sábado, 4 de janeiro de 2014

Lúcia Rocha. Mãe do cineasta Glauber Rocha

O Globo 04/01/2014

Baiana, ela incentivou a carreira do filho, recebia artistas em sua casa e batalhou para o estabelecimento do Tempo Glauber



Musa. Desde a morte de Glauber, Dona Lúcia Rocha lutou para preservar sua memória


ANDRÉ MIRANDA
andre.miranda@oglobo.com.br

Da sabedoria de seus 85 anos
de vida, o produtor Luiz Carlos
Barreto resume bem o que
uma mãe pode representar
para um filho:

— Eu sempre brinquei com a Dona Lúcia
falando que, para entender o Glauber,
era preciso conhecê-la. Ela foi sua inspiração
para tudo.

“Dona Lúcia" é a maneira carinhosa
com que cineastas — e também escritores,
músicos, outros artistas ou apenas
amigos — se referiam a Lúcia Mendes de
Andrade Rocha, uma baiana nascida em
Vitória da Conquista em 16 de janeiro de
1919. Dona Lúcia teve quatro filhos, sendo
que um deles, muito por incentivo dela
própria, tornou-se simplesmente o
mais celebrado diretor do país, aquele
que ajudou a dar uma expressão brasileira
para o cinema. Mais do que mãe, Dona
Lúcia foi a musa e peça fundamental para
o desenvolvimento da carreira de
Glauber Rocha.

Filho mais velho do casamento de Dona
Lúcia com o caixeiro-viajante Adamastor
Rocha, Glauber foi batizado, por ideia da
mãe, em homenagem ao cientista alemão
Johann Rudolf Glauber, que descobriu o
sulfato de sódio, no século XVII. Mas seu
ofício seria bem diferente. Logo quando
passou para o curso de direito na Universidade
Federal da Bahia, ela deu a ele uma
quantia para que comprasse um carro, mas
Glauber resolveu utilizar o dinheiro para
adquirir uma câmera de cinema. Adamastor
teria ficado aborrecido, só que Dona Lúcia
compreendeu a opção. Era o que o filho
queria fazer desde muito cedo, quando os
amigos o chamavam para jogar bola e ele
preferia ficar em casa debruçado nos livros.

Pouco depois, em 1959, quando Glauber
tinha apenas 20 anos e começou a rodar
“Barravento” (1962), seu primeiro
longa-metragem, Dona Lúcia preparava
as marmitas diárias e levava a comida de
carro para alimentar equipe e elenco. No
longa-metragem seguinte, “Deus e o Diabo
na Terra do Sol”, que completa 50 anos
agora em 2014, Dona Lúcia ajudou a costurar
as roupas usadas pelos atores.
Quando a verba para terminar algum filme
ficava curta, ela remexia nas finanças
da família e ajudava o filho.

Numa entrevista ao GLOBO, há quatro
anos, ela explicou sua motivação em ajudar
o filho: “Eu gosto de todos os filmes do
Glauber. E em todos eu contribuí de alguma
forma. Ele me ligava, contava o que queria
fazer, e eu dava força. Quando a gente bota
um filho no mundo, tem que ajudar”.

Aos poucos, com a fama de Glauber se
espalhando, Dona Lúcia passou não a
cuidar apenas do filho famoso, mas também
de muitos outros artistas que frequentavam
os mesmos círculos e ficaram
amigos de Glauber. Em sua casa na Bahia,
foram recebidos nomes como João Ubaldo
Ribeiro, Sonia Braga, Caetano Veloso,
Jards Macalé e Zelito Viana.

— Ela sempre foi muito presente no cinema
e também nos assuntos brasileiros —
recorda o diretor Nelson Pereira dos Santos.
— E era uma mulher de um nível moral altíssimo,
extremamente correta e carinhosa.
Ela recebia todos nós na casa dela na Bahia,
que era chamada de pensão da Dona Lúcia.

Outro que esteve bem presente na casa
foi Cacá Diegues, para quem Dona Lúcia
foi “a segunda mãe de todos nós”:
— Isso desde a época em que ela morava
na Bahia, antes de vir para o Rio. A casa
dela era aberta para todos nós, quando
éramos muito jovens. Ela teve uma importância
muito grande no cinema.
Quando o Glauber morreu, não só protegeu
a memória do filho, mas também a
do cinema brasileiro.

A morte de Glauber foi um baque para
Dona Lúcia, mas também significou o
início de uma nova luta. Ela já havia perdido
dois outros filhos — Ana Marcelina,
ainda adolescente, de leucemia; e a atriz
Anecy Rocha, em 1977, que caiu no fosso
de um elevador aos 34 anos — quando
Glauber morreu em 22 de agosto de 1981,
vítima de septicemia. Quase que imediatamente
Dona Lúcia passou a reunir todo
o material que encontrava sobre o filho,
um movimento que resultou na fundação
do centro cultural Tempo Glauber, em
Botafogo, no Rio, e que hoje é tocado por
sua filha, Ana Lúcia, e por netos.

— O Tempo Glauber merece mais atenção
do poder público. É um centro espetacular
que recebe visitantes e pesquisadores
de todo o mundo, e que guarda não
só a memória do Glauber, mas muito da
memória do Cinema Novo — diz Luiz
Carlos Barreto.

Parte dessa memória se foi ontem, com
a morte de Dona Lúcia, aos 94 anos. Ela
estava em casa, em Copacabana, quando
teve uma parada cardíaca. O velório foi
realizado no Tempo Glauber, e o enterro
está marcado para hoje, às 14h, no Cemitério
São João Batista. l