segunda-feira, 8 de abril de 2013

Conversa na Catedral

REVISTA VEJA 08/04/2013

Religião

VEJA publica, com exclusividade, trechos dos diálogos entre Jorge Bergoglio, o então arcebispo de Buenos Aires e hoje papa Francisco, e o rabino Abraham Skorka. O resultado é um duelo de inteligências.
Não havia tema proibido nos encontros realizados semanalmente, ao longo de 2010, entre as duas maiores autoridades religiosas da Argentina — o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, e o rabino Abraham Skorka, doutor em química, professor de Bíblia e de literatura rabínica no Seminário Rabínico Latino-Americano. As conversas, quase sempre na catedral portenha, muitas vezes no escritório de Skorka, trataram de ateísmo, celibato, homossexualidade, aborto e divórcio. O resultado foi transformado no livro Sobre o Céu e a Terra (tradução de Sandra Manha Dolinsky; Paralela; 208 páginas: 24,90 reais). Não há guia mais adequado para entender a cabeça do papa Francisco, o jesuíta com comportamento franciscano.

Ateísmo

Jorge Bergoglio - Quando me encontro com pessoas ateias, compartilho com elas as questões humanas, mas não toco de cara no problema de Deus, exceto no caso de falarem comigo sobre o assunto. Quando isso acontece, eu lhes conto por que acredito. O humano é tão rico para compartilhar, para trabalhar, que tranquilamente podemos complementar mutuamente nossas riquezas. Como sou crente, sei que essas riquezas são um dom de Deus. Também sei que o outro, o ateu, não sabe disso. Não encaro a relação para fazer proselitismo com um ateu, eu o respeito e me mostro como sou. Na medida em que haja conhecimento, aparecem o apreço, o afeto, a amizade. Não tenho nenhum tipo de reticência, não diria que sua vida está condenada, porque tenho certeza de que não tenho direito de julgar a honestidade dessa pessoa. Muito menos quando me mostra virtudes humanas, essas que engrandecem as pessoas e me fazem bem. De qualquer forma, conheço mais gente agnóstica que ateia; o primeiro é mais dubitativo, o segundo está convencido. Temos de ser coerentes com a mensagem que recebemos da Bíblia: todo homem é imagem de Deus, seja crente ou não. Por essa única razão, ele conta com uma série de virtudes, qualidades, grandezas. E caso tenha baixezas, como eu também as tenho, podemos compartilhá-las para nos ajudar mutuamente a superá-las.

Abraham Skorka - Concordo com o que o senhor disse: o primeiro passo é respeitar o próximo. Mas eu acrescentaria um ponto de vista: quando uma pessoa diz "eu sou ateu", acredito que está assumindo uma postura arrogante. A posição mais rica é a daquele que duvida. O agnóstico pensa que ainda não encontrou a resposta, agora o ateu tem certeza, 100%, de que Deus não existe. Tem a mesma arrogância de quem garante que Deus existe, tal como existe esta cadeira sobre a qual estou sentado. Nós, religiosos, somos crentes, não damos por cena Sua existência. Podemos percebê-la em um encontro muito, muito, mas muito profundo, mas nunca O vemos. Recebemos respostas sutis. A única pessoa que, segundo a Torá, explicitamente falava com Deus, cara a cara, era Moisés. Aos outros — Jacó, Isaac —, a presença de Deus chegava em sonhos ou em refrações. Dizer que Deus existe, como se fosse mais uma certeza, também é uma arrogância, por mais que eu acredite que Deus existe. Não posso afirmar superficialmente Sua existência porque tenho de ter a mesma humildade que exijo do ateu. O exato seria dizer — como Maimônides enuncia em seus treze princípios da fé — "eu acredito com fé plena que Deus é o Criador". Seguindo a linha de Maimônides, podemos dizer o que Deus não é, mas não podemos assegurar o que Deus é. Podemos mencionar suas qualidades, seus atributos, mas de jeito nenhum podemos lhe dar forma. Eu recordaria ao ateu que há uma perfeição na natureza que está enviando uma mensagem: podemos conhecer suas fórmulas, mas nunca sua essência.

Celibato

Bergoglio - Faço um esclarecimento: o sacerdote católico não se casa na tradição ocidental, mas pode fazê-lo na oriental. Ali casa-se antes de receber a ordenação; se já foi ordenado, então não pode se casar. E o laico católico, que vive em plenitude, está metido no mundo até o pescoço, mas sem se deixar levar pelo espírito do mundo. E isso é muito difícil. Agora, o que acontece conosco, os consagrados? Somos tão fracos que sempre há a tentação da incoerência. Queremos tudo, o bom da consagração e o bom da vida laica. Antes de entrar no seminário, eu andava por esse caminho. Mas depois, quando se cultiva essa escolha religiosa, encontra-se força nesse outro caminho. Eu, pelo menos, vivo assim, o que não impede que se conheça uma garota por aí. Quando eu era seminarista, fiquei deslumbrado por uma garota que conheci no casamento de um tio. Fiquei surpreso com sua beleza, sua luz intelectual... e, bem, andei confuso um bom tempo, pensava sem parar. Quando voltei ao seminário, depois do casamento, não consegui rezar ao longo de uma semana inteira, porque, quando me dispunha a orar, a garota aparecia em minha cabeça. Tive de voltar a pensar no que estava fazendo. Ainda era livre porque era seminarista, podia voltar para casa e tchau. Tive de repensar a opção. Tomei a escolher — ou a me deixar escolher — o caminho religioso. Seria anormal se não acontecessem coisas desse tipo. Quando isso acontece, temos de nos situar novamente. Temos de ver se voltamos a escolher ou dizemos: "Não, isso que estou sentindo é maravilhoso, tenho medo de que depois eu não seja fiel a meu compromisso. Vou deixar o seminário". Quando acontece algo assim com algum seminarista, eu o ajudo a ir em paz, a ser um bom cristão e não um mau padre. Na Igreja ocidental, à qual pertenço, os padres não podem se casar como nas igrejas católicas bizantina, ucraniana. russa ou grega. Nelas, os sacerdotes podem se casar; os bispos não, têm de ser celibatários. Eles são muito bons padres. Às vezes debocho deles, digo que têm mulher em casa, mas que não perceberam que também compraram uma sogra. No catolicismo ocidental, o tema é discutido impulsionado por algumas organizações. Por enquanto, a disciplina do celibato se mantém firme. Há quem diga, com certo pragmatismo, que estamos perdendo mão de obra. Se, hipoteticamente, o catolicismo ocidental revisasse o tema do celibato, acredito que o faria por razões culturais (como no Oriente), não tanto como opção universal. Por ora, sou a favor de que se mantenha o celibato, com seus prós e contras, porque são dez séculos de boas experiências, mais que de falhas. O que acontece é que os escândalos se veem logo. A tradição tem peso e validez. Os ministros católicos foram escolhendo o celibato pouco a pouco. Até o ano 1100, havia quem optasse por ele e quem não. Depois, no Oriente se seguiu a tradição não celibatária como opção pessoal, e no Ocidente o contrário. É uma questão de disciplina, não de fé. Isso pode mudar. Pessoalmente, nunca passou por minha cabeça me casar. Mas há casos. Veja o do presidente paraguaio Fernando Lugo, um sujeito brilhante. Mas, sendo bispo, teve um deslize e renunciou à diocese. Nessa decisão foi honesto. Às vezes surgem padres que caem nisso.

Skorka - E qual é a sua postura?
Bergoglio - Se um deles vem e me diz que engravidou uma mulher, eu o escuto, procuro fazer com que tenha paz e, pouco a pouco, faço-o perceber que o direito natural é anterior a seu direito como padre. Portanto, ele tem de deixar o ministério e assumir esse filho, mesmo que decida não se casar com essa mulher. Porque, assim como essa criança tem direito a ter uma mãe, tem direito a ter o rosto de um pai. Eu me comprometo a cuidar de toda a papelada em Roma, mas ele deve deixar tudo. Agora, se um padre me diz que se entusiasmou, que teve um deslize, eu o ajudo a se corrigir. Alguns padres se corrigem, outros não. Alguns, lamentavelmente, nem contam ao bispo.

Skorka - Que significa se corrigir?
Bergoglio - Fazer penitência, respeitar seu celibato. A vida dupla não nos faz bem. não gosto disso, significa substanciar a falsidade. Às vezes lhes digo: "Se não puder superar isso, decida-se".

Culpa
Bergoglio - A culpa pode ser entendida em duas acepções: como transgressão e como sentimento psicológico. Essa última não é religiosa; mais ainda, eu me atreveria a dizer que pode inclusive suprir um sentimento religioso, algo assim como a voz interior que diz que me enganei, que agi mal. Algumas pessoas são "culpogênicas", porque precisam viver em culpa; esse sentimento psicológico é doentio. Além disso, entender-se com a misericórdia de Deus parece muito mais fácil tendo esse sentimento de culpa, porque vou me confessar e pronto: o Senhor já me perdoou. Mas não é tão fácil, porque foi simplesmente para que lhe tirassem a mácula. E a transgressão é algo mais sério que uma mera mácula. Há pessoas que brincam com isso de culpa, e, então, transformam o encontro com a misericórdia de Deus em algo como ir à tinturaria, é só limpar a mancha. E assim vão degradando as coisas.

Skorka - Concordo totalmente. Uma coisa é o anedótico — os conselhos populares, a imagem da mãe judia "culpogênica" —, mas isso não tem nada a ver com a essência da concepção judaico-cristã da culpa, porque, quando alguém comete uma transgressão, existe uma possibilidade de se redimir. A pessoa tem de mudar para não tornar a cometer essa transgressão. Não basta dizer: "Eu me enganei", e acabou a história. É claro que ajuda fazer uma oração, realizar uma doação como um ato de caridade profundo, mas desde que sejam manifestações de uma elaboração sincera. Quando se fala que as religiões jogam com a transmissão da culpa judaico-cristã é uma incompreensão imensa, pois, nessa concepção, o fato de cometer uma transgressão não é o fim do mundo. Todo mundo pode se equivocar. mas é preciso reparar, consertar. E, acima de tudo, não tomar a cometer a falta.

Bergoglio - A mera culpa pertence ao mundo do idolátrico. É mais um recurso humano. A culpa sem reparação não me deixa crescer.

Aborto
Bergoglio - O problema moral do aborto é de natureza pré-religiosa, porque, no momento da concepção, está ali o código genético da pessoa. Ali já há um ser humano. Separo
o tema do aborto de qualquer concepção religiosa. É um problema científico. Não deixar avançar o desenvolvimento de um ente que já tem todo o código genético de um ser humano não é ético. O direito à vida é o primeiro dos direitos humanos. Abortar é matar quem não pode se defender.

Skorka - O problema de nossa sociedade é que ela perdeu, em grande medida, o respeito pela sacralidade da vida. O primeiro ponto problemático é falar do aborto como se fosse um tema simples e o mais normal do mundo. Não é assim: por mais que seja uma célula, estamos falando de um ser humano. Portanto, o tema merece um âmbito muito especial de discussão. Vê-se frequentemente que todo mundo dá a sua opinião, sem informação exata, sem conhecimentos. O judaísmo, em termos gerais, condena o aborto, mas há situações em que é permitido. Por exemplo, quando a vida da mãe está em perigo. Há diversos casos em que se autoriza o aborto. Mas o interessante é que os antigos sábios judeus do Talmude o proibiram absolutamente nos outros povos quando analisaram as leis dos gentios, o que seria o jus gentium no Talmude. Minha interpretação é que, como sabiam do que acontecia em Roma, queriam evitar ter de discutir a possibilidade do abono em uma sociedade na qual a vida não era muito respeitada. Podemos encontrar no Talmude uma análise exaustiva da pena de morte. Embora esse castigo apareça na Torâ, alguns sábios são da opinião de que deve ser restringida até tomar impossível sua aplicação. E há quem defenda com argumentos uma postura menos restritiva. Os sábios de cada geração é que, com base nas conjunturas que enfrentarão, aplicarão a pena de acordo com um critério ou outro. Algo semelhante ocorre com o aborto. E claro que o judaísmo o abomina e condena, salvo no caso claro, como explica a Mishná, de que a mãe corra um inquestionável perigo de morte. Nessas ocasiões, privilegia-se sua vida.

União homossexual

Skorka - O modo como se tratou o tema do casamento homossexual foi, em meu entender, deficiente no que diz respeito à profundidade da análise que o assunto merece. Embora de fato já existam muitos casais do mesmo sexo que coabitam e merecem uma solução legal em questões como pensão, herança etc. — que bem podem se enquadrar em uma figura jurídica nova —, equiparar o casal homossexual ao heterossexual já é outra coisa. Não é só uma questão de crenças, e sim de ter consciência de que estamos tocando em um dos elementos mais sensíveis da constituição de nossa cultura. Faltaram mais análises e estudos antropológicos sobre a questão. Paralelamente a isso, é claro que se deveria ter dado maior espaço de informação aos credos, como portadores e formadores de cultura. Deveriam ter sido organizados debates no seio dos próprios credos, com suas variadas tendências, para formar um espectro completo de opiniões.

Bergoglio - A religião tem direito de opinar, pois está a serviço das pessoas. Se alguém pede um conselho, tenho direito de dá-lo. O ministro religioso às vezes chama a atenção sobre certos pontos da vida privada ou pública porque é o condutor dos fiéis. Mas não tem direito de forçar nada na vida privada de ninguém. Se Deus, na criação, correu o risco de nos fazer livres, quem sou eu para me meter? Nós condenamos o assédio espiritual, que acontece quando um ministro impõe de tal modo as normas, as condutas, as exigências, que priva a liberdade do outro. Deus deixou em nossas mãos até a liberdade de pecar. Temos de falar muito claro dos valores, dos limites, dos mandamentos, mas o assédio espiritual, pastoral, não é permitido.

Skorka – (...) A lei judaica proíbe relações entre homens. Estritamente, o que diz a Bíblia é que os homens não devem ter relações no estilo das que homens têm com mulheres. Disso se deduz toda uma postura. O ideal do ser humano, desde o Gênesis, é unir um homem e uma mulher. A lei judaica é clara: não pode haver homossexualidade. Por outro lado, eu respeito qualquer indivíduo, desde que mantenha uma atitude de recato e intimidade. Em relação à nova lei, não me convence do ponto de vista antropológico. Ao reler Freud e Lévi-Strauss quando se referem aos elementos formadores daquilo que conhecemos como cultura, e o valor que dão à proibição das relações incestuosas e à ética sexual, como base do processo de civilização, preocupam-me os resultados que essas mudanças podem produzir no seio de nossa sociedade.

Bergoglio - Penso exatamente a mesma coisa. Para defini-lo, eu utilizaria a expressão "retrocesso antropológico", porque seria debilitar uma instituição milenar criada de acordo com a natureza e a antropologia. Há cinquenta anos, o concubinato não era uma coisa socialmente tão comum como agora. Era até uma palavra claramente pejorativa. Depois, a situação foi mudando. Hoje, coabitar antes de se casar, embora não seja o correto do ponto de vista religioso, não tem o peso social pejorativo de cinquenta anos atrás. É um fato sociológico, que certamente não tem a plenitude nem a grandeza do casamento, que é um valor milenar que merece ser defendido. Por isso, alertamos sobre sua possível desvalorização, e, antes de modificar uma jurisprudência, é preciso refletir muito sobre tudo o que está em jogo. Para nós também é importante o que o senhor acaba de apontar, a base do direito natural que aparece na Bíblia, que fala da união do homem e da mulher. Sempre houve homossexuais. A ilha de Lesbos era conhecida porque ali viviam mulheres homossexuais. Mas nunca ocorreu na história que se tentasse dar a essa relação o mesmo status do casamento. Era tolerada ou não, admirada ou não, mas nunca equiparada.

Divórcio

Bergoglio - O tema do divórcio é diferente daquele do casamento de pessoas do mesmo sexo. A Igreja sempre repudiou a Lei de Divórcio Vincular, mas é verdade que há antecedentes antropológicos diferentes nesse caso. Nessa oportunidade, nos anos 1980, deu-se um debate mais religioso, porque o casamento até que a morte os separe é um valor muito fone no catolicismo. Hoje, entretanto, na doutrina católica recordamos a nossos fiéis divorciados e casados de novo que não estão excomungados — embora vivam em uma situação à margem daquilo que a indissolubilidade matrimonial e o sacramento do casamento exigem —, e lhes pedimos que se integrem à vida paroquial. As igrejas ortodoxas ainda têm uma abertura maior em relação ao divórcio. Naquele debate houve oposição, mas com matizes. Houve posições extremas que nem todos compartilhavam. Alguns diziam que era melhor que não se aprovasse o divórcio, mas também havia outros mais abertos ao diálogo do ponto de vista político.

Skorka - Na religião judia, a instituição do divórcio existe, sendo aplicada na Halachá, a legislação rabínica. É claro, é um drama. Não é uma questão de fé, como no catolicismo, porque sua posição deriva da leitura dos Evangelhos, que dizem que Jesus teve uma postura dura em relação ao divórcio, como a adotada pela casa de Shamai, conforme atesta o Talmude. Para o judaísmo, quando o casamento não dá certo, quando depois de muitos esforços para conciliar as partes as incompatibilidades persistem, então ajudamos a formalizar o ato de divórcio. Exponho o tema nesses termos porque, no judaísmo, o rabino ou o tribunal rabínico não declaram nem decretam o novo estado das panes, só supervisionam para que a dissolução seja de acordo com as normas. São o homem e a mulher que assumem e declaram seu novo estado, assim como quando se casam. É um ato íntimo do casal, supervisionado por um conhecedor da lei para confirmar que o realizado é correto. Por isso não foi tão conflituoso aquele debate. Algo parecido aconteceu quando foram discutidos os métodos de reprodução assistida. O judaísmo era a favor porque era uma maneira de ajudar Deus para que uma mulher pudesse ser mãe, para melhorar a condição do indivíduo sofredor. É uma postura mais dinâmica que a católica. O catolicismo é mais duro, tem posturas mais restritivas nesses temas. Mas, quando se levantam todas essas questões no seio de uma sociedade democrática, é preciso tentar chegar a consensos.

CASAMENTO GAY

 Veja - 08/04/2013

A REVELAÇÃO PÚBLICA DE DANIELA

Ao anunciar a união com uma jornalista de televisão, a quem chama de esposa, a cantora baiana Daniela Mercury tomou obrigatória a discussão sobre o casamento gay no Brasil.

"Seja o que Deus quiser, Malu.” Daniela Mercury olhou para a companheira, em um quarto de hotel de Lisboa, onde esteve na semana passada para uma série de shows, tocou no ícone compartilhar do Instagram e pôs no ar uma colagem de fotos dela com a jornalista Malu Verçosa, editora na TV Bahia, afiliada da Globo. No cabeçalho, escreveu a frase que provocaria mais de 17000 reações de “curtir” coladas à revelação: “Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar”. E o Brasil inteiro ficou sabendo que ela saíra do armário, como se diz no jargão popular para definir a pessoa que assume sua homossexualidade, e que decidira trocar alianças — mas ainda não assinar papéis no cartório — com a namorada recente, de apenas dois meses e meio (na cronometragem oficial, descontado o período de segredo). Houve estardalhaço — saiu no Jornal Nacional. Daniela — mãe de dois filhos já adultos, do primeiro casamento, e de outros três adotados, do segundo, ambos relações convencionais — nunca admitira sua orientação sexual. Seja o que Deus quiser, portanto.

Mas Deus vai querer? Se depender da hierarquia das igrejas que falam em nome Dele, a resposta será um sonoro “não" dos líderes evangélicos brasileiros, um “sim” enfático dos anglicanos e um “sim” condicional dos católicos. “Se Deus, na criação, correu o risco de nos fazer livres, quem sou eu para me meter?”, foi a reação do jesuíta Mario Bergoglio, o papa Francisco, sobre o casamento gay em seu diálogo com o rabino Abraham Skorka (veja a reportagem na pág. 94). Bergoglio elabora sua resposta e diz que o papel do pastor é alertar o fiel para os perigos de pecar e nunca induzi-lo a determinado tipo de ação na vida privada. Mas pelo menos até que Ele a convoque para um acerto de contas, Daniela tem pouco com que se preocupar com as repercussões religiosas de seu anúncio. O casamento gay tem hoje mais implicações de ordem prática do que de consciência.

Depois do anúncio, Daniela divulgou uma nota na qual citou o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Escreveu a cantora: “Numa época em que temos um Feliciano desrespeitando os direitos humanos, grito meu amor aos sete ventos. Quem sabe haja alguma lucidez no Congresso Brasileiro”. Ao misturar seu relacionamento com política, Daniela prestou um desserviço ao mesmo tempo ao romantismo e à sua seriedade de propósitos. O presidente do STF, Joaquim Barbosa, ajudou a por a questão em sua real perspectiva durante uma palestra na UNB: “É simples: o deputado Marco Feliciano foi eleito pelos seus pares para assumir determinado cargo dentro do Congresso Nacional. Perfeito. Agora, a sociedade tem direito de se exprimir contrariamente à presença dele nesse cargo. Isso é democracia”.

É natural e positivo que as instituições tratem as mudanças comportamentais radicais com a cautela devida. É natural e positivo também que as pessoas possam ter tempo para se acostumar com esses novos ordenamentos sociais e avanços comportamentais. É assim que as mudanças se legitimam, superando a intolerância, que se dilui com o tempo em formas cada vez mais brandas de rejeição até se tomarem invisíveis. Confrontada com a questão do casamento gay, a Suprema Corte dos EUA optou pela cautela. Pediu mais tempo para que os juizes avaliem todas as repercussões de um vez mais provável reconhecimento legal de uma situação de fato.

No Brasil, o STF reconheceu a união estável gay em 2011. A partir de parceiros do mesmo sexo numa relação contínua e duradoura, com o objetivo principal de constituir família, podem receber herança em caso de morte de um dos dois, receber pensão alimentícia, optar pela comunhão parcial de bens, e também adotar crianças. Em seis estados brasileiros (Alagoas, Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo) os cartórios já fazem o casamento civil homossexual, o que põe os casais juridicamente um degrau acima do status de união estável. Cerca de 400 casais gays brasileiros conseguiram a certidão de matrimônio desde o “sim” do STF. Esse número só tende a crescer.

É discernível uma tendência evolutiva rumo à aceitação no que diz respeito aos homossexuais. O que já foi visto como doença física no passado foi em uma fase posterior encarado como comportamento desviante provocado por defeito de criação — ou seja, produto de lares com mães superprotetoras e pais ausentes e violentos. As concepções erradas davam origem às reações sociais desastradas. A "rebelião de Stonewall”, os seis dias de confronto entre policiais e gays, em Nova York, ocorreu há pouco mais de quarenta anos. Desde então os gays deixaram de ser caso de polícia. Os estudiosos desvendaram o peso da determinação genética, o que esvaziou as falsas considerações morais sobre eles. Recentemente a homossexualidade tem sido descrita como uma adaptação evolutiva da espécie. Isso significa que muitas sociedades não apenas deixaram de ser hostis aos gays como passaram a ver contribuições positivas para o grupo na existência deles.

“A homossexualidade representa diversidade e ela é sempre positiva para a sociedade”, diz Edward Wilson, o grande biólogo americano de Harvard. autor de um livro recente, A Conquista Social da Terra, que funde de maneira inédita as análises genéticas e culturais do comportamento humano (veja a Carta ao Leitor, na página 12). Wilson põe a homossexualidade em campo diametralmente oposto, por exemplo, ao do incesto, este, sim, um desvio comportamental que não apenas abala o edifício moral das sociedades como empobrece a diversidade genética tão necessária para a sobrevivência sadia da espécie humana. Wilson diz que isso explicaria as razões da crescente aceitação da homossexualidade em contraste com a existência consentida do incesto somente em alguns pontos isolados da África e da Ásia — ainda assim com aceitação apenas ritualística em casamentos de chefes tribais. O mesmo processo sociogenético-cultural que, como demonstra Edward Wilson, vem chancelando a homossexualidade atua fortemente na rejeição da pedofilia e da poligamia. O que a biologia evolutiva constatou pelo método científico as pessoas percebem no cotidiano. Quanto mais jovem o grupo, menos seus integrantes consideram homossexualidade um assunto polêmico. Os jovens em quase todas as partes são cada vez mais o que os sociólogos chamam de “gender blind” — ou seja, eles olham uma pessoa, percebem que tipo de roupa ela usa, que corte de cabelo, mas se a pessoa é gay ou não é um ponto que não chama atenção.

O casamento gay coloca um desafio de outra ordem. Não se trata mais da simples aceitação pelo grupo de adolescentes ou jovens adultos — mas do reconhecimento pelas instituições de que os direitos civis podem ser automaticamente aplicados aos relacionamentos homossexuais duradouros. Isso é mais complexo. Esse processo exige que vanguardas e maiorias conservadoras realizem uma tensa dança do acasalamento até que a intolerância se dissolva em rejeição e essa em aceitação legal — o que não significa que os dois lados vão despeitar um dia depois da aprovação da eventual legalização do casamento gay concordando sobre todas as questões. Mas esse processo de negociação é inevitável.

É da natureza humana que as minorias liderem as transformações, na vanguarda, e que as maiorias, sempre mais apegadas ao que já existe, se incomodem. Impossível é fugir da existência de uma novidade que exclui a indiferença. Foi assim com o divórcio e com o movimento em defesa do voto feminino, no início do século XX, nos EUA e na Inglaterra. As mulheres já tratavam de política dentro de casa, opinavam sobre o cotidiano com o marido — mas o salto só se deu com a aprovação legal do voto. É o que ocorre agora com o ingresso do casamento gay nos tribunais.

Se a aprovação da união homossexual fosse simplesmente a institucionalização de uma postura que já estava acontecendo entre quatro paredes, seria mais fácil crer que essa transformação se daria de modo ainda mais acelerado. Mas há um complicador. Como estender aos gays as proteções legais dadas ao casamento pelo simples fato de ele, ao fim e ao cabo, propiciar a perpetuação da espécie pela procriação? As pesquisas de opinião no Brasil mostram que nem mesmo a adoção de crianças ou o recurso a barrigas de aluguel ou inseminação artificial demovem a maioria heterossexual da convicção de que os casais gays são incapazes de criar um lar estável. Nos EUA a resistência é bem menor, mas a questão ainda está longe de ser unanimidade. “Parece-me que os gays estão lutando pelo casamento. Eu receio que isso signifique rebaixar o que é o casamento”, disse o ator inglês Jeremy Irons ao site noticioso Huffington Post.

Além da intolerância e agressividade dos militantes, há descontentamento de bom número de pessoas com a redução de questões éticas de alta complexidade — caso também do abono e da eutanásia — a uma simples luta por direitos. Escreveram os especialistas em ética Claire Andre e Manuel Velasquez: “Muitas controvérsias morais hoje se expressam na linguagem dos direitos. Há uma explosão de recursos pelos direitos dos homossexuais, direitos dos prisioneiros, direitos dos animais, direitos dos não fumantes e dos fumantes, direitos dos fetos e direitos dos trabalhadores”. O reconhecimento do direito dos homossexuais perante as leis é, portanto, apenas um aspecto de uma questão social de conseqüências ainda não totalmente conhecidas. Mas apenas fingir que o novo não existe é insuficiente para preservar o velho.
 Com reportagem de Álvaro Leme, Bela Megale, Carlos Giffoni, Carolina Melo e Kalleo Coura.

E pensar que já foi assim...

Cada sociedade tem seu próprio tempo para maturar (ou não) mudanças sociais. Nos EUA, ao contrário do Brasil, a aceitação dos gays vem disparando — mas isso é recente

É um caso raro, talvez único: o presidente dos Estados Unidos assina uma lei e, depois de apear do poder, diz que ela é inconstitucional. Em 1996, pouco antes de concorrer à reeleição, Bill Clinton sancionou a lei que define o casamento como união "entre um homem e uma mulher". Queria o voto dos conservadores e temia desagradar aos liberais, mas assinou — na calada da noite, faltando dez minutos para 1 da madrugada, sem foto nem cerimônia, mas assinou. Ganhou a reeleição, cumpriu seu segundo mandato e, no mês passado, defendeu a ideia de que o documento que leva sua assinatura fere o princípio da igualdade entre os cidadãos da Constituição.

A inflexão de Clinton se explica numa aritmética elementar. Em 1996, só 27% dos americanos apoiavam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Hoje, são mais da metade. O apoio cresce tanto que a Suprema Corte, numa audiência pública sobre a constitucionalidade do casamento gay, deu a impressão de que prefere não legislar sobre o assunto, deixando que cada estado decida o que julgar mais apropriado. A decisão final da Corte sai até junho. Pode deixar o assunto para os estados, como transpareceu na audiência, mas pode surpreender, aprovando o casamento gay para o país todo. Nem os militantes gays ficaram incomodados com a aparente cautela dos juízes, pois, cada vez que sai um plebiscito sobre o assunto, vencem. Em novembro, ganharam em quatro estados: Washington, Maine, Maryland e Minnesota. (Mais a eleição, por Wisconsin, da primeira senadora abertamente gay.) A revista Time colocou na capa um casal homossexual beijando-se na boca sob a seguinte chamada: "O casamento gay ganhou. A Suprema Corte ainda não decidiu, mas o país já".

Cada sociedade tem seu ritmo próprio para aceitar (ou não) novos comportamentos sociais. No Brasil dos anos 50, o cardeal de São Paulo, dom Carmelo Motta, achava que a aprovação do divórcio era motivo para pegar em armas, e as desquitadas eram comparadas com "mulheres da vida". Até o fim dos anos 60, os gays americanos se reuniam às escondidas em bares que pagavam propina à polícia para evitar batidas. Percorreram uma longa trajetória em busca de aceitação. Até 2004, a maioria dos americanos era contra o casamento homossexual. Desde então, o apoio entrou numa espiral ascendente. Por dois motivos. Os jovens que estão chegando à idade adulta são francamente favoráveis aos gays. O outro motivo é que as pessoas mudam de ideia, inclusive as mais velhas. Na "geração silenciosa", formada pelos nascidos entre 1928 e 1945, apenas 17% apoiavam o casamento gay há dez anos. Hoje, são 31%. Pois é, as coisas mudam devagar, mas mudam tanto que fazem até presidente dizer que assinou lei inconstitucional.

André Petry de Nova York.

Contra a "engenharia social"

Mais da metade dos franceses não vê com bons olhos a instituição do casamento gay. Mas o movimento não é reacionário: conta com homossexuais e tem algo de 1968.

Em maio de 1968, Paris foi palco de manifestações estudantis contra a velha ordem. "A imaginação no poder" e "Seja realista, exija o impossível" eram dois dos slogans que transbordaram para países do Ocidente e da América Latina, com variações locais que sopravam na mesma direção de modernizar hábitos — e, no extremo, transformar o sistema. O arco aqui ia da ressurreição do anarquismo à improvável mutação do marxismo em ideologia libertária. Maio de 1968 transformou as relações familiares e amorosas, mas propiciou o surgimento de grupos terroristas e causou a substituição dos paralelepípedos por asfalto nas ruas parisienses, a fim de evitar que os estudantes os arrancassem para jogar nos policiais. Uma pena do ponto de vista estético. Quase meio século depois, as maiores manifestações ocorridas em Paris parecem ir na direção contrária em relação a novidades comportamentais. São contra a legalização do casamento gay nos moldes propostos pelo governo. Uma delas reuniu quase 1 milhão de pessoas, em janeiro. A outra, realizada em março, mobilizou peno de 500 000 cidadãos e acabou em pancadaria. depois que um grupo tentou sair dos limites geográficos estabelecidos pelas autoridades. Agora, protestos menores e diários pressionam o Senado a emendar o projeto de lei aprovado pelos deputados.

O movimento, contudo, não pode ser definido como reacionário, embora a Igreja seja forte patrocinadora. Não é incorreto dizer que em diversos aspectos, ele é fruto de 1968. Sua líder, por exemplo, é a comediante Frigide Baijot (trocadilho com o nome da atriz famosa que significa Frígida Doidona) — católica, mas não uma carola de bigode ligada ao Opus Dei. Esse movimento abriga famílias com recasamentos, aglutina homossexuais avessos ao padrão heterossexual e conta com a simpatia de mais da metade da população, em boa pane desobediente aos ditames do Vaticano. Seus integrantes não são contrários à união de gays perante a lei. O que não querem ver aprovada é uma legislação que iguale casais homossexuais a heterossexuais, em especial quanto à reprodução médica assistida. Não acham bom que bebês nasçam de dois pais (por meio de barriga de aluguel, obviamente) ou de duas mães, porque essas crianças teriam problemas psicológicos. A lei abre brecha para os gays "gerarem" filhos. "Ao abolir a distinção entre héteros e gays, no que se refere à reprodução, o governo mostra o seu viés autoritário. O nome disso é engenharia social. Viva a diferença!", diz Frigide Baijot. Parece a fala de uma manifestante de 1968.

Mario Sabino, de Paris.


Maiorias e Minorias 

 

Uma reportagem desta edição de VEJA fala das ondas de choque provocadas pela decisão da cantora baiana Daniela Mercury de, depois de dois casamentos convencionais, proclamar publicamente pelo Insta-gram sua paixão por uma mulher, Malu, a quem chama de esposa. Se havia alguma possibilidade de a questão do casamento homossexual no Brasil ficar restrita aos militantes e seus adversários da bancada religiosa do Congresso, ela se evaporou na quarta-feira passada. O post de Daniela espalhou-se rapidamente pelas redes sociais, virou notícia no Jornal Nacional e na rede internacional CNN, onde a cantora já foi descrita como a “Madonna brasileira”. Daniela colocou o assunto no horário nobre da televisão brasileira e, mesmo subtraindo o senso de oportunismo de promoção pessoal, a tendência agora é que a discussão se alastre.

O assunto é complexo e convida à discórdia. Pessoas sem nenhum sentimento de rejeição aos homossexuais são contra o reconhecimento legal da união marital entre indivíduos do mesmo sexo. Boa parte se irrita mesmo é com a agressividade de militantes dos movimentos gays e sua fúria implacável dirigida a quem quer que ouse divergir minimamente deles. Mas é fato que muita gente intelectualmente honesta, despida de dogmas religiosos e indiferente ao tipo de atividade sexual que adultos pratiquem consensualmente entre quatro paredes, não vê com naturalidade a união homossexual ao amparo da lei. São pessoas que dificilmente dariam seu apoio a uma mudança no artigo 226 da Constituição Brasileira, no qual está estabelecido que, “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”.

A reportagem de VEJA contribui para o debate racional do tema. Ela lembra que o racismo, infelizmente, sobreviveu mesmo depois de o conceito de raça como critério de diferenciação humana ter sido destroçado pelos avanços genéticos recentes. Por isso, é de esperar que a condenação da homossexualidade continue em certos círculos, a despeito da constatação de que ela é apenas uma adaptação da espécie, como lembra o grande biólogo evolutivo americano Edward Wilson em seu mais recente livro, A Conquista Social da Terra. Diz Wilson: “A homossexualidade pode ser vantajosa para os grupos humanos pelos indivíduos de talentos especiais e qualidades incomuns de personalidade e pelas profissões especializadas que cria”.

Para encarar esses assuntos com serenidade, é bom ter em mente que quem amplia as fronteiras sociais são as vanguardas comportamentais, invariavelmente formadas por minorias. Quem mantém a coesão da sociedade são as maiorias, conservadoras por definição. Por isso, as relações entre os dois grupos de pessoas, mesmo quando não há conflito aberto ou intolerância, são sempre tensas. Se a vanguarda minoritária não força a barra, as relações sociais ficam congeladas no tempo. Sem alguma resistência da maioria, as mudanças de comportamento nunca se legitimam. Mantida no plano civilizado, portanto, essa tensão é não apenas natural, mas necessária e positiva.