O Globo
Corrupção é o foco
Mesmo que as reivindicações sejam várias e muitos cartazes exibam
anseios mal explicados ou utopias inalcançáveis, há um ponto comum
nessas manifestações dos últimos dias: a luta contra a corrupção. A
vontade de que o dinheiro público seja gasto com transparência e que as
prioridades dos governos sejam questões que afetam o dia a dia do
cidadão, como saúde, educação, transportes, está revelada em cada
palavra de ordem, até mesmo nas que parecem nada ter a ver com o fulcro
das reivindicações, como no protesto contra a PEC 37.
Nele está contido o receio da sociedade de que, com o Ministério
Público impedido de investigar, o combate à corrupção seja prejudicado.
Todas as questões giram em torno do dinheiro público gasto sem
controle, como nos estádios da Copa do Mundo, todos com acusações de
superfaturamento. O dinheiro que sobra para construção de "elefantes
brancos" falta na construção de hospitais ou sistemas de transportes
que realmente facilitem a vida do cidadão.
O mundo político está de cabeça para baixo tentando digerir as
mensagens que chegam da voz rouca das ruas, como dizia Ulysses
Guimarães, que dizia também que "a única coisa que mete medo em
político é o povo na rua". Ninguém entende, por exemplo, por que houve
esse verdadeiro estouro da boiada agora, e não há um mês ou mesmo há um
ano.
Tenho um palpite: assim como as manifestações na Tunísia, as
primeiras da Primavera Árabe, começaram com o suicídio de Mohamed
Bouazizi, de 26 anos, vendedor ambulante que ateou fogo ao corpo depois
de proibido de trabalhar nas ruas por não ter documentos nem dinheiro
para pagar propinas aos fiscais, as manifestações aqui foram
grandemente impulsionadas pela reação violenta da polícia em SP semana
passada.
O movimento contra o aumento das passagens de ônibus poderia não ter
a amplitude que ganhou se não houvesse uma reação nas redes sociais à
atitude da polícia, como se todos sentissem a opressão do Estado na sua
pele, e de repente liberassem os diversos pleitos que estavam latentes
na sociedade.
Creio que foi a partir do entendimento de que uma reivindicação
justa como a da redução das tarifas de ônibus estava sendo tratada
simplesmente como um pretexto para arruaças e vandalismos que a
sociedade passou a se mobilizar para ampliar suas reivindicações.
Isso nada tem a ver com comparações entre as mobilizações que ganham
as principais cidades do país e a Primavera Árabe, pois estamos em uma
democracia e não se trata de derrubar governos, mas de mudar a maneira
de geri-los, política e administrativamente. E também não é possível
considerar que os abusos de um dia impedem as polícias de reprimir a
parte radicalizada das manifestações, que vandaliza cidades ou tenta
invadir prédios públicos ou residências das autoridades.
Creio mesmo que no Rio e em São Paulo as autoridades ficaram
paralisadas diante da violência de parte dos manifestantes e não agiram
com o rigor devido nessas ocasiões. O que demonstra falta de bom
senso. Um detalhe que define bem a divisão desses movimentos foi o
grupo de jovens que foi ao Centro do Rio ontem tentar limpar e
consertar em parte o que os vândalos fizeram no dia anterior. E em São
Paulo, em frente ao Palácio dos Bandeirantes, enquanto um grupo tentava
derrubar o portão de entrada, outros o recolocavam no lugar.
O ambiente econômico também deve ter contribuído para quebrar aquela
falsa sensação de bem-estar. E é impressionante que o imenso aparato
de informações de que cada governo dispõe, especialmente a Presidência
da República, e as pesquisas de opinião não detectaram a indignação que
explodiu nas ruas.
O dono de um desses institutos de opinião que vende seus serviços
para o PT, e acrescenta a eles, como um bônus, comentários em revistas
chapas-brancas, chegou a ironizar as oposições e analistas que
criticavam o governo, afirmando que viviam em uma realidade paralela,
que nada tinha a ver com a vida do cidadão comum, que estava muito
satisfeito. Segundo ele, não havia sinal de mudança de ventos que suas
pesquisas pudessem captar.
Também o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da
Presidência, que anunciou que "o bicho vai pegar", parece estar
atordoado com o bicho novo que está pegando sem que ele ou o PT dominem
a situação.
O Globo
Decifrar as mensagens da rua
Aestimativa de que cerca de 240 mil pessoas estavam nas ruas, no
início da noite de terça-feira, em 11 capitais, para protestar já é
algo significativo. Mais do que isso, são as imagens e o sentido do que
aconteceu anteontem neste país que colocam a data de 17 de junho de
2013 no calendário dos grandes acontecimentos políticos e sociais dos
últimos 28 anos, desde o início da redemocratização, em 1985, com a
posse de José Sarney na Presidência.
As cenas de violência e vandalismo - ocorridas principalmente no
Rio, na tentativa de invasão da Assembleia Legislativa, e na não menos
criminosa depredação de bancos e estabelecimentos comerciais na área,
além da pichação do Paço, patrimônio nacional - não conseguem reduzir o
peso das mensagens que as ruas têm transmitido nestes últimos dias a
governos, políticos e partidos da situação e da oposição.
A partir da descontrolada ação da PM paulista, na quinta-feira da
semana passada, o movimento pelo "passe livre" no transporte público,
deflagrado com o último aumento de tarifas, recebeu maciças adesões em
escala nacional e passou a ganhar outra dimensão.
Não que a chamada (i)mobilidade urbana já não criasse imensas
dificuldades para as pessoas, principalmente as de renda mais baixa, a
grande maioria. E não só em função do custo, mas pelo crescente
sacrifício físico que milhões de pessoas passam diariamente nas
capitais brasileiras para se locomover. É que o movimento, deflagrado e
organizado por meio das redes sociais, tem a questão do transporte
público apenas como uma chave que destampa e coloca nas ruas a
insatisfação acumulada nos últimos anos com uma sucessão de distorções.
É a tal sensação difusa de desconforto com "tudo isso que está aí",
amplificada pela volta da inflação.
A mobilização política ressurge no Brasil de um movimento
subterrâneo, surdo, invisível, mas bastante ativo, a partir da rede
mundial de computadores. O fenômeno não é novo, acontece em escala
planetária. Mas há peculiaridades regionais. Onde existe liberdade,
redes sociais facilitam a organização de grupos na defesa de pautas
específicas. Em ditaduras, ajudam a driblar censores, a repressão
política.
No Brasil, país democrático, vivia-se um longo período de inércia
política. A situação, confortável no poder, e a oposição, também
passiva, incapaz de metabolizar a fermentação das insatisfações que há
tempos trafegam nas redes. As ruas acabam de atropelar ambas - má
notícia para a democracia representativa, ruim para a estabilidade
institucional.
É míope a tentativa de capitalização político-eleitoral desta
espécie de erupção vulcânica. A questão é tão mais ampla quanto
profunda. Devem ser entendidos por suas excelências do Executivo e do
Legislativo gestos de manifestantes contra cartazes e bandeiras de
partidos nas passeatas, mesmo os identificados com a extrema-esquerda. O
representante da juventude do PT em Brasília foi escorraçado na
tentativa de participar do comando da manifestação à frente do
Congresso.
Toda esta mobilização conseguiu atravessar fronteiras geracionais,
etárias e sociais. Pode ser que lá na origem de tudo tenham atuado
grupos politizados, sem identificação com o estado de coisas na
política brasileira. Não importa. Quando casais com filhos pequenos vão
às ruas, ao lado de idosos, gente de toda idade, é porque apareceu
algo novo no radar da sociedade. Maurício Matheus, a mulher, Thaís, com
o filho João, de um ano e meio, foram entrevistados pelo GLOBO, em São
Paulo. Preso ao macacão de João, o cartaz: "Não é por 0,20, é por
direitos". Explicou o pai: "É um grito de socorro, precisamos de união e
força para vetar os abusos ao povo." E existem diversas formas de
abusos. No desprezo de políticos e governantes pela ética, por exemplo.
Se era urgente, diante do ronco das ruas tornou-se emergencial
retomar a reforma da moralização do degradado quadro
político-partidário. A Lei da Ficha Limpa foi vitória histórica,
conquistada por grande mobilização, também pela internet, em torno de
um projeto de origem popular. A vigilância continua necessária, agora
para a sua aplicação correta.
É hora de voltar a atacar a pulverização partidária. Por erro
técnico de encaminhamento - não pode ser por projeto de lei simples,
mas emenda constitucional -, o Supremo rejeitou cláusula de barreira a
legendas de rarefeito apoio entre os eleitores, mecanismo usado em
democracias maduras. A fórmula elaborada é boa, basta resgatá-la das
gavetas: para ter representação no Congresso, toda legenda necessita
de, no mínimo, 5% dos votos nacionais e 2% em pelo menos nove estados.
Acabada a pulverização partidária, facilita-se a formação de
alianças e reduz-se a margem para o uso de meios espúrios para a
obtenção de maiorias. Um antídoto contra mensalões. Outra medida,
também disponível nos escaninhos do Congresso - basta vontade política
para resgatá-la -, é o fim da coligação em eleições proporcionais, pela
qual o eleitor pode ser vítima de uma fraude, por ter o voto
contabilizado para quem ele não conhece e em quem talvez não votasse. A
conjugação dessas duas reformas ajudará a restabelecer uma seriedade
mínima no jogo partidário. Se vigorassem há algum tempo, o político não
teria sido transformado no Judas predileto de manifestantes.
O ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência,
setorista de "movimentos sociais", confessou, na manhã de ontem, ainda
não compreender o que acontece. Foi honesto. Seu mundo é o das
organizações formais, em que há líderes visíveis, conversáveis e
cooptáveis. A presidente Dilma Rousseff, ex-militante, presa política,
não poderia ter outra reação: o governo "está ouvindo essas vozes pela
mudança". E, entre as vozes, a presidente identificou o "repúdio à
corrupção e ao uso indevido do dinheiro público". Parece na pista certa
a presidente.
Ao se investir contra a Copa das Confederações, ensaio para a Copa
do Mundo, no ano que vem, com suas amplas e modernas "arenas",
critica-se a incapacidade de o governo federal colocar os bilhões que
arrecada de um contribuinte cada vez mais sobrecarregado de impostos
naquilo que atenda às necessidades diretas da população: educação,
saúde, transporte urbano, segurança.
Em vez disso, o poder público não para de ampliar os gastos em
custeio, sem privilegiar os investimentos. E, quando investe, escolhe,
por exemplo, projetos faraônicos como o do trem-bala entre Rio e São
Paulo, dinheiro que poderia vir a ser aplicado na malha de transporte
sobre trilhos nas grandes regiões metropolitanas, para promover de fato
a mobilidade urbana.
As mensagens são várias. A torcida é para que os políticos, no poder
e fora dele, as decifrem de maneira correta. A estabilidade
institucional, em alguma medida, dependerá disso.
Correio Braziliense
Visão do Correio :: Manifestação sem vandalismo
O Brasil voltou a sentir orgulho de sua juventude que, desmentindo
todas as suposições e até estudos profundos de especialistas, foram às
ruas protestar, primeiro contra o aumento das tarifas de ônibus em São
Paulo, depois pela péssima qualidade do transporte público. Em seguida,
engrossaram o movimento com mais gente e mais bandeiras de
insatisfação, lotando ruas, avenidas e praças nas principais cidades
brasileiras.
Muita coisa que vinha povoando o desgosto das pessoas nos últimos anos
entrou na lista, como as humilhantes filas do serviço de saúde, a
cachoeira de denúncias de corrupção, as macabras estatísticas de mortos
e feridos nas rodovia precárias, tudo sob a alegação da escassez de
verbas, apesar dos gastos exorbitantes com a construção a toque de
caixa de monumentais estádios, mesmo em cidades em que os melhores
times não alcançam as divisões de elite do futebol brasileiro.
Melhor ainda foi constatar que os cerca de 250 mil que foram às ruas, a
maioria jovens, não foram recrutados por partido algum. Pelo
contrário, repeliram as toscas tentativas de agremiações políticas que
tentaram pegar carona na energia contagiante dos manifestantes que
fizeram da quinta-feira uma dia inesquecível. “Desculpem o transtorno.
Estamos mudando o Brasil”, dizia uma das faixas levadas por jovens que
demonstravam saber que faziam algo para ficar marcado na história de
cada um e de todo o país.
Os protestos, face às vezes incômoda, mas sempre saudável da
democracia, foram claramente mobilizados pelas redes sociais da
internet com o propósito de chamar a atenção das autoridades, todas
elas, e dos políticos para o esgotamento da paciência da cidadania em
relação à falta de soluções para velhas questões. São problemas
revoltantes, mas nem por isso os manifestantes pretendiam tirar sua
mobilização da condição de protesto pacífico, até porque essa é uma das
condições que o tornam respeitável.
Mas foi aí que apareceram os vândalos, os baderneiros, os
incivilizados, sempre prontos a manchar com a sua estupidez tudo que a
boa-fé produz. São eles que provocam a reação violenta — nem sempre
justificável — dos policiais chamados a guardar bens públicos, bem como
a garantir o mínimo de segurança e mobilidade para os cidadãos não
envolvidos nas manifestações. Em Brasília, tentaram levar sua fúria
destruidora para o espaço interno do Congresso. No Rio de Janeiro,
agiram como um bando de selvagens descontrolados ao violarem e
depredarem parte do histórico prédio da Assembleia Legislativa,
causando ao povo prejuízo calculado em R$ 2 milhões. Em Belo Horizonte,
apedrejaram lojas na Região da Pampulha e, em Porto Alegre, incendiaram
um ônibus. Ontem, em São Paulo, voltaram a aprontar em frente à
prefeitura da cidade.
É certo que são minoria e não devem ser confundidos com o grosso dos
manifestantes. Mas nem por isso podem ficar impunes. Precisam ser
identificados, punidos e levados à execração pública, não apenas pelos
danos ao patrimônio alheio, mas também por terem atirado contra a
democracia.
O ESTADO DE S. PAULO
VONTADE DE FALAR
Das
dezenas de frases de participantes e entusiastas das manifestações da
segunda-feira em 12 capitais brasileiras, citadas pela imprensa para dar
uma ideia do espírito dos protestos, provavelmente a mais expressiva
tenha sido a da ex-voleibolista Ana Beatriz Moser. "O importante é esse
coro, essa vontade de falar. Os governantes têm de ouvir."
Em um País
onde a última vez em que centenas de milhares de pessoas saíram de casa
para se fazer ouvir pelos governantes foi em 1992, com o coro "Fora
Collor", não é fácil de explicar a presumível acomodação da juventude,
em contraste com o histórico de proliferação de atos públicos de massa
no exterior (contra alvos diversos como a globalização, os transgênicos,
a invasão do Iraque, o poder de Wall Street, as políticas recessivas na
Europa, as tiranias árabes e, agora, o autoritarismo do governo
livremente eleito na Turquia).
Pode-se argumentar que, desde o Plano
Real no governo Itamar Franco, que assumiu no lugar de Collor, o Brasil
amealhou mais notícias boas do que más - embora não raras entre essas
tenham se tornado péssimas, a exemplo da criminalidade. O ciclo virtuoso
de 18 anos - das administrações Fernando Henrique e Lula à primeira
metade do mandato da presidente Dilma Rousseff - promoveu o crescimento e
generalizados aumentos de renda real, principalmente entre os mais
pobres. O consumo explodiu e só não atordoou os grupos engajados nas
causas chamadas "pós-materialistas", como a defesa do meio ambiente, a
proteção das comunidades indígenas, os direitos dos negros, mulheres e
minorias sexuais. É tentador, mas arriscado, estabelecer uma relação
direta e exclusiva entre a volta da inflação e os pibinhos, de um lado, e
a eclosão do descontentamento, de outro. Mas seria míope negar qualquer
nexo entre a economia em baixa e a insatisfação em alta.
De fato,
foi o aumento das passagens de ônibus em São Paulo, na esteira dos de
Porto Alegre e outras cidades, que fez o trânsito parar de vez. Na
capital paulista, a brutalidade policial que se seguiu aos atos de
vandalismo registrados na primeira passeata, no começo da semana
passada, acirrou a indignação, deu nova motivação para a ida às ruas e
remeteu a segundo plano (mas sem eliminar) as reclamações contra o preço
dos bilhetes.
Esse é o dado crucial da onda de protestos que juntou
anteontem mais de 230 mil pessoas do Pará ao Rio Grande do Sul - só no
Rio foram cerca de 100 mil, com a Avenida Rio Branco tomada por compacta
multidão fazendo lembrar as marchas pelas Diretas Já em 1984.
Deu
uma vontade de falar que não se sabe como, quando ou se será aplacada:
contra os padecimentos que o Estado impõe ao povo com os seus serviços
de terceira e indiferença de primeira, a começar da saúde e educação
públicas; contra os políticos e autoridades em geral que so cuidam dos
seus interesses e são tidos como corruptos por definição; contra a
selvageria do cotidiano por toda parte; contra a truculência das PMs;
contra a lambança dos gastos com a Copa, que pegou de surpresa a
cartolagem e seus parceiros no governo federal - e tudo o mais que se
queira denunciar. Afinal, os jovens não se sentem representados por
nenhuma instituição e desconfiam de todas. Tampouco a imprensa lhes
merece crédito.
Consideram-se mais bem informados pelos seus pares
das redes sociais do que pela mídia. É também na internet que .
encontram argumentos para as suas críticas, colhem e se prestam
solidariedade, cimentando a coesão grupal.
Entre a quarta-feira
passada e a noite da última segunda, 79 milhões de mensagens sobre as
marchas foram trocadas pelos internautas. O senso de autocongratulação -
"a juventude acordou" - e a natureza difusa de suas queixas combinam-se
para dificultar a discussão de pautas específicas de mudança em
eventuais encontros com agentes públicos. Como se diz, faz parte: o
protesto precede à proposta. O lado bom das jornadas dos últimos dias,
além do caráter em geral pacífico das manifestações, foi a preocupação
com o País. "Parem de falar que é pela passagem", comentou um jovem. "É
por um Brasil melhor."
VALOR ECONÔMICO
DIFUSAS INSATISFAÇÕES TOMAM AS RUAS DO PAÍS
A
juventude brasileira está em pé de guerra e avisou isso claramente aos
governantes nas passeatas que reuniram centenas de milhares de pessoas
em 11 capitais. O sistema de transporte público e seus preços foram os
alvos imediatos das manifestações, que ganharam impulso a partir de São
Paulo, mas são um símbolo dos péssimos serviços oferecidos pelas três
esferas de governo em outras áreas vitais para o bem-estar dos cidadãos -
saúde, educação, e segurança, por exemplo.
Outros simbolismos
desfilaram pelas ruas das capitais na segunda-feira. A relativa
espontaneidade do movimento e seu comando refratário a partidos indicam,
no mínimo, uma primeira condenação implícita dos objetivos, ações e
resultados das legendas que governam o país. O PT, o partido que saiu
das ruas no passado, foi deixado de lado e a reação do governo, ora de
estupefação, ora de indignação, deixa no ar a possibilidade de o auge do
partido ter ficado para trás. Símbolos também, estudantes e jovens
catalisam, mais uma vez na história, insatisfações disseminadas por
vastas camadas sociais.
Há dois momentos do movimento que desaguou
com força nas capitais e a distinção é importante. O Movimento do Passe
Livre paulistano sempre protestou toda vez que as passagens aumentaram,
mas a adesão a seus protestos era pequena, e os resultados, nulos. Sua
insistência, após várias derrotas, e seu propósito simples e claro, o
qualificou como um dos poucos canais de protesto em potencial de
reivindicações que interessam à maioria do público urbano e diferentes
categorias profissionais. Embora este ano houvesse mais pessoas nos
primeiros atos contra o aumento das passagens, o movimento não tinha
ultrapassado ainda o estágio de uma minoria barulhenta, incapaz de
controlar, como é frequente, a violência de setores que o apoiam.
Até
que - o segundo momento - uma passeata inicialmente pacífica no dia 13
de junho foi dissolvida com requintes de crueldade e selvageria pela
polícia do governo paulista, a quem cabe a responsabilidade pela
agressão a um direito democrático. Não houve dúvidas de que a polícia
atacou primeiro e estava ali para expulsar brutalmente cidadãos que
protestavam.
A partir daí, diante de cidadãos atônitos e revoltados
com a atitude da polícia paulista, a adesão ao movimento cresceu
exponencialmente porque uma outra questão, mais importante que o preço
da passagem de ônibus, estava em jogo - a da liberdade de reunião e
manifestação. Os brasileiros se tornaram ciosos dela desde quando
forçaram, igualmente nas ruas, a queda da ditadura militar. A causa do
Passe Livre ganhou a simpatia popular e intergeracional que até então
não havia conseguido.
Para as manifestações de segunda-feira,
primeiro movimento de grandes massas convocado pelas redes sociais,
confluíram por gravidade todas as demandas sociais a que os governos
deveriam atender e para as quais mostram, ano após ano, partido após
partido, uma inépcia desconcertante. Não por acaso, as manifestações
ocorridas em São Paulo (pelo menos 65 mil pessoas), no Rio (100 mil) e
em Brasília (mais de 10 mil) buscaram o Legislativo - o Congresso
Nacional e a Assembleia Legislativa do Rio. Os protestos apontaram
também a responsabilidade pelo estado atual das coisas dos políticos,
cuja omissão, no caso dos Legislativos estaduais e municipais, tornou-se
uma lamentável tradição.
O PT, o único partido de massas do país,
fica mal na história após o 17 de junho. Ainda que não tenha sido
diretamente rechaçado, a rapidez com que se metamorfoseou em um partido
como os outros, interessado no poder e suas benesses, e a facilidade com
que jogou fora sua ideologia para formar bases de apoio governistas com
o que de pior há na política brasileira, fizeram com que fosse olhado
com desconfiança por alguns movimentos sociais que antes tinham com ele
afinidades eletivas.
Movimentos difusos como o capitaneado pelo Passe
Livre podem obter vitórias em suas reivindicações, para depois sumirem
do mapa político. Mesmo que haja muito deslumbramento com o poder das
redes sociais, a política continua sendo uma velha senhora rabugenta. Ou
surgem novos líderes que aceitem conviver com ela, ou os movimentos
exercerão pressão de fora, com mobilizações pontuais e pressão
permanente das ruas - uma novidade por aqui. A terceira via possível é o
desânimo.
ESTADO DE MINAS
MANIFESTAÇÃO SEM VÂNDALOS
Protestos que lotam as ruas não podem ser manchados pela minoria
O
Brasil voltou a sentir orgulho de sua juventude que, desmentindo todas
as suposições e até estudos profundos de especialistas, foi às ruas
protestar, primeiro contra o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo,
depois pela péssima qualidade do transporte público. Em seguida,
engrossou o movimento com mais gente e mais bandeiras de insatisfação,
lotando ruas, avenidas e praças nas principais cidades brasileiras.
Muita coisa que vinha povoando o desgosto das pessoas nos últimos anos
entrou na lista, como as humilhantes filas do serviço de saúde, a
cachoeira de denúncias de corrupção, as macabras estatísticas de mortos e
feridos nas rodovias precárias, tudo sob a alegação da escassez de
verbas, apesar dos gastos exorbitantes com a construção a toque de caixa
de monumentais estádios, mesmo em cidades em que os melhores times não
alcançam as divisões de elite do futebol brasileiro.
Melhor ainda foi
constatar que os cerca de 250 mil que foram às ruas, a maioria jovens,
não foram recrutados por partido algum. Pelo contrário, repeliram as
toscas tentativas de agremiações políticas que tentaram pegar carona na
energia contagiante dos manifestantes que fizeram da segunda-feira um
dia inesquecível. "Desculpem o transtorno. Estamos mudando o Brasil",
dizia uma das faixas levadas por jovens que demonstravam saber que
faziam algo para ficar marcado na história de cada um e de todo o país.
Os protestos, face às vezes incômoda, mas sempre saudável da democracia,
foram claramente mobilizados pelas redes sociais da internet com o
propósito de chamar a atenção das autoridades, todas elas, e dos
políticos para o esgotamento da paciência da cidadania em relação à
falta de soluções para velhas questões. São problemas revoltantes, mas
nem por isso os manifestantes pretendiam tirar sua mobilização da
condição de protesto pacífico, até porque essa é uma das condições que o
tornam respeitável.
Mas foi aí que apareceram os vândalos, os
baderneiros, os incivilizados, sempre prontos a manchar com a sua
estupidez tudo que a boa-fé produz. São eles que provocam a reação
violenta – nem sempre justificável – dos policiais chamados a guardar
bens públicos, bem como a garantir o mínimo de segurança e mobilidade
para os cidadãos não envolvidos nas manifestações. Em Brasília, tentaram
levar sua fúria destruidora para o espaço interno do Congresso. No Rio
de Janeiro, agiram como um bando de selvagens descontrolados ao violarem
e depredarem parte do histórico prédio da Assembleia Legislativa,
causando ao povo prejuízo calculado em R$ 2 milhões, além de invadirem e
roubarem comida de um restaurante, com dano de valor inestimável à
imagem da Cidade Maravilhosa. Em Belo Horizonte, apedrejaram lojas na
Região da Pampulha, e em Porto Alegre, incendiaram um ônibus. Ontem, em
São Paulo, voltaram a aprontar em frente à prefeitura.
É certo que
eles são minoria e não devem ser confundidos com o grosso dos
manifestantes. Mas nem por isso podem ficar impunes. Precisam ser
identificados, punidos e levados à execração pública, não apenas pelos
danos ao patrimônio alheio, mas também por terem atirado contra a
democracia.
GAZETA DO POVO (PR)
BRASILEIROS NAS RUAS
Na
segunda-feira, os cidadãos rejeitaram as tentativas de direcionar ou
monopolizar a pauta das manifestações, e sentiram-se livres para mostrar
seu descontentamento com as mais diversas situações
Nunca o
bordão “contra tudo isso que está aí” foi tão verdadeiro quanto nas
manifestações que tomaram o Brasil na noite de segunda-feira, e se
repetiram ontem em algumas cidades. O movimento que começou na semana
anterior, motivado por aumentos na tarifa do transporte público em
várias capitais e marcado por atos de vandalismo, sofreu uma
metamorfose: dezenas de milhares de brasileiros protestaram
pacificamente e apresentaram reivindicações as mais variadas possíveis –
de temas locais (em Curitiba, por exemplo, a falta de táxis estava
entre os temas observados nos cartazes) aos grandes assuntos nacionais,
como a corrupção e a PEC 37, que deve ser votada até o fim do mês e que
retira o poder de investigação do Ministério Público.
É verdade que
ainda tem havido casos inaceitáveis de vandalismo, especialmente no Rio
de Janeiro, onde a Assembleia Legislativa e prédios no entorno foram
atacados anteontem; e em São Paulo, ontem, com depredação no prédio da
Prefeitura e um carro de reportagem incendiado. Mas essas foram
exceções; o tom das manifestações de segunda-feira foi pacífico a ponto
de muitos pais terem levado até as crianças para presenciar um momento
incomum da história brasileira, e os exemplos positivos, como o silêncio
dos manifestantes curitibanos ao passar diante da Santa Casa, são os
que merecem divulgação. O poder público também percebeu que não pode
agir com violência contra as passeatas. A lição foi especialmente
aprendida em São Paulo, depois das cenas de excesso policial da
quinta-feira passada.
Em várias ocasiões, a Gazeta do Povo louvou o
exemplo de nossos vizinhos argentinos, que não hesitam em tomar as ruas
para protestar contra os desmandos de seus governantes. Embora ainda
seja cedo para concluir que o brasileiro finalmente venceu a apatia que
lhe é atribuída, os protestos revelam que o cidadão tem, sim, uma sede
de participação política que vai além do voto a cada dois anos – aliás, é
interessante perceber como outro bordão, o “não me representa”, dessa
vez dirigido aos partidos políticos como um todo, também foi uma
característica marcante das manifestações de anteontem. Ao impedir que
as agremiações de esquerda monopolizassem ou direcionassem a pauta dos
protestos, os brasileiros puderam mostrar livremente seu
descontentamento com uma série de situações.
Mas é justamente nesse
caráter difuso do movimento popular que reside uma de suas fraquezas. Se
as reivindicações se mantiverem em um nível mais abstrato, a falta de
um projeto consistente pode levar a uma ausência de resultados que
frustre todos aqueles que tanto se empenharam – trazendo de volta a
apatia, dessa vez com muito mais força. Outro risco é o de que radicais e
aventureiros se aproveitem do clima de indignação generalizada para
propor soluções de cunho inclusive antidemocrático, ou que se apropriem
do movimento sem efetivamente representar os anseios da população que
vai às ruas. É fácil comparar os protestos brasileiros com a Revolução
Francesa nas mídias sociais, como se fez semana passada; difícil é
lembrar que a revolta dos franceses do século 18 degringolou até chegar
ao Terror.
O que estamos presenciando é uma grande oportunidade de
aprendizado para o brasileiro: para que ele procure conhecer as causas e
pense em soluções para as situações que o revoltam; para que ele
desenvolva seu interesse pela coletividade e abandone o individualismo
que tanto mal faz à sociedade; para que ele aprenda a dialogar e
entender o ponto de vista de quem pensa diferente. Se a insatisfação
crescente do brasileiro for canalizada para boas causas, ela será
frutífera. Dissemos acima que a participação política transcende o
exercício do voto, mas também as urnas oferecerão uma oportunidade para
que a indignação se transforme em ação concreta. Exercer o voto
consciente e se mobilizar por uma autêntica reforma político-eleitoral,
baseada nos princípios republicanos e não nas conveniências da classe
política, são atitudes que não deixarão os protestos nas ruas terminarem
no vazio.
ZERO HORA (RS)
O RECADO DOS JOVENS
A
história está repleta de datas que sintetizam espíritos e épocas. Sem
esperar pelo veredicto da posteridade, já é possível afirmar que o 17 de
Junho é o retrato de um novo Brasil. O país que foi para as ruas
protestar na segunda-feira reflete um novo estado de ânimo de uma ampla
parcela da população: rejeição à corrupção e ao descaso com a coisa
pública, desconfiança de governantes e partidos, indignação com a
desproporção entre os gastos com grandes eventos, por um lado, e com
saúde, educação e transporte, por outro. O país que tomou praças e
avenidas sente os efeitos da alta de preços de alimentos e serviços. A
nação que tomou a palavra antevê, para além dos sinais incipientes de
turbulência econômica, os percalços de um futuro que parece menos
auspicioso do que há alguns anos. Sua voz ergue-se também contra
governos, parlamentares, corporações e meios de comunicação. Pode-se
saudar ou rejeitar a emergência desse Brasil do 17 de Junho. Mas não se
pode ignorá-lo.
É utópico imaginar que dezenas de milhares de pessoas
decidam se manifestar por fora dos canais até hoje existentes no
interior do Estado de direito, por meio de ida massiva às ruas, sem que
isso implique riscos para a segurança e até mesmo distúrbios isolados. É
preciso separar a manifestação legítima e democrática da maioria das
depredações, incêndios e pichações promovidos por uma ínfima minoria
oportunista. Toda sorte de vandalismo pode e deve ser investigada, e os
envolvidos, enquadrados criminalmente na forma da lei. O fato de tais
atitudes terem prosperado nos primeiros dias do movimento reflete o fato
de não haver objetivos, líderes e organização claras.
O mais
importante é que a nação seja capaz de retirar ensinamentos dos
acontecimentos. Em síntese, os jovens nas ruas estão enviando um recado
para toda a sociedade, incluindo governantes, políticos, empresários e
imprensa. O sentimento da maioria é, como bem sublinhou a presidente
Dilma Rousseff ao citar o cartaz "Desculpem o transtorno, estamos
mudando o Brasil", carregado de civismo e boas intenções. É positivo que
milhões de pessoas com menos de 30 anos estejam se dispondo a assumir
um papel de protagonistas na história. Trata-se de uma geração que
jamais viveu períodos de exceção ou de cerceamento de liberdades. Para o
bem do país, esse aprendizado deve ocorrer de forma serena. A sociedade
tem de saudar e acolher esse verdadeiro despertar jovem, zelando para
que fortaleça o Estado democrático de direito. Não resta dúvida de que
todos seremos testemunhas dos reflexos concretos do que está acontecendo
hoje daqui a pouco mais de um ano, nas eleições presidenciais de 2014. É
desejável que a experiência histórica de cada geração se reflita na
participação eleitoral por meio do embate entre ideias, programas e
concepções.