domingo, 12 de maio de 2013

O passado - Caetano Veloso


Eu queria somente dizer que me fez mal ter visto um filme português legendado em português brasileiro no Canal Brasil

No domingo passado escrevi aqui de modo tão confuso que peço desculpas a quem me leu; peço a quem não leu que não leia; e resumo: eu queria somente dizer que me fez mal ter visto um filme português legendado em português brasileiro no Canal Brasil (as legendas não reproduziam as frases ditas pelos atores, mas as substituíam pelo que os tradutores acreditavam ser o equivalente em português brasileiro coloquial). O resto eram digressões na maioria das vezes impertinentes. Recebi alguns e-mails por causa disso. Só posso dizer que eu gostaria de escrever do modo desencanado de Daniel Galera, ou com a organização de nível acadêmico de Zé Miguel Wisnik, ou com a argumentação bem esquematizada à Francisco Bosco. Para não falar na inveja que tenho do humor rápido de Verissimo ou da verve sintática de Ubaldo. Bem, não vou falar mais nomes porque seriam muitos, sobretudo entre aqueles que são precípua ou exclusivamente jornalistas. Mas não posso negar que amo advérbios de modo, parênteses, travessões e períodos longos. Jorge Mautner sempre me diz que, num artigo sobre a tradução americana de “Verdade tropical”, algum resenhista anglófono citou Faulkner a meu respeito. Eu não me lembro de ter lido nada disso. Sigo Mautner como a um mestre, mas isso não quer dizer que acredito que tudo o que ele diz seja fato. Ele está sempre no nível do mito.

Viajando muito por causa do show do “Abraçaço”, não tenho visto os filmes que quero ver. Se eu pudesse, ia ao cinema todos os dias. Na verdade, eu fazia isso quando tinha 18, 19, 20 anos. Também quando tinha 12, 14, 15 (não é que pulei os 13 como fazem os hotéis americanos ou americanizados, por uma superstição chocante num mundo tão exibidamente desencantado como é o mundo dos hotéis de muitos andares. Não. Pulei os 13 porque correspondem ao ano que passei no Rio, quando ia pouco ao cinema, talvez menos do que ao auditório da Rádio Nacional: não havia cinema em Guadalupe, e eu não saía sozinho nesta cidade enorme). Se eu tivesse visto algum filme, escreveria aqui sobre ele. Gosto de escrever sobre cinema. Posso ter opiniões peculiares, para não dizer esquisitas, mas sei falar sobre o que se vê na tela, se ouve na sala e se sente (eu sinto) no coração. Dos livros que estou lendo não dá para falar. Além de ler e reler Bessa-Luís (e aqui aproveito para pedir desculpas a meus amigos portugueses que porventura tenham lido meu artigo sobre as legendas, já que para eles minhas elucubrações devem ter parecido ainda menos compreensíveis), acabei de ler um livro de Mangabeira Unger que tem o provocativo título “A religião do futuro”. Na verdade já terminei essa leitura há mais de um mês, mas ainda volto a alguns trechos para conferir e estudar, de modo que é como se estivesse ainda acabando de ler. E estou lendo um outro, chamado “A nova mente da máquina”, uma série de ensaios que falam de cosmologia e física quântica mas que são, na verdade, sobre psicanálise. O autor é Aristides Alonso. Ambos os livros são difíceis. Não posso comentar aqui como quem comenta o filme que viu ontem. Curiosamente certas questões cosmológicas aparecem nas duas diferentíssimas obras de maneira similar. (Aliás, li também a introdução de um outro livro de Mangabeira, que trata exclusivamente de cosmologia, sobre o qual seria mais difícil falar do que sobre “A nova mente da máquina” ou “A religião do futuro”.)

Por falar nisso, quando eu aprendi a ler e a escrever, sobretudo quando aprendi coisas mais complexas sobre leitura e escrita, as palavras de um título vinham, como ainda vêm em inglês, todas com iniciais maiúsculas. Ainda hoje às vezes sigo essa antiga regra que não sei quando foi abolida. Assim como nomes comuns que compunham nomes próprios, como Avenida Delfim Moreira, que, não percebi quando, virou avenida Delfim Moreira. Mesmo no meio de uma frase, escrevia-se Dr. Fulano, Sr. Beltrano, Padre Sicrano. Hoje (eu acho) é tudo com minúscula. Será que a gente escreve mesmo santo Tomás de Aquino? Sou um menino dos anos 1950, me assusto com isso. Mas não quero falar de língua e regras de escrita: estou traumatizado com o artigo do último domingo. Penso que, se eu deixar, vou escorregar pelas observações minuciosas mas cheias de erros. Bagno vai rir mais de mim.

Se eu não fosse cantar no dia 15, no Circo Voador, pela diversidade sexual, eu iria, antes do “Abraçaço” na Concha Acústica de Salvador, para Santo Amaro, participar da festa do 13 de Maio, que se estende até o dia 18. Um dos maiores orgulhos de minha vida é Santo Amaro festejar a abolição da escravatura desde 1889. Dia 18 canto no Recife. Vou tentar correr até minha cidade no dia 16. Se não der, terei cantado pela diversidade sexual aqui. É sempre a abolição.