domingo, 7 de abril de 2013

Viaduto Covas? É ali no Chá - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

 O Estado de S.Paulo - 07/04/2013

Mudar nome de logradouros históricos talvez seja a parte mais fácil – difícil é convencer o povo a desistir da antiga denominação

Não parece boa ideia que o Viaduto do Chá mude de nome. Mesmo tendo sido Mário Covas um homem íntegro, um cidadão respeitável e um governante inesquecível. É justo que se dê seu nome a uma obra grandiosa. Mas, como já aconteceu em outros casos, o povo continuará chamando o Viaduto doChá de Viaduto do Chá. É um nome na memória dos paulistanos,um patrimônio da consciência coletiva, embora o homenageado seja o prosaico chá-da-china, que ali se cultivava no século 19. Chá famoso, de que gostava a família do poeta Álvares de Azevedo.

Nossos políticos,com as exceções de sempre, acham que tudo podem. Apresentar um projeto de lei parece mágica expressão de poder. Qualquer joão-dos-anzóis, uma vez eleito, pode propor até a mudança do nome do Corcovado. Na decadência política pela qual passamos,não seria estranho se alguém tentasse fazê-lo.E menos estranho que o Legislativo aprovasse a esdrúxula proposta. Nos anos 1970, um candidato a deputado por Goiás chegou a ter como bandeira eleitoral a revogação da Lei Áurea! Tem gente que já deu o nome da própria mãe a logradouro público. Do jeito que se xinga político neste país, não foi boa ideia.

Jovem, eu havia começado a trabalhar no jornal que veio a ser o Diário do Grande ABC, no fim dos anos 1950. Cabia-me cobrir assessões da Câmara Municipal de São Caetano do Sul. Numa das primeiras sessões de nova legislatura, um senhor muito simples, de pouca escolaridade, eleito pela população de um dos bairros pobres da cidade, evangélico, resolveu exercitar piamente seu poder. Queria marcar posição.Propôs ao plenário um“ voto de louvor ao autor da Bíblia”.O presidente da Câmara, que não estava culturalmente longe do proponente, pôs o projeto em votação: “Os vereadores que forem favoráveis,permaneçam como estão.Os contrários, que se manifestem”. “Aprovado!”, proclamou ele. E acrescentou: “Peço ao nobre edil que deixe na secretaria da Câmara o nome e o endereço do destinatário.” Até hoje o louvor não chegou ao destino.

Há alguns anos, foi proposto e aprovado que se desseonomedeumcidadãoprestante do bairro do Ipiranga ao Museu Paulista, da Universidade de SãoPaulo, popularmente conhecido como Museu do Ipiranga. É evidente que o nome não pegou, nem podia, pois o prédio do museu é oficialmente nosso monumento nacional da Independência. O cidadão prestante é agora oficialmente ignorado.

Um dos casos dolorosos de homenagem equivocada foi o da designação do histórico Túnel Nove de Julho com o nome de um dos mais ilustres cirurgiões brasileiros, o dr. Daher Elias Cutait. Foi eledestacado professor da Faculdade de Medicina, médico do Hospital das Clínicas e do Hospital Sírio-Libanês, merecedor, sem dúvida, de homenagem que lhe tornasse o nome lembrado para sempre. No entanto, a designação do túnel com seu nome criou enorme controvérsia. Nove de Julho, sabemos, é a data referencial
da Revolução Constitucionalista de 1932 e dos que nela morreram ou foram feridos. Um símbolo ligado a profundos sentimentos dos paulistas. Mudar o nome do túnel, em vez de fazer justiça ao nome do médico ilustre, acabou por expô-lo a sentimentos contraditórios que tiraram da homenagem o sentido que deveria ter.

Já tivemos outros episódios de denominação de rua que entrou em conflito com a tradição do povo. Por ter sido morto, em 1897, na Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, no comando da Terceira Expedição Militar  para lá enviada para destruir o povoado sertanejo, de supostos monarquistas, a Câmara de São Paulo decidiu dar o nome do cel. Moreira César à Rua de São Bento. O nome chegou a ser incluído nos mapas da cidade. Mas não pegou. São Bento desde o século 16, não seria uma câmara qualquer do século 19 que lhe mudaria o nome, além do mais, nome de devoção.Nesse caso,Moreira César, aliás, não merecia que lhe dessem o nome a um lugar público nem aqui nem em canto nenhum. Militar violento e sanguinário, já havia executado sumariamente presos políticos nas revoluções do Sul. Gostava de mandar degolar os prisioneiros e com fama de degolador chegara ao sertão da Bahia. Era um carniceiro. Nem enterrado foi. Apodreceu por lá, comido pelos urubus, como tantos outros. Os sertanejos que fora combater e matar eram religiosos,seguidores do catolicismo popular e da monarquia do Divino Espírito  Santo. Não faziam mal a ninguém,passavam o dia em oração, não pretendiam derrubar o governo, embora Antônio Conselheiro não deixasse de reconhecer que o Império fizera justiça aos negros libertando-os da escravidão. Para ele, a deposiçãodafamília imperial fora uma injustiça.

Em São Paulo a população já estava cheia dos exageros republicanos.A Câmara Municipal do novo regime em poucas semanas trocara nomes de rua de membros da monarquia, que conhecia, por membros da República, que desconhecia: Benjamin Constant, Quintino Bocaiuva, Marechal Deodoro. Nem Moreira nem César.São Bento continuou a ser o santo nome da rua que há muito era o dele.


JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE SOCIOLOGIA DA FOTOGRAFIA
E DA IMAGEM (CONTEXTO)

Colunista Convidado: DADO VILLA-LOBOS - Quero ser John


Sonho meu - Caetano Veloso

O GLOBO - 07/04/2013

Por causa de uma viagem pelo verso de ‘Volver’, entrei, sozinho, numa meditação sobre a importância do português na construção da forma samba


Escrevi: “Dolores Duran era uma glória da língua portuguesa, sem a qual o samba não existiria”. É no que dá escrever com pressa. Houve quem pensasse (com razão) que eu estava dizendo que o samba não existiria sem Dolores, quando eu queria dizer que era sem a língua portuguesa que ele não existiria. É uma ideia que já deu mil voltas na minha cabeça: eu não deveria tê-la resumido tão ligeiramente numa frase que resultaria dúbia.

Faz tempo, eu estava num apart-hotel em Ipanema, cantando o tango “Volver”, só com meu violão. É muito comum acontecer de eu imaginar como seria em português uma frase de canção estrangeira que repito. Sobretudo se a frase me encanta. Parei em “Que es un soplo la vida”. Estava emocionado, e logo minha mente foi procurar como é que isso poderia ser dito em português. Mais: cantado em português. Fiquei surpreso ao ver o tamanho da dificuldade. Afinal era uma canção em espanhol, língua tão próxima à nossa. Mas “Que é um sopro a vida” não funciona. Depois de algumas tentativas, inverti a ordem das palavras e “Que a vida é um sopro” se mostrou natural e sonora. Mas muito longe da força do original. Acima de tudo, nada tango. A imponência, a solenidade da frase castelhana se desfez totalmente. Num primeiro momento, pareceu-me que não restava nenhuma beleza. Mas, afastando-me do tango e do tom aristocrático do espanhol, comecei a achar graça na frase curta e despojada que o português me ofertava. Espontaneamente liguei as sílabas “da”, “é” e “um” (além de, claro, fazer de “que” e “a” também uma sílaba única — como fazemos sempre, cantando ou conversando) e passei a repetir a frase com quatro sílabas poéticas: “Q(ue)a-vi-d(é)um-sopro”. Em poucos segundos eu tinha uma marcação de samba nascida da repetição da frase (que sugeria uma pausa regular entre as repetições). Mas isso era uma brincadeira que, em princípio, poderia ser feita com uma frase qualquer, em qualquer língua. Tudo ficou mais forte quando isolei a frase e a “cantei” (sem a melodia do tango e mesmo sem uma nova melodia muito definida): era uma frase de samba.

Era uma boa frase de samba-canção (para não dizer que estávamos assim tão longe de Dolores — e sem esquecer de que a brevidade da vida é tema central da biografia e do cancioneiro da carioca bochechuda). Era uma boa frase de samba de carnaval dos anos cinquenta, de samba de Paulinho da Viola, de Cartola, de Carlos Lyra, de Arlindo Cruz. De samba. Mas o clima que a envolve é enormemente diferente do clima da frase portenha. Não há solenidade e, portanto, o que se diz é algo ao mesmo tempo mais concreto e menos pesado do que o que se depreende do verso castelhano. Parece coisa mais banal, dita em tom mais pedestre e desimportante. No entanto, se sentido como trecho de samba, revela outros aspectos da constatação de que não passa de um sopro essa nossa vida. É menos bonita, mas há um realismo particular nesse despojamento estético.

Por causa dessa viagem pelo verso de “Volver”, entrei, sozinho, numa meditação sobre a importância do português na construção da forma samba. É frequente o tributo histórico que se presta à contribuição africana para o nascimento desse gênero que, por razões tanto autênticas quanto suspeitas, se tornou o centro da musicalidade popular brasileira. Mas ninguém fala (que eu ouça) do papel da língua portuguesa nesse processo. Sempre me fascinou o fato de falarmos português. Quanto mais eu crescia e ia aprendendo a geografia do nosso hemisfério ocidental, mais misterioso e atraente se tornava para mim que esse imenso pedaço de América fosse habitado por lusófonos. Que fosse o único país das Américas em que isso se deu só aumentava o fascínio. Ser um país uno concorria para que eu formasse dentro de mim uma imagem de claro enigma.

Não podemos conceber o samba sem a língua portuguesa. Não o teríamos concebido sem ela. Quando João Gilberto foi cantar em Lisboa escrevi que aquele era um grande acontecimento na história da língua portuguesa. Mas ainda não tinha pensado o que a tentativa de tradução de um verso de “Volver” me levou a formular. Lembro tudo isso quando ouço António Zambujo. Outro dia ouvi uma moça que estava com Xande do Revelação cantar “Não deixe o samba morrer” e, embora sua pronúncia soasse totalmente brasileira, havia algo de sentimento fadista na voz. Fiquei comovido. Logo soube que ela era portuguesa. Ao ouvi-la cantar outros sambas/pagodes, pensei que ali se estava realizando meu sonho antigo de haver grupos de pagode portugueses, fazendo sotaque brasileiro e sucesso internacional. Isso, desde os primeiros pagodes comerciais. Pagode, funk e axé lusitanos. Sonho meu.


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