brutal como foi o argentino deveria ter excluído qualquer prurido ou desculpa. Mas, enfim, os generais da repressão estão sendo responsabilizados e os torturadores estão indo para a cadeia (na Argentina, pelo menos) e o papa Francisco tem acesso direto ao ouvido de Deus, se sentir a necessidade de contrição. E se conseguir que o Hugo Chávez se cale.

CRÔNICA VOVÔ

Nossa neta Lucinda tem quatro anos e meio e sabe tudo. Há dias ela me mostrava a maneira correta de comer uvas. Meu argumento, de que já comia uvas setenta anos antes de ela nascer, não convenceu. Eu comia errado.

A loucura de Deus - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

Publicado em:
 
 
Pedro era a pedra sobre a qual se ergueria sua igreja, disse Jesus, no primeiro trocadilho registrado pela História, segundo o Millôr. Mas foi Paulo quem a construiu. O apóstolo propagador levou o cristianismo a todos os cantos do mundo conhecido e, na sua pregação, definiu o que havia de diferente na nova religião. Opondo-se a Pedro e aos cristãos primitivos de Jerusalém, Paulo marcou a distância entre a nova crença e suas raízes judaicas. E para marcar sua distância da filosofia grega dominante proclamou o cristianismo livre do racionalismo e do empirismo. "Sapientiam sapientum perdam" - destruirei a sabedoria dos sábios - disse Paulo, referindo-se a todas as formas de pensamento que a religião chegava para deslocar.

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Na sua primeira epístola aos Coríntios, Paulo escreveu, pelo menos na minha edição da Bíblia, que a "loucura" de Deus era mais sábia do que a sabedoria de todos os sábios, "loucura" significando o descompromisso da fé com a lógica. Nascia aí a discórdia entre a Igreja e a Ciência que atravessaria os séculos.

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Se Pedro foi o pai da Igreja como entidade mística, Paulo foi o pai da Igreja como entidade política e prática, e desde então as duas tradições competem ou se completam na luta contra o secularismo e a razão científica. É a força mística, a "loucura", da Igreja que a mantém viva até hoje, é a força política que ela mobiliza nas suas batalhas históricas para manter-se relevante. Suas lutas contra heréticos como Galileu eram menos para defender conceitos consagrados como o Universo geocêntrico e mais para preservar poder político ameaçado, o que equivale a dizer que em muitos casos o obscurantismo da Igreja era pragmatismo mal pensado.

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A Inquisição não aconteceu como terror contra agentes do Diabo e descrentes da Fé verdadeira, foi uma prolongada encenação de poder, uma mise-en-scène política com turnê internacional. A origem do terror não foi, portanto, a Igreja do simples e místico Pedro mas a do intelectual e craque em marquetchim Paulo

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O admirável é que a força mística da Igreja de Pedro tenha sobrevivido a todas as derrotas políticas da Igreja de Paulo. Agora mesmo se discute a relevância de uma Igreja que se posiciona contra o uso de preservativos que podem evitar doenças e morte e contra experiências genéticas que podem salvar vidas - em nome de uma sacralização da vida. Dá quase para dizer que a "loucura" de Deus, fora do contexto em que Paulo a usou como sabedoria superior à razão e à lógica, é loucura mesmo.

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Alguns dos novos pecados capitais publicados pelo Vaticano são surpreendentes. Agora é pecado ficar rico demais. O Vaticano só não especificou quanto é demais, talvez incerto sobre a sua própria riqueza. E perderam a oportunidade de transformar em pecado mortal, passível de uma eternidade no inferno, atender celular no cinema.

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As Igrejas de Pedro e de Paulo continuam competindo, como se viu na escolha do novo papa (estou escrevendo antes da fumaça branca) O que será mais temível, uma vitória de Pedro e dos simples em extinção ou uma vitória de Paulo e sua sede de relevância e poder, já que para as duas Igrejas o descompromisso com a lógica das "loucuras" de Deus é o mesmo?

Xará de coisa - Humberto Werneck

Publicado em:

O Estado de S.Paulo

Se você se chama Lúcio e ouvir dizer que sua carne é muito apreciada, não vá logo se sentindo o tal. Considere a possibilidade de que o objeto da consagradora observação seja um xará seu, o lúcio, cujo nome se escreve assim, com minúscula, não por modéstia mas por tratar-se de substantivo comum que designa um tipo de peixe, aliás de boa família, a dos esocídeos, encontrado em rios e lagos europeus - cuja carne, informa o dicionário Houaiss, "é muito apreciada", tanto ou mais, quem sabe, que a dos Lúcios com maiúscula.

Agora suponha que o camarada (você?) se chama Guilherme e alguém lhe conte que os carpinteiros fazem com o guilherme o que bem entendem. Não se ofenda. Guilherme, no caso, é uma "ferramenta usada para fazer os filetes das portas, das junturas das tábuas, frisos de caixilhos etc." Sem você, ou melhor, sem guilherme, a carpintaria não seria o que é.

Já contei como costumo me perder quando vou ao dicionário, e eis aqui uma ilustração de minhas errâncias lexicais. Fui saber o que é "guilho" (já esqueci) - e o que me apareceu imediatamente acima do verbete, no Houaiss eletrônico? O guilherme, substantivo proveniente do francês guillaume (que é como se chamam os Guilhermes de lá), incorporado à língua portuguesa desde o ano de 1713. Foi aí que me perdi de vez, na insana garimpagem de nomes próprios que, sem desdouro de seus portadores, sejam também comuns. Não sei se com isso ganhou alguma coisa a minha cultura, como se sabe escassamente mobiliada, mas pelo menos fiquei em condições de poupar você de se embrenhar também em tão vadia investigação - até porque ela desemboca às vezes em surpresas pouco agradáveis.

Se você se chama Bernardo, por exemplo, saiba que o nome escolhido por seus pais pode significar - quem diz é o Houaiss, não eu - "indivíduo gordo ou estúpido". Ou, em Portugal, ser sinônimo "jocoso" (qual a graça?) de pênis. Console-se com o Gregório, que carrega a mesma desdita e a quem, aliás, o dicionário reserva pecha ainda mais constrangedora, sobre a qual prefiro silenciar.

Estela, além de estrela, designa uma "coluna ou placa de pedra em que os antigos faziam inscrições, geralmente funerárias". Cecília pode ser um arbusto e, ao contrário de todas desse nome que conheço, as serpentes também chamadas "cobra-cega" e "cobra-de-capim". Já beatriz é um peixe - mas não, como o lúcio, de carnes abordáveis, possuidora que é de "espinhos venenosos nas nadadeiras dorsal, anal e pélvica". Cuidado com a beatriz, portanto. O gonçalo, por seu turno, vulgo "bagre-de-água-doce", não faz mal a ninguém.

Ainda quando não vegetem, ao reino vegetal pertencem a marcela, a carolina, a mariana e angélica, todas elas arbustos. Sabia que a mônica é uma variedade de mandioca? E que o polivalente filipe tanto pode ser duas sementes grudadas como uma ave pardacenta e, na Bahia, um "saco, geralmente pequeno e de couro, no qual se guarda comida"? Um saco, o filipe!

Bete é "certo jogo infantil originado do beisebol". O estevão, sem o circunflexo que o humanizaria, pertence a dois reinos, o vegetal e o animal, podendo ser arbusto ou ave, esta de "vocalização alta e maviosa" e conhecida também por uma dezena de outros nomes, entre os quais "esteves", "pixororém" e "tico-tico-guloso".

A marta, além do mamífero de pele tão valorizada, é uma uva, e não qualquer: americana. Quanto à maria, esta você não só conhece como, não me entenda mal, certamente já comeu: aquele biscoito "de formato redondo e espessura muito fina". Redondo como o luís, a conceição, o mauro e nicolau, que são moedas, as três primeiras de ouro, e a última, coitada, de ordinário níquel.

Antes que você pergunte: não há nada que se chame Humberto com minúscula. Mas me lembro do corretor ortográfico, lusitano, de meu primeiro computador, um 286 movido a lenha. Quando não reconhecia uma palavra, oferecia alternativas. No caso de "Humberto", a sugestão era... "jumento". Ainda não sei se fico arrasado ou envaidecido.

Um pouco de sensatez - Caetano Veloso


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Fala Caetano

O Globo

 

Felizmente a ministra Marta Suplicy recuou da decisão de incluir as TVs a cabo no rol dos produtores de cultura beneficiados pelo ministério

Felizmente a ministra Marta Suplicy recuou da decisão de incluir as TVs a cabo no rol dos produtores de cultura beneficiados por mecanismos do ministério. O artigo de Cacá Diegeues na semana passada deixava claro o absurdo que seria a aplicação da nova norma. TVs a cabo fazem dinheiro grande, são dinheiro grande, e nem traduzem os títulos ingleses das séries, quase todas americanas, que apresentam. Um ministério que deseje incentivar a criação cultural no Brasil não tem por que incluí-las em seus programas de incentivo.

Será crível que Marco Feliciano tenha sido escolhido presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias? Na explicação que ele ofereceu aos fiéis da sua igreja, a África é citada várias vezes como “essse país”, o que mostra ignorância a respeito do assunto que tratou com tanta veemência. Nitidamente ele vê a África como um todo unitário. Bem, a maldição dos que, miticamente, foram popular a África já foi usada antes pelos racistas de vários lugares para justificar a escravidão. Feliciano a usa, sem cuidado, para explicar Idi Amin, a Aids, as faminas etc. Uma autoridade responsável por uma comissão de direitos humanos não pode basear suas falas e atitudes em dogmas religiosos. Menos ainda se ele demonstra simplismo grosseiro na interpretação destes.

É difícil admitir que presida uma comissão que supostamente protege as minorias um homem que grita, irado, que se os homossexuais querem fazer “suas porcarias”, que as façam escondidos dentro de seus quartos, em suas casas, nunca se beijando em locais onde suas filhas possam ver “dois homens barbados, de pernas raspadas, aos beijos”. O pleito de casamento gay é um pleito de minoria representada que deve ser estudado por comissões parlamentares que tratem do assunto com calma, lucidez e isenção. Você pode seguir uma fé que determina que os atos homoafetivos são pecado (na verdade, são O PECADÃO, como observou alguém que meditou sobre o assunto, já que é um pecado que, dentre todos, costumava despertar a ira até dos incréus, sendo incomparável com o falso testemunho, a gula ou mesmo a atividade sexual livre entre pessoas de sexos opostos), mas essa maldição religiosa lançada sobre um tema não pode entrar aos berros num grêmio de legisladores que deveria acompanhar o movimento da sociedade auscultando suas forças e tendências. Há religiosos e ateus que odeiam atos homoafetivos e consideram os africanos uns amaldiçoados, mas isso não representa o movimento da sociedade como um todo. As pesquisas na maioria dos países do Ocidente (inclusive o Brasil) não dizem isso. E, mais importante, para além do aspecto democrático dessas auscultações, há de haver princípios de direitos inegociáveis, como é o direito de igualdade de respeito e de oportunidades. É simplesmente grotesco que um religioso que fala em tom tão fanático se eleja presidente de uma comissão que deveria proteger os que têm carência de respeitabilidade e de oportunidades.

Espero que a menção feita por Marina Silva, a quem tanto admiro, à troca “de um preconceito pelo outro”, no caso da discussão sobre a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, não signifique que opor-se à escolha de Feliciano, nos termos em que o faço, é uma mera troca de preconceitos. Contra quê, aliás, seriam os preconceitos de quem discute a escolha? Contra evangélicos? Contra pastores? Contra religiosos em geral? Sim, sem dúvida há. Vejo em filmes e piadas de TV, em conversas e em textos publicados, intolerância contra a vitalidade com que as igrejas neopentecostais se impõem no Brasil. A hipocrisia dos pregadores, a ganância de dinheiro, enfim, tudo o que se pode apontar em toda organização religiosa é quase sempre o aspecto ressaltado. Mas eu nunca me identifiquei com essa atitude. Vejo o crescimento das igrejas evangélicas como uma forma de progresso no nosso caminho para onde devemos ir. Não admiti nunca as campanhas anticandomblé que elas alardeavam. Mas isso serenou. Religião é assunto imenso. Leio Mangabeira. Penso. Acompanho pessoas íntimas que são profundamente religiosas. Umas católicas, outras evangélicas e ainda outras espíritas ou candomblezeiras. Eu próprio não sigo religião. Mas, mesmo que seguisse, teria de entender que Comissão de Direitos Humanos deve tratar dos temas pertinentes de modo não sectário.

Será que o Brasil, além do mini-PIB, terá que passar agora por papagaiadas como essas? São muitas maluquices que podem atrasar nossa caminhada. Ao contrário do que diz Feliciano, o continente africano está se erguendo. O Brasil, tão cheio de promessas desde sempre, será que vai ficar entalado?
Pelo menos Marta viu a luz.


sábado, 16 de março de 2013

SABÁTICO

 O OLHAR POÉTICO DO CRONISTA

Com O  Mais Estranho dos Países, reunião de crônicas que falam do Brasil, eOAmor Acaba, feito de textos sobre esse sentimento, a obra de Paulo Mendes Campos começa a ser reeditada. Leia posfácio inédito de Sérgio Augusto para o livro que trata do País e umensaio de João Cezar de Castro Rocha, da Uerj, a respeito do autor mineiro.




PELOS LABIRINTOS DA POESIA DE BORGES

Augusto de Campos reúne, em antologia, traduções de versos tardios do argentino e o relato de uma entrevista feita em 1984

 

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O CRONISTA DA SOLIDÃO 


Leia a seguir posfácio inédito de O Mais Estranho dos Países, que, ao lado de O Amor Acaba, marca o início da reedição da obra completa do mineiro Paulo Mendes Campos, que une lirismo e erudição


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HOMEM DE LETRAS, CÉTICO DE SI MESMO

Olhar denso sobre o mundo desdobrou-se na multiplicidade de uma escrita que merece urgente e cuidadosa releitura

 

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DE FRENTE PARA OS IMPASSES DO SÉCULO

Lançamentos e reedições, por três editoras, de livros fundamentais do italiano Giorgio Agamben revelam o interesse crescente e a atualidade de sua produção, marcada pela interdisciplinaridade

 

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Sem papas na língua - José Miguel Wisnik


 O Globo - 16/03/2013

 

A renúncia de Bento XVI e a crise atual da Igreja Católica

O curto pontificado de Joseph Ratzinger como Bento XVI teve um enorme valor sintomático. Ele fez vir à tona as contradições e as crises que envolvem o lugar da Igreja católica no mundo. Quis confrontar a filosofia dos “mestres da suspeita”, Marx, Nietzsche, Freud e Foucault, intervindo no debate contemporâneo com a força tradicional da instituição. Quis sustentar sibilinamente que o cristianismo católico é a religião superior aos outros monoteísmos (e foi defendido nisso por René Girard, o autor de “A violência e o sagrado”). Estava no papel que escolheu, mas por isso mesmo o desfecho é tão significativo, tanto pelo seu ineditismo quanto pelas suas implicações filosóficas. Ao mesmo tempo, o pensador político de currículo implacável, no plano doutrinário, deixou a política interna e os subterrâneos do Vaticano ao sabor dos apetites da Cúria e da incúria.

Nada que uma renúncia não engrandeça. A sua figura ambivalente de lobo inquisitorial em pele de ovelha sai santificada pelo gesto moral do desapego, pela confissão de fraqueza e pelo descortino com que fez as cartas serem reembaralhadas e o jogo recomeçar. Os sinais dos tempos passaram a soar, no entanto, de maneira nova e indisfarçável.

Um dos meus profetas é Oswald de Andrade (que une de maneira original Marx, Nietzsche, Freud e o pensamento selvagem). De um ponto de vista oswaldiano, a crise atual da igreja pode ser vista como um capítulo da longa “crise da filosofia messiânica” que atravessa os séculos. O patriarcado, a negação da sexualidade, a concentração das riquezas, dos poderes e a postergação da felicidade para um futuro pós-morte são formas da evitação da felicidade na terra, zeladas por uma casta sacerdotal que se formou em condições já longínquas no tempo, e que vem passando pela erosão dos processos históricos.

Oswald reconhece que o poder de Roma se plasmou na síntese política, filosófica e religiosa “do arbítrio judaico, do motor imóvel de Aristóteles e da experiência mística alexandrina”. Sem Roma, diz ele, “Cristo não teria ocupado por vinte séculos os cimos messiânicos do Patriarcado”. E sem Paulo, “o escravo não teria pleiteado a dignidade individual em Cristo que foi a longínqua semente da revolução burguesa”. Assim, o cristianismo é uma religião de vocação revolucionária, que apontou para a revolução burguesa, para a revolução social e para os direitos humanos. Mas a burguesia já “estornou” há vários séculos a dívida messiânica, convertendo-a em extratos bancários e finalmente em cartões de crédito, e o protestantismo já legitimou esse estorno como modalidade da graça. A adaptação do cristianismo ao espírito do capitalismo encontra sua vertente popular nos evangélicos, que crescem entre aquelas populações que acusam na prática o esvaziamento anacrônico dos ritos católicos, quando incapazes de responder a essas realidades. Nesse quadro, a Igreja romana, com suas pompas hierárquicas e seu imobilismo, tende a converter-se numa relíquia patriarcal a figurar, como peça de museu, entre aquelas que ela mesma colecionou.

Fazem parte essencial da crise das formas de poder patriarcal a emancipação feminina, a liberação da sexualidade como direito e como expressão individual, as reivindicações pelo reconhecimento universal dos direitos dos gays, pelo direito ao aborto e demais decorrências. Mas seria então o grande papel restante dessa instituição milenar, o de contrapor-se a qualquer preço ao avanço desses sinais da modernidade, como queria Bento XVI? Pergunta-se também como se sustenta eticamente essa ciosa denegação do desejo sexual por parte de uma instituição que enfrenta mal seus casos de pedofilia, e que pretenderia aplicar essa mesma denegação a seu bilhão de fieis. A Igreja que tinha isolado os contágios marxistas da Teologia da Libertação ficou às voltas com os rebotes freudianos das suas pulsões e dos seus recalques.

Como estava previsto, a bússola do poder romano teve que inverter seu prumo, apontar para o sul, para o “fim do mundo”, para um lugar onde as bases do catolicismo fossem mais autênticas e numerosas, além de postas em risco de diminuição. Mas a fumaça branca revelou “a zebra do ano”, como disse Tom Zé, aquele que nenhum vaticanista adivinhou. O rito é poderoso em si, quando faz-se o nada e da sacada surge o ser, dessa vez na forma do primeiro não europeu, jesuíta e Francisco. E pelo menos sem a voz melíflua do antecessor. Oswald chama isso de “sentimento órfico”, o poder carismático que a religião divide com a arte, o espetáculo, o esporte. A Igreja na defensiva está agora jogando, desde Roma, pelos flancos do grande tabuleiro. Até que ponto mudará o jogo?


sexta-feira, 15 de março de 2013

Quando menos vale mais -Nelson Motta

NELSON MOTTA - O Estado de S.Paulo
 
 
Como disse a presidente Dilma, com conhecimento de causa, para ganhar eleições faz-se o diabo. Como fez o presidente Geisel, em 1977, editando o "Pacote de abril" para ajudar a Arena a ganhar as eleições legislativas. Entre outras leis e decretos para assegurar a maioria no Congresso, dava mais cadeiras de deputados aos Estados menos populosos e mais pobres e atrasados, dominados pelo governismo e o coronelismo. Ganhou as eleições, mas até hoje o Brasil democrático perde com esse entulho autoritário.

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A gostosa da estação - Arthur Dapieve


A chegada de um mulherão em busca de fama nas praias do Rio

Ainda não esquentou de verdade quando a gostosa da estação chega à praia. Há mães com filhos pequenos na areia, um grupo de atletas da terceira idade perto do mar, dois ou três surfistas à espera de uma onda que não virá. Ninguém presta muita atenção na mulher musculosa, de blusa e short atochados. Ela olha em volta, mas sabe que está bem adiantada. Marcou com o paparazzo apenas para dali a duas horas.

Mundo e guerras ciber - Hermano Vianna


 O Globo - 15/03/2013

 

Alguma obras de ficção não são apenas proféticas: sua leitura exerce tal influência no pensamento contemporâneo que passamos a agir para que aquele universo se transforme em realidade

Vivo momento de descobertas em série de acontecimentos reais previamente “anunciados” em romances. Exemplo da coluna anterior: não prestaria tanta atenção no meteoro russo se não tivesse lido antes a “Trilogia do Gelo” de Vladimir Sorokin. Outras obras de ficção não são apenas proféticas. Sua leitura exerce tal influência no pensamento contemporâneo que passamos a agir, pragmaticamente, para que aquele universo paralelo se transforme em realidade. Esse é o caso de “Neuromancer”, de William Gibson, cuja primeira edição completará 30 anos em 2013. Foi lá que a palavra ciberespaço apareceu pela primeira vez. Ficamos tão encantados com sua descrição ficcional que continuamos trabalhando duro para que o mundo em que vivemos fique cada vez mais parecido — para o bem e para o mal — com tudo que o livro apresentava de mais improvável.

Claro que tive que lembrar de “Neuromancer” — onde as verdadeiras guerras acontecem dentro das redes de computadores — ao me deparar com as notícias, publicadas no final de janeiro, de que a Unidade Ciber Comando do Pentágono vai passar por uma grande expansão nos próximos anos, quintuplicando seu tamanho, segundo o “Washington Post”, e passando dos atuais 900 funcionários para 4.000, segundo o “New York Times”. Fui pego de surpresa: não tinha ideia que as forças armadas dos EUA criaram um comando chamado “ciber”. Curioso e assustado, acabei encontrando a declaração de Leon Panetta, secretário da Defesa na presidência Obama, nos alertando em outubro do ano passado para a possibilidade de um “ciber-Pearl Harbor”.

Seguindo links de texto apocalítico de colunista do “The Guardian”, fui parar em artigo de 1/6/2012 assinado por David E. Sanger, o correspondente chefe do “New York Times” em Washington, que considero uma das peças jornalísticas mais impressionantes do novo século. Se não fossem as credenciais realistas do seu autor e do órgão de imprensa para o qual trabalha, eu desconfiaria que se tratava na verdade da mais delirante criação da ficção científica. Porém, o texto somente revelava pela primeira vez fatos acontecidos há vários anos.

Tudo é nebuloso. O governo Obama, com reforço israelense, teria dado continuidade a projeto secreto anterior— denominado “Jogos olímpicos” — de criação de cibervírus poderoso capaz de sabotar o programa nuclear iraniano. Provavelmente um espião conseguiu entrar em Natanz com um pen drive contendo o vírus que foi passado para a rede de computadores interna — portanto desconectada da internet — dessa usina de refinamento de urânio. Centenas de suas centrifugadoras começaram a deixar de funcionar, mas os técnicos iranianos não desconfiaram de cibersabotagem e sim pensavam que os problema eram gerados por seus próprios erros.

O que aparentemente não estava nos planos americanos (mas há suspeita de que algum hacker militar deixou essa possibilidade aberta de propósito): um laptop de engenheiro pode ter se conectado à rede interna da usina, foi infectado e depois —sem querer — transmitiu o vírus, chamado de Stuxnet, para a internet, contaminando vários sistemas, inclusive bancários. As empresas de antivírus nunca tinham visto nada parecido. Começaram a circular rumores de que deveria haver governos poderosos por trás da nova ameaça. Mas só o artigo de David E. Sanger confirmou o que ninguém tinha coragem de afirmar publicamente.

Resultado, como declarou um ex-chefe da CIA: ficou claro que “alguém cruzou o Rubicão”. Entramos em nova fase, com consequências imprevisíveis, da história das guerras e da estratégia militar, uma realidade bem próxima com aquela de “Neuromancer”. Quando o Irã e a China descobriram o que os EUA e Israel tinham feito, logo criaram seus próprios e secretos cibercomandos. Dezenas de vírus novos e cada vez mais imperceptíveis, como o Flame, podem estar prontos para escapar de uma base militar escondida em algum recanto isolado do planeta. O pior: não existe tratado regulamentando o uso dessas novas ciber-armas, como aquele que cuida da não proliferação do nuclear. E lembrando: o Stuxnet fui utilizado em tempo de paz, onde não havia guerra oficial declarada.

Mesmo países que não pretendem atacar ninguém com vírus eletrônico vão precisar aprender a se defender, detectando ameaças em seu ciberespaço (e hoje tudo, de redes elétricas a hospitais, depende do ciberespaço para funcionar). Detesto voltar a falar de educação neste contexto guerreiro, mas precisamos ser realistas (está tudo cibermisturado): uma nação sem boa cultura de programação digital está condenada a ser vítima fácil de ciber-ataques, mesmo amadores”. Voltarei a falar do lado Jedi da força educativa na coluna da semana que vem.


Leonardo Boff- O papa Francisco é chamado a restaurar a Igreja‏

 O Tempo - 15/03/2013

Francisco tomou ao pé da letra essas palavras e reconstruiu a igrejinha da Porciúncula que existe ainda em Assis dentro de uma imensa catedral. Depois, entendeu que se tratava de algo espiritual: restaurar a "Igreja que Cristo resgatara com seu sangue" (op.cit). Foi então que começou seu movimento de renovação da Igreja, que era presidida pelo papa mais poderoso da história, Inocêncio III. Começou morando com os hansenianos e, de braço com um deles, ia pelos caminhos pregando o evangelho em língua popular, e não em latim. É bom que se saiba que Francisco nunca foi padre, mas apenas leigo. Só no fim da vida, quando os papas proibiram que os leigos pregassem, aceitou ser diácono à condição de não receber nenhuma remuneração pelo cargo.

Por que o cardeal Jorge Mario Bergoglio escolheu o nome de Francisco? A meu ver, foi exatamente porque se deu conta de que a Igreja está em ruínas pela desmoralização dos vários escândalos que atingiram o que ela tinha de mais precioso: a moralidade e a credibilidade.

Francisco não é um nome. É um projeto de Igreja pobre, simples, evangélica e destituída de todo o poder. É uma Igreja que anda pelos caminhos, junto com os últimos; que cria as primeiras comunidades de irmãos que rezam o breviário debaixo de árvores junto com os passarinhos. É uma Igreja ecológica, que chama a todos os seres com as doces palavras de "irmãos e irmãs". Francisco se mostrou obediente à Igreja dos papas e, ao mesmo tempo, seguiu seu próprio caminho com o evangelho da pobreza na mão. Escreveu o então teólogo Joseph Ratzinger: "O não de Francisco àquele tipo imperial de Igreja não poderia ser mais radical, é o que chamaríamos de protesto profético" (em Zeit Jesu,Herder 1970, 269). Ele não fala, simplesmente inaugura o novo.

Creio que o papa Francisco tem em mente uma Igreja assim, fora dos palácios e dos símbolos do poder. Mostrou-o ao aparecer em público. Normalmente, os papas - e Ratzinger, principalmente - punham sobre os ombros a mozeta, aquela capinha cheia de brocados e ouro que só os imperadores podiam usar. O papa Francisco veio simplesmente vestido de branco. Três pontos devem ser ressaltadas em sua fala inaugural e são de grande significação simbólica.

O primeiro: disse que quer "presidir na caridade". Isso, desde a Reforma e nos melhores teólogos do ecumenismo, era pedido. O papa não deve presidir como um monarca absoluto, revestido de poder sagrado como o prevê o direito canônico. Segundo Jesus, deve presidir no amor e fortalecer a fé dos irmãos e irmãs.

O segundo: deu centralidade ao povo de Deus, tão realçada pelo Vaticano II e posta de lado pelos dois papas anteriores em favor da hierarquia. O papa Francisco, humildemente, pede que o povo de Deus reze por ele e o abençoe. Somente depois, ele abençoará o povo de Deus. Isso significa: ele está aí para servir, e não para ser servido. Pede que o ajudem a construir um caminho juntos. E clama por fraternidade para toda a humanidade, onde os seres humanos não se reconhecem como irmãos e irmãs, mas estão atados às forças da economia.

Por fim, evitou toda a espetacularização da figura do papa. Não estendeu os braços para saudar o povo. Ficou parado, imóvel, sério e sóbrio - eu diria quase assustado. Apenas se via a figura branca que olhava com carinho para a multidão. Mas irradiava paz e confiança. Usou de humor falando sem uma retórica oficialista. Como um pastor fala aos seus fiéis.

Cabe, por último, ressaltar que é um papa que vem do "Grande Sul", onde estão os pobres da humanidade e onde vivem 60% dos católicos. Com sua experiência de pastor, com uma nova visão das coisas, a partir de baixo, poderá reformar a Cúria, descentralizar a administração e conferir um rosto novo e crível à Igreja.

Leonardo Boff é autor de "São Francisco de Assis: Ternura e Vigor", Vozes 1999.