domingo, 17 de março de 2013

Que elites, que esquerda? - JOÃO UBALDO RIBEIRO

A cada instante e cada vez mais, somos alvejados por milhares de informações de todos os tipos, muitas delas procurando, como consequência final, alterar nosso comportamento, seja para pormos fé nas lorotas pseudoestatísticas e conceituais que nos pregam os fabricantes de remédios, pastas de dentes e produtos de farmácia em geral, seja para acreditarmos que determinado partido político, ao pedir com fervor nossa adesão, realmente tem alguma identidade que não seja a que lhes emprestam seus tão frequentemente volúveis caciques. Aparentemente, nossos cérebros se defendem de ser entulhados com essa tralha e grande parte dela é esquecida.

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O GLOBO

Uma nação estressada - DORRIT HARAZIM

Nos EUA, declarar-se estressado passou a significar inserção e ascensão social

Com a divulgação, esta semana, do novo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), compilado pela Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, ficamos sabendo que o Brasil estacionou na 85. posição entre os 187 países avaliados. Com base num índice compósito de indicadores de renda, educação (anos de estudo) e saúde (expectativa de vida), aquartelamos no mesmo patamar que a Jamaica e Omã, o que soa pouco animador mas também não quer dizer nada. Dói bem mais, nestes primeiros dias de papa Francisco, saber que estamos 40 posições atrás da Argentina. No topo da pirâmide permanece a Noruega, seguida da Austrália e com os Estados Unidos em terceiro.

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Papa inesperado - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

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O Globo - 17/03/2013

Eu sei que ninguém mais diz coisas como “Pelas barbas do profeta!”, mas acho que deveríamos ter uma expressão parecida pronta para os casos de grandes surpresas (minha sugestão: “Pelas coxas da Beyoncé!”) como a eleição de um papa inesperado. Guardadas as óbvias diferenças, a escolha do argentino Jorge Mario Bergoglio equivale a um daqueles prêmios Nobel de Literatura dados a um autor que só dezessete pessoas no mundo conhecem, e dez estão mentindo. Na Venezuela corre a versão de que a escolha de Bergoglio foi resultado de um pedido feito pessoalmente a Deus pelo Hugo Chávez. Pode ser verdade, mas o que não contam é que a primeira reação do Senhor ao ouvir o nome do argentino foi: “Quien?”. As piadas proliferam. Já ouvi que, junto com a euforia, nota-se um certo desapontamento na Argentina pelo fato do novo papa ter preferido se chamar Francisco e não Diego Armando. A eleição do Jorge Mario, junto com os gols do Messi, espalham um certo temor pelo mundo: o de que a certeza argentina da sua superioridade sobre todos nós pode não ser megalomania!

É um pouco injusto evocar agora o suposto apoio ao regime, ou a suposta omissão, do novo papa durante a ditadura militar no seu país. A Igreja argentina sempre teve um poder junto à classe conservadora e o pensamento dos seus líderes muito maior do que a Igreja brasileira junto à nossa elite, por exemplo. O que de certa forma a exime, se não a redime. É compreensível que ela tenha sido cautelosa na preservação do seu poder em meio à selvageria, e que hoje se confunda isto com colaboração. Mas também é verdade que um regime repressor tão extraordinariamente brutal como foi o argentino deveria ter excluído qualquer prurido ou desculpa. Mas, enfim, os generais da repressão estão sendo responsabilizados e os torturadores estão indo para a cadeia (na Argentina, pelo menos) e o papa Francisco tem acesso direto ao ouvido de Deus, se sentir a necessidade de contrição. E se conseguir que o Hugo Chávez se cale.

CRÔNICA VOVÔ

Nossa neta Lucinda tem quatro anos e meio e sabe tudo. Há dias ela me mostrava a maneira correta de comer uvas. Meu argumento, de que já comia uvas setenta anos antes de ela nascer, não convenceu. Eu comia errado.

A loucura de Deus - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

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Pedro era a pedra sobre a qual se ergueria sua igreja, disse Jesus, no primeiro trocadilho registrado pela História, segundo o Millôr. Mas foi Paulo quem a construiu. O apóstolo propagador levou o cristianismo a todos os cantos do mundo conhecido e, na sua pregação, definiu o que havia de diferente na nova religião. Opondo-se a Pedro e aos cristãos primitivos de Jerusalém, Paulo marcou a distância entre a nova crença e suas raízes judaicas. E para marcar sua distância da filosofia grega dominante proclamou o cristianismo livre do racionalismo e do empirismo. "Sapientiam sapientum perdam" - destruirei a sabedoria dos sábios - disse Paulo, referindo-se a todas as formas de pensamento que a religião chegava para deslocar.

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Na sua primeira epístola aos Coríntios, Paulo escreveu, pelo menos na minha edição da Bíblia, que a "loucura" de Deus era mais sábia do que a sabedoria de todos os sábios, "loucura" significando o descompromisso da fé com a lógica. Nascia aí a discórdia entre a Igreja e a Ciência que atravessaria os séculos.

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Se Pedro foi o pai da Igreja como entidade mística, Paulo foi o pai da Igreja como entidade política e prática, e desde então as duas tradições competem ou se completam na luta contra o secularismo e a razão científica. É a força mística, a "loucura", da Igreja que a mantém viva até hoje, é a força política que ela mobiliza nas suas batalhas históricas para manter-se relevante. Suas lutas contra heréticos como Galileu eram menos para defender conceitos consagrados como o Universo geocêntrico e mais para preservar poder político ameaçado, o que equivale a dizer que em muitos casos o obscurantismo da Igreja era pragmatismo mal pensado.

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A Inquisição não aconteceu como terror contra agentes do Diabo e descrentes da Fé verdadeira, foi uma prolongada encenação de poder, uma mise-en-scène política com turnê internacional. A origem do terror não foi, portanto, a Igreja do simples e místico Pedro mas a do intelectual e craque em marquetchim Paulo

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O admirável é que a força mística da Igreja de Pedro tenha sobrevivido a todas as derrotas políticas da Igreja de Paulo. Agora mesmo se discute a relevância de uma Igreja que se posiciona contra o uso de preservativos que podem evitar doenças e morte e contra experiências genéticas que podem salvar vidas - em nome de uma sacralização da vida. Dá quase para dizer que a "loucura" de Deus, fora do contexto em que Paulo a usou como sabedoria superior à razão e à lógica, é loucura mesmo.

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Alguns dos novos pecados capitais publicados pelo Vaticano são surpreendentes. Agora é pecado ficar rico demais. O Vaticano só não especificou quanto é demais, talvez incerto sobre a sua própria riqueza. E perderam a oportunidade de transformar em pecado mortal, passível de uma eternidade no inferno, atender celular no cinema.

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As Igrejas de Pedro e de Paulo continuam competindo, como se viu na escolha do novo papa (estou escrevendo antes da fumaça branca) O que será mais temível, uma vitória de Pedro e dos simples em extinção ou uma vitória de Paulo e sua sede de relevância e poder, já que para as duas Igrejas o descompromisso com a lógica das "loucuras" de Deus é o mesmo?

Xará de coisa - Humberto Werneck

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O Estado de S.Paulo

Se você se chama Lúcio e ouvir dizer que sua carne é muito apreciada, não vá logo se sentindo o tal. Considere a possibilidade de que o objeto da consagradora observação seja um xará seu, o lúcio, cujo nome se escreve assim, com minúscula, não por modéstia mas por tratar-se de substantivo comum que designa um tipo de peixe, aliás de boa família, a dos esocídeos, encontrado em rios e lagos europeus - cuja carne, informa o dicionário Houaiss, "é muito apreciada", tanto ou mais, quem sabe, que a dos Lúcios com maiúscula.

Agora suponha que o camarada (você?) se chama Guilherme e alguém lhe conte que os carpinteiros fazem com o guilherme o que bem entendem. Não se ofenda. Guilherme, no caso, é uma "ferramenta usada para fazer os filetes das portas, das junturas das tábuas, frisos de caixilhos etc." Sem você, ou melhor, sem guilherme, a carpintaria não seria o que é.

Já contei como costumo me perder quando vou ao dicionário, e eis aqui uma ilustração de minhas errâncias lexicais. Fui saber o que é "guilho" (já esqueci) - e o que me apareceu imediatamente acima do verbete, no Houaiss eletrônico? O guilherme, substantivo proveniente do francês guillaume (que é como se chamam os Guilhermes de lá), incorporado à língua portuguesa desde o ano de 1713. Foi aí que me perdi de vez, na insana garimpagem de nomes próprios que, sem desdouro de seus portadores, sejam também comuns. Não sei se com isso ganhou alguma coisa a minha cultura, como se sabe escassamente mobiliada, mas pelo menos fiquei em condições de poupar você de se embrenhar também em tão vadia investigação - até porque ela desemboca às vezes em surpresas pouco agradáveis.

Se você se chama Bernardo, por exemplo, saiba que o nome escolhido por seus pais pode significar - quem diz é o Houaiss, não eu - "indivíduo gordo ou estúpido". Ou, em Portugal, ser sinônimo "jocoso" (qual a graça?) de pênis. Console-se com o Gregório, que carrega a mesma desdita e a quem, aliás, o dicionário reserva pecha ainda mais constrangedora, sobre a qual prefiro silenciar.

Estela, além de estrela, designa uma "coluna ou placa de pedra em que os antigos faziam inscrições, geralmente funerárias". Cecília pode ser um arbusto e, ao contrário de todas desse nome que conheço, as serpentes também chamadas "cobra-cega" e "cobra-de-capim". Já beatriz é um peixe - mas não, como o lúcio, de carnes abordáveis, possuidora que é de "espinhos venenosos nas nadadeiras dorsal, anal e pélvica". Cuidado com a beatriz, portanto. O gonçalo, por seu turno, vulgo "bagre-de-água-doce", não faz mal a ninguém.

Ainda quando não vegetem, ao reino vegetal pertencem a marcela, a carolina, a mariana e angélica, todas elas arbustos. Sabia que a mônica é uma variedade de mandioca? E que o polivalente filipe tanto pode ser duas sementes grudadas como uma ave pardacenta e, na Bahia, um "saco, geralmente pequeno e de couro, no qual se guarda comida"? Um saco, o filipe!

Bete é "certo jogo infantil originado do beisebol". O estevão, sem o circunflexo que o humanizaria, pertence a dois reinos, o vegetal e o animal, podendo ser arbusto ou ave, esta de "vocalização alta e maviosa" e conhecida também por uma dezena de outros nomes, entre os quais "esteves", "pixororém" e "tico-tico-guloso".

A marta, além do mamífero de pele tão valorizada, é uma uva, e não qualquer: americana. Quanto à maria, esta você não só conhece como, não me entenda mal, certamente já comeu: aquele biscoito "de formato redondo e espessura muito fina". Redondo como o luís, a conceição, o mauro e nicolau, que são moedas, as três primeiras de ouro, e a última, coitada, de ordinário níquel.

Antes que você pergunte: não há nada que se chame Humberto com minúscula. Mas me lembro do corretor ortográfico, lusitano, de meu primeiro computador, um 286 movido a lenha. Quando não reconhecia uma palavra, oferecia alternativas. No caso de "Humberto", a sugestão era... "jumento". Ainda não sei se fico arrasado ou envaidecido.

Um pouco de sensatez - Caetano Veloso


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Fala Caetano

O Globo

 

Felizmente a ministra Marta Suplicy recuou da decisão de incluir as TVs a cabo no rol dos produtores de cultura beneficiados pelo ministério

Felizmente a ministra Marta Suplicy recuou da decisão de incluir as TVs a cabo no rol dos produtores de cultura beneficiados por mecanismos do ministério. O artigo de Cacá Diegeues na semana passada deixava claro o absurdo que seria a aplicação da nova norma. TVs a cabo fazem dinheiro grande, são dinheiro grande, e nem traduzem os títulos ingleses das séries, quase todas americanas, que apresentam. Um ministério que deseje incentivar a criação cultural no Brasil não tem por que incluí-las em seus programas de incentivo.

Será crível que Marco Feliciano tenha sido escolhido presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias? Na explicação que ele ofereceu aos fiéis da sua igreja, a África é citada várias vezes como “essse país”, o que mostra ignorância a respeito do assunto que tratou com tanta veemência. Nitidamente ele vê a África como um todo unitário. Bem, a maldição dos que, miticamente, foram popular a África já foi usada antes pelos racistas de vários lugares para justificar a escravidão. Feliciano a usa, sem cuidado, para explicar Idi Amin, a Aids, as faminas etc. Uma autoridade responsável por uma comissão de direitos humanos não pode basear suas falas e atitudes em dogmas religiosos. Menos ainda se ele demonstra simplismo grosseiro na interpretação destes.

É difícil admitir que presida uma comissão que supostamente protege as minorias um homem que grita, irado, que se os homossexuais querem fazer “suas porcarias”, que as façam escondidos dentro de seus quartos, em suas casas, nunca se beijando em locais onde suas filhas possam ver “dois homens barbados, de pernas raspadas, aos beijos”. O pleito de casamento gay é um pleito de minoria representada que deve ser estudado por comissões parlamentares que tratem do assunto com calma, lucidez e isenção. Você pode seguir uma fé que determina que os atos homoafetivos são pecado (na verdade, são O PECADÃO, como observou alguém que meditou sobre o assunto, já que é um pecado que, dentre todos, costumava despertar a ira até dos incréus, sendo incomparável com o falso testemunho, a gula ou mesmo a atividade sexual livre entre pessoas de sexos opostos), mas essa maldição religiosa lançada sobre um tema não pode entrar aos berros num grêmio de legisladores que deveria acompanhar o movimento da sociedade auscultando suas forças e tendências. Há religiosos e ateus que odeiam atos homoafetivos e consideram os africanos uns amaldiçoados, mas isso não representa o movimento da sociedade como um todo. As pesquisas na maioria dos países do Ocidente (inclusive o Brasil) não dizem isso. E, mais importante, para além do aspecto democrático dessas auscultações, há de haver princípios de direitos inegociáveis, como é o direito de igualdade de respeito e de oportunidades. É simplesmente grotesco que um religioso que fala em tom tão fanático se eleja presidente de uma comissão que deveria proteger os que têm carência de respeitabilidade e de oportunidades.

Espero que a menção feita por Marina Silva, a quem tanto admiro, à troca “de um preconceito pelo outro”, no caso da discussão sobre a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, não signifique que opor-se à escolha de Feliciano, nos termos em que o faço, é uma mera troca de preconceitos. Contra quê, aliás, seriam os preconceitos de quem discute a escolha? Contra evangélicos? Contra pastores? Contra religiosos em geral? Sim, sem dúvida há. Vejo em filmes e piadas de TV, em conversas e em textos publicados, intolerância contra a vitalidade com que as igrejas neopentecostais se impõem no Brasil. A hipocrisia dos pregadores, a ganância de dinheiro, enfim, tudo o que se pode apontar em toda organização religiosa é quase sempre o aspecto ressaltado. Mas eu nunca me identifiquei com essa atitude. Vejo o crescimento das igrejas evangélicas como uma forma de progresso no nosso caminho para onde devemos ir. Não admiti nunca as campanhas anticandomblé que elas alardeavam. Mas isso serenou. Religião é assunto imenso. Leio Mangabeira. Penso. Acompanho pessoas íntimas que são profundamente religiosas. Umas católicas, outras evangélicas e ainda outras espíritas ou candomblezeiras. Eu próprio não sigo religião. Mas, mesmo que seguisse, teria de entender que Comissão de Direitos Humanos deve tratar dos temas pertinentes de modo não sectário.

Será que o Brasil, além do mini-PIB, terá que passar agora por papagaiadas como essas? São muitas maluquices que podem atrasar nossa caminhada. Ao contrário do que diz Feliciano, o continente africano está se erguendo. O Brasil, tão cheio de promessas desde sempre, será que vai ficar entalado?
Pelo menos Marta viu a luz.