domingo, 15 de novembro de 2015

Agora é que são elas - Cacá Diegues

  • 15 nov 2015
  • O Globo
  • CACÁ DIEGUES


Em solidariedade ao movimento #AgoraÉQueSãoElas, abro hoje o espaço desta coluna para Isabel Diegues. Formada em Letras pela PUC- RJ, Isabel atuou como roteirista, produtora e diretora em filmes premiados como “Vila Isabel” (1998) e “Marina” ( 2003), além de ter sido produtora executiva de “Madame Satã” (2002), de Karim Ainouz. Dirigiu videoclipes, fotografou, fez capas de disco e cenários de show para Adriana Calcanhotto, Toni Garrido, Gilberto Gil e Milton Nascimento. Como produtora e editora de livros de arte, na Ed. Cobogó que dirige, organizou publicações sobre Adriana Varejão, bem como sobre a pintura brasileira do século XXI, além de “Aranhando a superfície", com desenhos de Gerald Thomas, e a Coleção Dramaturgia, com mais de 30 títulos publicados:

 Alguns dias depois de muitas colunas “cedidas a elas”, e dos milhares de depoimentos feitos nas redes sociais, ainda ecoam — e precisam ecoar! — as narrativas que tratam da desigualdade, da violência, das invasões de intimidade contra a mulher. E é preciso seguir lançando luz sobre tantas questões latentes e urgentes.

Aqui, na coluna do meu pai, conto pela primeira vez o que lembro ser o assédio mais remoto que sofri (esta é na verdade a segunda, a primeira foi numa incrível conversa com meu filho). Um amigo da família, quando eu tinha 8 anos, me sentou um dia em seu colo e percebi perplexa que ele roçava seu corpo no meu. Meu espanto de menina era também uma dúvida. Ele era legal, por que faria aquilo comigo? Tive medo e culpa. E recordo claramente como tudo se deu e o quanto me senti paralisada e assustada. Ouvi ao longo da vida muitas histórias mais terríveis que essa. Mas o mais comum entre nós mulheres é o silêncio, por constrangimento.

Ao ler tantos relatos surpreendentes de assédio, e com toda a discussão a respeito dos direitos da mulher sobre seu corpo, pensei muito sobre esse espantoso silêncio. Meu filho José, aos 13 anos, custa a acreditar que seja possível tamanha violência. Passamos horas falando sobre o que havíamos lido nas redes sociais e nos jornais, sobre como ele entendia tudo aquilo e sobre essa experiência tão delicada e violenta que eu, sua mãe, havia passado.

Sempre digo ao meu filho que nunca deixe que lhe façam nada que não tenha conforto e confiança em fazer. E que nunca, jamais!, imponha o mesmo a qualquer um. Pois o mais novo, o menos experiente, o fisicamente mais fraco, por insegurança ou ingenuidade, poderia se sujeitar ao que o outro propõe, sem perceber que não teria o direito de determinar os limites. E é preciso dizer não. A seu tempo, ele entenderia que o corpo é como nosso parque de diversões e temos todo o direito de nos divertir com ele como quisermos. Sempre atentos ao desejo e ao conforto do outro.

Dentre tantas narrativas de assédios e embates, uma história que li há algum tempo me pareceu um prólogo sintomático do que veio a ser escrito nos últimos dias. Uma atriz havia sido detida em Ipanema por fazer fotos sem blusa, e outra atriz propôs que todas as mulheres mostrassem seus seios ao mesmo tempo em protesto. Não deu certo. Ainda que houvesse quase dez mil confirmações no evento convocado pela internet, elas não apareceram e o protesto virou quase piada.

Mas uma de suas organizadoras escreveu um texto tão belo, na internet, que para mim valeu o episódio. Ana Rios contava ter crescido numa família carioca, de mãe e pai que lhe ensinaram que mulheres e homens eram iguais e que, fora o pênis de seu irmão, nada deveria ser diferente entre eles. Mas, ao entrar na puberdade, para sua surpresa, a mãe começou a pedir que tomasse cuidado com o que vestia. E numa tarde em que caminhava sozinha, ao se deparar com dois homens numa esquina, atravessou imediatamente a rua.

Esse ato impensado, automático, a fez perceber num susto que ela tinha “medo dos homens”. Essa conclusão terrível que se abateu sobre ela me fez pensar que eu, que nunca havia questionado a possibilidade de ter medo da figura masculina, talvez já tivesse também sofrido desse mal. Logo eu que me achava destemida, segura da minha força, intensificada justamente por minha posição de mulher. Lembrei as vezes em que mudei caminhos, apressei o passo, ou tive o coração disparado por me ver diante de um homem que poderia, quem sabe, me fazer mal. Pensei ainda em quantas mulheres não teriam tido sua sexualidade moldada por um medo que nem percebiam sentir, de tão naturalizado. Fiquei estarrecida e constrangida com essa perspectiva. Ao ler, nos últimos dias, tantas histórias, voltei ao relato da Ana e ele me pareceu um gesto inaugural sobre algo tenebroso que precisava ser combatido.

É preciso, de uma vez por todas, que o corpo seja um lugar de conforto, não de ameaça. E os homens têm um papel importante para criarmos essa nova ordem, um papel secundário, certamente, mas necessário. É preciso seguir narrando, questionando, propondo, determinando limites e expandindo outros. Mas não podemos nos restringir a falar entre nós mulheres — toda a sociedade deve estar envolvida no mesmo movimento de mudança. E será preciso paciência, alguns homens terão medo, se sentirão ameaçados. Portanto, temos de convidá-los e trazê-los para a discussão, os meninos e os adultos, com firmeza, mas com generosidade, para fazermos um imenso movimento, todos juntos, pessoas de todos os gêneros, pela liberdade, independência e autonomia sobre nossos corpos, nossas escolhas, nossos caminhos.