sexta-feira, 5 de abril de 2013

Traição na web - Arthur Dapieve


No varejo, a internet nunca deixou de ser o que sonhamos: iluminadora e subversiva

Não, calma, não é nada disso que você está pensando. Não me conectei ontem. No final dos anos 1980, o “Jornal do Brasil” começou a implantar computadores na redação, a princípio como meros processadores de texto. No “Caderno B”, só havia três máquinas. Uma estava comigo. No começo dos 1990, os editores do GLOBO fizeram um curso sobre a então nascente World Wide Web no Departamento de Informática da PUC-Rio. Eu era um deles. Entre 2000 e 2002, trabalhei no primeiro grande site jornalístico independente do país, o “NoPonto”, no qual eu tinha um blog em que indicava e comentava brevemente textos interessantes disponíveis na internet.

O xamã do folk - Hermano Vianna


O Globo - 05/04/2013

 

Os três discos da “Anthology of American folk music”, de Harry Smith, criaram a base para o movimento de rock-folk que impulsionou muitas carreiras como a de Bob Dylan

Harry Smith completaria 90 anos em maio. Ele morreu meses depois de receber o Grammy de 1991 como homenagem a tudo de bacana que produziu durante sua vida. Na premiação, no palco do Radio City Music Hall, declarou: “Fico feliz em dizer que meus sonhos se tornaram realidade, que eu vi a América transformada pela música”. É discurso de um homem realizado, que — mesmo tendo enfrentado todas as dificuldades de um cotidiano muitas vezes miserável, sem dinheiro até para a comida — conhece muito bem sua importância para os bons destinos de nossa época histórica. Nem era preciso acrescentar que o tipo de música que transformou a América foi, em grande parte, revelado pelo, e só valorizada a partir do seu trabalho.

Os três discos da “Anthology of American folk music” que compilou para a gravadora Folkways nos anos 1950 — reeditados em CDs pelo Smithsonian quatro décadas depois — criaram a base para o movimento de rock-folk que impulsionou muitas carreiras como a de Bob Dylan. Fala-se mesmo de uma “Irmandade da Antologia”, formada por pessoas — por exemplo, o fotógrafo Robert Frank — que depois de escutar aquelas músicas passaram a ter em Harry Smith um mestre espiritual, guia para transformação cultural de grandes proporções, anunciadora de outra América, ancestral e futura.

Há uma anedota pitoresca sobre a veneração de Dylan por Smith. Certa vez Dylan passou na casa de Allen Ginsberg, onde Smith morava de favor, com problemas nos dentes e no esôfago que só permitiam ingestão de líquidos. Ginsberg queria tirar onda apresentando os dois. Smith nem se levantou da cama para cumprimentar o já ilustre cantor. O psiquiatra do poeta anfitrião recomendou a partida do hóspede irascível, pois aquela presença estava “elevando sua pressão arterial”.

Esse episódio está narrado no texto biográfico que Ed Sanders, da banda The Fugs, publicou no encarte do quarto volume da Antologia, lançado pelo selo Revenant, de John Fahey (músico extraordinário, mais um — como Sanders — que merece coluna só sobre sua obra), depois da morte de Smith. Tal escrito e mesmo o disco que o acompanhava incluem muitos mistérios. O biografado fez questão de confundir amigos (como Sanders, que por anos foi dono de livraria frequentada quase que diariamente por Smith) e discípulos (como os que ouviram suas lições no Instituto Naropa, no Colorado, onde foi xamã-residente, cargo que permitiu algum conforto para seus últimos anos de vida), afirmando ser filho do mago Aleister Crowley ou que sua mãe era uma princesa filha de tzar russo.

O que se sabe com alguma certeza é que teve infância pobre nos arredores de Seattle, morando perto de reservas indígenas, onde eram praticados os potlachs, inspiração para o livro “A parte maldita”, de Georges Bataille, que por sinal acaba de ganhar nova tradução brasileira. Cantos dessas cerimônias pré-punks foram gravados por um Harry Smith ainda adolescente, antes mesmo de iniciar o curso de Antropologia na Universidade de Washington.

Uma carreira acadêmica não combinava com a inquietação frenética da mente de Smith. Logo ele partiu para San Francisco, atraído pelo clima boêmio que anunciava os anos da geração beat. Lá, ouvia jazz, estudava ciências ocultas, pintava, fazia cinema experimental (pintando na própria película) e colecionava muitas coisas, sobretudo compactos de 78 rpm, produtos do nascimento da indústria fonográfica, ainda muito fragmentada, sem o modelo de negócios concentrador adotado na sua época de ouro. Por incrível que pareça, apesar da novidade tecnológica, era muito mais fácil gravar e lançar discos no início do século XX. O mercado iniciante foi tomado por uma variedade incrível de estilos e músicos que nunca mais teriam chance de ser ouvidos quando as gravadoras passaram a se interessar principalmente por aquilo que pudesse entrar para o hit parade e para a rádio Top 40.

Devemos a Antologia a uma das inúmeras crises financeiras de Smith. Ele estava agora em Nova York, onde fazia gráficos para tentar desvendar (apenas para si mesmo) os padrões modernistas dos solos de Thelonious Monk (foi assim que Ginsberg o conheceu, desenhando na plateia do clube Five Spot), quando teve que se desfazer dos discos para pagar o aluguel e não ser despejado (como aconteceu anos depois, perdendo muitas pinturas e escritos). Moe Asch, o comprador e dono da Folkways, ficou impressionado com o conhecimento de Smith e encomendou a curadoria de uma seleção do material. Sorte da América, sorte nossa.

PS: Ainda quero fazer uma comparação entre os olhares modernistas de Harry Smith e Mário de Andrade diante do folk e do folclore. Tarefa bem insana, para futuro distante.


Leonardo Boff - O papa Francisco inaugura um novo milênio para a Igreja?

 O TEMPO

TUDO INDICA QUE MODELO SE ENCERROU COM A RENÚNCIA DE BENTO XVI

O primeiro milênio do cristianismo foi marcado pelo paradigma da comunidade. As igrejas possuíam relativa autonomia com seus ritos próprios: a ortodoxa, a copta, a ambrosiana de Milão, a moçárabe da Espanha e outras. Veneravam seus próprios mártires e confessores e tinham suas teologias, como se vê na florescente cristandade do norte da África com santo Agostinho, são Cipriano e o teólogo leigo Tertuliano. Elas se reconheciam mutuamente, e, embora em Roma já se esboçasse uma visão mais jurídica, predominava a presidência na caridade.

O segundo milênio foi caracterizado pelo paradigma da Igreja como sociedade perfeita e hierarquizada: uma monarquia absolutista centrada na figura do papa como suprema cabeça (cefalização), dotado de poderes ilimitados e, por fim, infalível quando se declara como tal em assuntos de fé e moral. Criou-se o Estado pontifício, com exército, sistema financeiro e legislação que incluía a pena de morte. Criou-se um corpo de peritos, a Cúria Romana, responsável pela administração eclesiástica mundial. Essa centralização gerou a romanização de toda a cristandade. A evangelização da América Latina, da Ásia e da África se fez no bojo de um mesmo processo de conquista colonial do mundo e significava um transplante do modelo romano, praticamente anulando a encarnação nas culturas locais, em grande parte destruídas com a cruz e a espada. Oficializou-se como de direito divino a separação estrita entre o clero e os leigos. Esses, sem nenhum poder de decisão (no primeiro milênio, participavam nas eleições dos bispos e do próprio papa), foram juridicamente e de fato infantilizados e mediocrizados.

Firmaram-se os costumes palacianos de padres, bispos, cardeais e papas. Os títulos de poder dos imperadores romanos, a começar pelo de papa e pelo de sumo pontífice, passaram ao bispo de Roma. Os cardeais, príncipes da Igreja, se vestiam como a alta nobreza renascentista. Isso permanece até os dias de hoje, para escândalo de não poucos cristãos.

Esse modelo de Igreja, tudo indica, se encerrou com a renúncia de Bento XVI. A eleição do papa Francisco, vindo "do fim do mundo", da periferia da cristandade, onde vivem 60% dos católicos, inaugura o paradigma eclesial do terceiro milênio: a Igreja como vasta rede de comunidades cristãs, enraizadas nas diferentes culturas, algumas mais ancestrais que a ocidental, como a chinesa, a indiana e a japonesa, e nas culturas tribais da África e comunitárias da América Latina. Encarna-se também na cultura moderna dos países tecnicamente avançados, com uma fé vivida também em pequenos grupos ou comunidades. Todas essas encarnações têm algo em comum: a urbanização da humanidade, pela qual mais de 80% da população vive em grandes conglomerados de milhões de habitantes.

Nesse contexto, será praticamente impossível falar em paróquias territoriais, de cunho rural, mas em comunidades de vizinhança de prédios ou de ruas próximas. Esse cristianismo terá como protagonistas os leigos, animados por padres, casados ou não, ou por mulheres sacerdotes e bispos ligados mais à espiritualidade do que à administração. As igrejas terão outros rostos, próprios das diferentes culturas.

A reforma, assim esperamos, não se restringirá à Cúria Romana, em estado calamitoso, mas se estenderá a toda a institucionalidade da Igreja. Talvez somente a convocação de um novo concílio, com representantes de toda a cristandade e de notáveis, por sua vida e sua ética, da sociedade civil mundial, dará ao papa a segurança e as linhas mestras da Igreja do terceiro milênio. Que não lhe falte o Espírito e a coragem.