Argumentos do sociólogo José de Souza sobre redução da maioridade penal são abalizados e bem postos, mas não me convencem
O suplemento Aliás, do jornal “O Estado de S.Paulo”, publicou no domingo
passado alguns artigos sobre a discussão em torno da maioridade penal:
diminuí-la para 16 anos ou não? Entre eles, o do sociólogo José de Souza Martins
rebate a alegação de que levar jovens de 16 anos para a cadeia seria inseri-los
de vez na escola do crime. Segundo Martins, há criminosos notórios nessa faixa
de idade, agentes de barbáries em estado puro, que não precisaram de nenhuma
escola para sê-lo, e a sociedade deve equipar-se para combater o mal que medra
nessa zona juridicamente descoberta da existência humana, reduzindo a maioridade
penal. Diferentemente da posição reativa e direta dos amedrontados, os
argumentos são abalizados e bem postos, mas não me convencem.
Martins sabe que a redução da maioridade penal não resolveria “o problema
grave das causas da criminalidade juvenil”. Diz com muita razão que a retórica
jurídica do Estado brasileiro, sustentando o estatuto atual, apenas gira em
falso no seu não saber o que fazer. Acha que a impossibilidade de punir na justa
medida os crimes hediondos praticados por jovens (além da evaporação prática do
cumprimento das penas entre adultos, a que ele não se refere diretamente)
estimula a iniquidade do justiçamento popular, acrescentando que “o Brasil está
entre os países que mais lincham no mundo”, promovendo a indistinção entre a
cultura do crime e a punição do crime, entre “maus” e “bons”.
Reconheço a enormidade desse “defeito estrutural”, presente fora e também
dentro das cadeias, na própria iniquidade do sistema carcerário, que o Ministro
da Justiça deixou escapar outro dia. O diagnóstico supõe um mal-estar difuso e
generalizado, exposto no enorme descompasso entre a extensão do problema e as
providências apontadas, incluindo esta, a da redução da maioridade penal, que,
também ela, mais encobre e aprofunda o problema, com seu simulacro de justiça,
do que encara a sua extensão.
Diante do mal-estar, da emergência do mal que desponta em crimes inomináveis
e do sentimento de impotência correspondente, as posições têm quase que
inevitavelmente muito de sintoma de quem as toma, e de uma aposta implícita na
destinação do seu desejo. No caso da posição exposta com propriedade por José de
Souza Martins, trata-se de resgatar o funcionamento de um rito jurídico ali onde
ele está faltando, e onde essa falta clama por uma reparação simbólica, para o
bem das instituições. Sabemos também que esse mesmo clamor pode esconder, em
outros casos, a sombra de um desejo coletivo não enunciado senão pelos mais
exaltados e frenéticos: universalizar a potência criminosa do adolescente pobre
é jogá-lo fora no esgoto das prisões, desejando, mais fundo, que ele seja sugado
no imaginário ou no real pela treva do extermínio.
Algo do Brasil atual, com seus emergentes e suas zonas de exclusão, com sua
indecisão entre o arranque e a regressão, dá sinais de uma aproximação galopante
e não consciente à verdade de sua história escravista através de confrontos não
politicamente formalizados nem simbolicamente elaborados, que se expressam no
conflito entre os poderes de Estado, na loucura religiosa, nos tribunais do
Facebook, nas facções discursivas, no alarde das opiniões, nos fla-flus sem
beleza, sem perspectiva e sem regras. São a marca viciosa daquilo que na nossa
sociedade vai mudando sem mudar, que se transforma sem transformar, e que
resiste a encarar tanto o real de suas violências constitutivas e de suas
desigualdades profundas quanto o real de sua potência inovadora.
Por isso tudo, nesse quadro, e para mim, escolher a antecipação da maioridade
penal não é resolver problemas, mas encolher o país virtual, decretar o fosso
social e, em nome de uma resposta à ocorrência do mal absoluto, recusar-se a
olhar para essa zona crucial de passagem onde se decidem destinos pessoais e
coletivos. É verdade que infância, adolescência e idade adulta estão tão
confusas e embaralhadas, hoje, em todas as classes sociais, que existem crianças
simulacros de adultos (pequenos bandidos, pequenas prostitutas, pequenos
empresários), e adultos eternos adolescentes, para o bem ou para o mal. O crivo
da maioridade como o lugar do sujeito autônomo, datado aos 18 anos, tornou-se
problemático em todos os sentidos, mas não se trata de encontrar o responsável
nessa faixa limítrofe: dos males, o menor. Continuo me lembrando de Luiz Eduardo
Soares (onde está ele?) quando diz que tudo se decide no lugar e no instante
frágil em que o ser humano pede sem saber o que todo ser humano pede: olhar,
reconhecimento e consideração.