quarta-feira, 18 de novembro de 2015

País de rinocerontes? - Chico Alencar

Governo eleito há mais de um ano não consegue começar

  • 18 nov 2015
  • O Globo
  • CHICO ALENCAR Chico Alencar é deputado federal (PSOL-RJ)

Apeça “O rinoceronte”, de Eugène Ionesco (1909/1994), marcou minha juventude. Ainda era ditadura, e a censura, de olho no espetáculo, cogitou proibi-lo. Não foi a primeira vez que sua burrice popularizou uma obra de arte. O humor cáustico e a linguagem figurada do texto questionavam a lógica do totalitarismo e da massificação, confundindo os defensores da ordem.

O regressismo conservador dos nossos tempos nos leva ao palco da vida real, onde se monta, a cada dia, um novo teatro do absurdo. A peça já clássica de Ionesco tem três atos. A do Brasil, que todos nós encenamos, em diferentes papéis, também pode ser estruturada assim.

O primeiro ato é o de um governo que, eleito há mais de um ano, não consegue começar. Trocou todo o cenário e os diálogos originalmente apresentados. O que foi dito na campanha ficou por lá, e agora a direção assumiu o roteiro do seu antagonista. O palco foi tomado por rinocerontes, com os humanos se transformando nesses paquidérmicos animais. O ar está pesado, as políticas públicas não andam, o governo não governa: vai sobrevivendo, aos trancos e barrancos, tentando se entender. O segundo ato se dá no Legislativo Nacional, em particular na Câmara dos Deputados. Nunca na história do Parlamento brasileiro um presidente sofreu acusações tão contundentes, com inquéritos por corrupção, lavagem de dinheiro e ganhos não declarados já no Supremo. Mas Sua Excelência nega tudo. Quando, afinal, tenta se explicar, traz uma história digna do absurdo de Ionesco, do surrealismo de Dalí ou do realismo fantástico de García Márquez. O acusado cunhou uma versão sui generis: reconhece acúmulo de bens no exterior que não são bem seus, propriedade que não lhe pertence, comprovação do que não é provável, em montante não preciso gerido por terceiros que não revela. O personagem de tantos negócios obscuros é ninguém menos que o segundo na linha sucessória da República. Nada sereníssima...

O terceiro ato pode ser o da peça de Ionesco, sem grandes alterações. A letargia de quem devia reagir a tudo isso, em especial no Legislativo, cria um ambiente de patética omissão. Comportamento de manada é da natureza dos rinocerontes! Representação no Conselho de Ética virou retaliação e tentativa de intimidação contra os que não aceitam o servilismo do “não vejo, não falo, não ouço”.

Mas tem final feliz: apesar da tentação da acomodação à ordem em decomposição, as ruas resistem, de forma crescente. São como Berenger, o anti-herói de Ionesco. Após muito vacilar, e feliz por não ter se transformado, como tantos, em mais um rinoceronte, ele assume sua humanidade: “A mim vocês não pegam! Eu não vos seguirei, eu não vos compreendo! Continuarei como sou, um ser humano! (...) Contra todo mundo, eu me defenderei. Sou o último homem, hei de sê-lo até o fim: não me rendo!”.

Há caminhos.