sábado, 25 de janeiro de 2014

Batismo de fogo - José Castello

O Globo - 25/01/2014
 
O ROMANCE DE JAVIER CERCAS TRATA DA CONSTRUÇÃO DOS MITOS, QUE PODEM SER DE MATERIAIS IMPREVISÍVEIS

Contar uma vida, resumi-la, explicá-
la — será isso possível? É o esforço
que faz Ignácio Cañas, o
protagonista de “As leis da fronteira”,
livro do espanhol Javier
Cercas (Globo Livros/ Biblioteca
Azul, tradução de Josely Vianna Baptista). O romance
é narrado como uma série de entrevistas,
não apenas com Cañas, o principal informante.
Pedaços se costuram precariamente. Vozes buscam
um fio que as ligue. Tudo no esforço de dar
vida a Zarco, um marginal cheio de glamour a
quem Cañas conheceu, e de cuja luta insensata
se aproximou, em1978, três anos apenas após a
morte do general Franco.

As aventuras de Zarco, um mito da marginalidade,
se passam em Girona, na Catalunha. Ele é
um “charnego”, apelido dado aos emigrantes
vindos do interior do território. A essa altura, Girona
é uma cidade cercada por um mundo marginal.
Uma fronteira imaginária separa suas duas
partes. Quando conhece Zarco em um fliperama,
Cañas é só um adolescente de classe média,
tímido e inquieto, massacrado pela brutalidade
dos companheiros de escola. Procura um
esconderijo, encontra-o na figura do herói marginal
— repetindo um fascínio pela margem que
marcará parte importante da juventude da segunda
metade do século XX.

Trinta anos depois, um escritor colhe material
para um livro sobre o mito de Zarco. Cañas se
torna seu principal informante. No fliperama
em que ele e seu anti-herói se conheceram, a
máquina de pinball preferida de Cañas era dedicada
ao herói Rocky Balboa. Zarco e a garota, Tere,
o expulsam do jogo. Naquele primeiro gesto
brusco, contudo, surge uma aliança. Passa a frequentar
o Bairro Chinês, que não era exatamente
um reduto da comunidade de migrantes da
China, era mais uma espécie de “boca do lixo”.
Ainda tenta resistir trabalhando numa mercearia,
mas quando dá por si está totalmente envolvido
pelo mundo sujo de Zarco.

“A história que vou lhe contar não é a do Zarco,
mas a de minha relação com o Zarco”, ele adverte
seu entrevistador. Começa a se traçar, assim, um
retrato torto do herói marginal, uma espécie de retrato
lateral, marginal ele também. Javier Cercas, o
escritor real, sabe que também a literatura transcorre
numa oscilação entre o centro e a margem,
entre a verdade oficial e as verdades submersas, e
que é dessa inconstância que
ela tira sua riqueza. Quanto
mais paradoxal, mais inquieta
uma narrativa, mais rica ela será.
Cercas é mestre na arte da
quebra de fronteiras e este romance
é mais uma prova disso.

Conforme se aproxima de Zarco,
Cañas — que em sua entrada
na gangue será apelidado de
Quatro Olhos — passa a sentir
rancor profundo contra os pais.
Renega sua classe social para viver
um sonho — doloroso, mas intenso — de
transfiguração. Sua admiração por Zarco é uma
mistura explosiva de fascínio e dúvida. A gangue
rouba carros, assalta casas vazias, pratica pequenos
furtos. “Ali começou o perigo de verdade”,
Cañas resume. Quando participa pela primeira
vez do roubo de chalé, experimenta seu batismo
de fogo. Queima-se — com entusiasmo e medo,
espanto e excitação — no mundo da margem. Toca
o outro lado. Aquele que não é previsto pelo
script de sua vida de rapaz de classe média. Entende
que entrou em um caminho sem volta.

Os objetos furtados vão para receptadores. Uma
rede sombria passa a envolvê-los. Não usam drogas
pesadas, apenas maconha.
Conservam certos limites que,
no entanto, não servem para garantir
coisa alguma. A seu entrevistador,
30 anos depois, Cañas
nega que Zarco fosse idealizado
e assegura que aceitou dar um
depoimento só para destruir seu
mito. Mas admite que terminou
sendo o primeiro a idealizá-lo.
Quanto mais confessa, quanto
mais abre suas memórias, mais
se afunda nas próprias palavras.
Conhecida como Liang Shan Po — nome tomado
de empréstimo de um seriado de TV, uma versão
oriental de Robin Hood —, a gangue de Zarco está,
sim, desde o início, encoberta por lendas.
Cañas se torna, ele também, mais uma lenda.

Na versão policial, Zarco é não só um dos símbolos
da delinquência juvenil, mas o “viciado oficial”
da Espanha. Já Cañas seria apenas “um
adolescente de classe média dando um passeio
pelo lado selvagem”. Com o avançar das páginas,
o contraste de versões ao mesmo tempo clareia e
borra o retrato de Zarco. Quanto mais a verdade
se adensa, mais ela mostra, mas também mais
esconde. A polícia começou a perseguir a gangue
de Zarco ainda sem saber o que perseguia. A
margem é fluida e obscura, nelas os personagens
surgem de repente e desaparecem logo depois.
Mais complexo que seu anti-herói, Cañas
luta para sobreviver em uma vida dupla, entre a
marginalidade e o convencional, entre o crime e
a lei. Perdido, debatendo-se para cá e para lá,
torna-se um personagem tão rico quanto Zarco.

A gangue é guiada pelo improviso e pelos impulsos
de Zarco — e é isso que traça sua decadência.
Mais tarde, Zarco se tornará um herói da
mídia, assinará biografias e terá até filmes sobre
sua vida. O que nele tanto fascina? Não é a certeza,
mas a incerteza. Como seu anti-herói, também
Cañas é um personagem de alma dividida.
É esta divisão e o abismo que ela descerra que
torna os dois personagens tão fascinantes. Estruturado
como uma busca inconstante, e não
como um romance com início, meio e fim, também
o livro de Javier Cercas guarda o mesmo estilo
escorregadio que marca a vida marginal. O
último golpe da gangue, improvisado e patético,
é um fracasso. Tudo isso, em vez de obscurecer,
engrandece o mito de Zarco e dos seus.

O destino do jovem Cañas será traçado por um
policial, o inspetor Cuenca, e por seu próprio
pai. Um círculo se fecha — ou um futuro imprevisto
se abre. O romance de Cercas trata da construção
dos mitos, que podem ser feitos de materiais
imprevisíveis e representar sentimentos
improváveis. Em nosso mundo cada vez mais caracterizado
pela turbulência e pela mistura, a
margem está, a cada dia, mais quebrada, mais
difusa e mais próxima. Uma pergunta parece definir
nossos dias: “Onde estou?” No fundo, carregamos
a margem dentro do peito como uma espécie
sinistra de destino.

João Paulo - O copo e o vento‏

O copo e o vento

"O que a eleição pode trazer de melhor é a explicitação de projetos divergentes, com defesas consistentes dos dois lados"
 
João Paulo
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br



Estado de Minas: 25/01/2014 


 

Copo d'água, obra do artista plástico Iran do Espírito Santo, que pode ser vista na Galeria Mata, em Inhotim (Maria Tereza Correia/EM/D.A Press-22/10/08)
Copo d'água, obra do artista plástico Iran do Espírito Santo, que pode ser vista na Galeria Mata, em Inhotim
 “É sempre bom lembrar/ que o copo vazio/ está cheio de ar.” Os versos de inspiração zen-budista da canção de Gilberto Gil parecem sintetizar, muitos anos depois, a situação real do nada sagrado tempo em que vivemos. Enquanto poucos e eloquentes cantam o copo vazio da crise que se avizinha inexoravelmente, a maioria parece bastante otimista, tocada pelo vento seguro, como uma nau de velas pandas.

Em outro contexto, o psicanalista francês Jacques Lacan apelava para a existência de três constituintes do universo psicológico – o real, o simbólico e o imaginário. Não parece ser outra a relação das pessoas com a sociedade e a política. Há o real, dos que vivem o dia a dia; o imaginário, dos que desejam outro cenário; e o simbólico, que pode ser traduzido nas ideologias que de certa forma amparam os dois lados em conflito.

O que a canção e a psicanálise têm a nos dizer, quando se trata de economia e crise, é que sabemos sempre menos do que precisamos. As certezas se mostram a cada dia mais caducas e exigem não apenas abertura para o novo, mas honestidade de propósitos. Algo que é essencial sempre, mas que se torna civilizador quando se entra, como agora, no calor de uma eleição.

O ponto de discordância entre os pessimistas – do meio copo vazio – e os otimistas – do copo meio cheio – é, mais uma vez, a precedência dada à economia quando se discutem divergências políticas. Tudo se passa como se houvesse alguns universais a serem perseguidos (controle da inflação, estabilidade, pleno emprego, crescimento sustentável) e pequenas diferenças na forma de chegar a esses objetivos.

No entanto, a própria colocação do problema já antecipa o sentido do debate. É preciso lembrar sempre que a opinião pública, de certa maneira traduzida no Brasil pela opinião publicada pela chamada grande imprensa, parece ter apenas como norte a defesa dos valores liberais de mercado. Para entrar na roda, é preciso de antemão se localizar entre os “capitalistas modernos”, que pela cartilha da mídia é quase uma redundância. Ainda que falsa em seus fundamentos.

Por isso, o tratamento dado à economia no contexto das disputas políticas precisa ser feito com mais honestidade. Tipo papo reto. Não há consenso, como se propaga, que o melhor receituário é o que incorpora a inflação na meta, câmbio livre e equilíbrio fiscal, com atenção especial ao superávit primário. Essa equação quase sempre desanda para a subida de juros, volatilidade de capitais e garantia do ganho do setor financeiro rentista, mesmo à custa do arrocho do contribuinte.

Trata-se de uma economia ligada a valores que são menos do mercado (uma entidade quase mágica) e mais do capital (que pode ser fetichista, mas não tem nada de irreal). Os chamados fundamentos da economia são, na realidade, uma forma técnica de defesa de uma opção nitidamente política. Além do mais, tal receituário, aplicado por décadas nos países ricos com o lastro das economias dependentes, está fazendo água, com alto grau de desemprego e insegurança social em muitos países da Europa. A ideia de uma social-democracia para poucos não pode mais subsistir num cenário de demanda real de melhoria do padrão de vida para todos.

No lado da economia das pessoas comuns a sensação é outra. Mesmo com a ameaça da inflação como grande atiçador brandido por parte da oposição, a melhoria do padrão de vida é patente. Programas sociais vitoriosos – na área da distribuição de renda, oportunidades na educação e moradia – são traduzidos no dia a dia como novo patamar qualitativo de existência. E, o que é mais significativo, alteram a relação das pessoas com a sociedade e com a autoestima. Há uma postulação de direitos, tomados como naturais e evidentes, que é ainda mais importante que as conquistas meramente materiais.

Se o fato fosse apenas a distinção de projetos para a sociedade brasileira – e é para isso que servem as eleições – tudo estaria no melhor dos mundos. Bastaria apresentar as propostas existentes e dar ao povo liberdade de escolher. No entanto, o que se percebe é um atravessamento moral do debate, como se estivesse em jogo a verdade ou, em outras palavras, o bem contra o mal. Sempre que se descamba para o terreno do moralismo, quem perde primeiro é a política. Uma eleição que resgata a política começa bem. É o que se espera dos próximos lances. Ou então, o que sobra é um misto de descontentamento alienante (“todo político é ladrão”) somado a uma cobrança por eficiência (“padrão Fifa” ou “Primeiro Mundo”).

O projeto liberal, representado pela oposição – e por isso é bom que Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central na gestão de Fernando Henrique Cardoso, esteja sendo apresentado, ainda que informalmente, como economista-orgânico de Aécio Neves, possível candidato do PSDB às eleições presidenciais –, vai na linha da defesa dos chamados fundamentos da economia de mercado. São propostas vindas do setor financeiro, com trânsito privilegiado pelo mercado de capitais, como indica a origem de Fraga.

É isso que a eleição pode trazer de melhor, a explicitação de projetos divergentes, com defesas consistentes dos dois lados: o neodesenvolvimentista, do atual governo; e o neoliberal, das oposições (para ficar mais amplo, é só lembrar que no caso de Eduardo Campos, virtual candidato do PSB, sai Armínio e entra Giannetti da Fonseca na seara da economia, sem mudanças substanciais). É com esses elementos, desdobrados nos debates em propostas concretas, que o eleitor vai ter que se dar para fazer sua opção. Não com a escolha entre Deus e o diabo, entre a mentira e verdade, a modernidade e o atraso. Na vida, como na política, as metáforas são apenas fantasmas.

MAGAZINE CONECTION
No começo da semana, num programa da TV paga, Manhattan Conection (um exemplo antipático de subserviência colonial e intelectual da mídia brasileira, que costuma indicar o melhor pãozinho de NY), a empresária Luzia Trajano, dona de uma rede de lojas de varejo, foi posta na arena dos leões do ultraliberalismo. Em desvantagem numérica – estava sozinha contra um economista e três jornalistas alinhados com a tese do copo vazio –, ela mostrou números, propósitos e ações que fazem a diferença entre a teoria catastrofista e a realidade.

De um lado, a ameaça da bolha; do outro, a celebração do crescimento do emprego e do consumo; um setor defendendo o capital transnacional, a varejista apontando a especificidade do nosso mercado. O programa foi ainda exemplar em outro aspecto, sobre o qual ainda temos que melhorar muito: a capacidade de ouvir o outro. Na arrogância que caracteriza a elite brasileira (da qual a imprensa é um bom sucedâneo), existe sempre a palavra autorizada, que um dia Marilena Chauí nomeou de “discurso competente”. Luzia, na contramão desse jogo de cartas marcadas, levou ao telespectador, além da comunicação fácil e sincera, a sabedoria que faltava a quem sempre se defendeu mais com padrões morais que com a realidade.

Luiza pode ser empresária, mas é mulher, deixa claro que veio de baixo e atua num setor pouco charmoso do mercado (vender papéis podres e carros insustentáveis é mais chique que negociar chapinhas e tanquinhos). Por isso tinha tudo para ser diminuída e tratada como um dinossauro (o jornalista Diogo Mainardi, que mostrou sua ignorância com relação aos números da inadimplência brasileira no comércio, chegou a varticinar a venda do magazine para uma pontocom americana). O resultado, no entanto, como se viu durante a semana nas redes sociais, foi uma empatia dos argumentos da empresária com o sentimento das pessoas.

Essa talvez seja a lição mais importante para quem está preocupado em dar o rumo certo ao debate econômico durante o franco período eleitoral que vivemos. Quem vota não são os colunistas de economia e seus leitores, cada vez mais parcos e desinformados, mas as pessoas comuns. E, por uma regra de mercado, destas que não costumam falhar, geralmente a maioria está certa, já que a inteligência e o bom senso não são atributos de classe. Uma Luzia Trajano vale mais que quatro comentaristas. Com o voto, a lógica é a mesma: a realidade sempre liquida a teoria vazia e cheia de ar.

Livraria Folha seca


Vingança nas redes sociais

Relações efêmeras, expostas como objeto de consumo, geram frustração e ressentimento em jovens incapazes de conviver em igualdade com a diferença e o desejo do outro


Inez Lemos
Inez Lemos é psicanalista. E-mail: inezlemoss@gmail.com.


Estado de Minas: 25/01/2014

 

As relações humanas, inclusive as afetivas, estão sendo mediadas pelas redes sociais, que se tornam também território de represália aos fracassos (Hoang Dinh Nnam/Reuters)
As relações humanas, inclusive as afetivas, estão sendo mediadas pelas redes sociais, que se tornam também território de represália aos fracassos
 Ao escrever sobre relações afetivas contemporâneas, quando a tendência é expressar os sentimentos via ondas eletromagnéticas, o que está em questão é uma profunda mudança na produção da subjetividade – um novo sujeito e uma nova forma de vivenciar as pulsões: amor, ódio, vingança, inveja, ressentimentos. Outrora, ao falarmos de sentimentos, transportávamos o pensamento para um outro lugar, arrastávamos as entranhas para o mundo íntimo. Um mundo que, ao ser acessado, requer um pouco de silêncio e concentração, centrar no que nos causa estranhamento. O silêncio, por sua vez, requer tempo – tempo é a mediação que viabiliza contato com a vida interior. Sem ele dificilmente questionamos o modo de ser e estar no mundo.

Vivemos a mania dos smartphones e tablets. Tornou-se comum entre a moçada agendar as relações afetivas e sexuais on-line. O tempo é o tempo virtual, é nele que se vive, se ama e se tenta resolver os incômodos. A vida íntima, os conflitos, logo é registrada em redes sociais. A questão que destacamos é a qualidade das relações, como os jovens estão elaborando a sexualidade, algo maior que envolve perdas, pernas e corações. Nem todos conseguem desvincular o ato sexual dos sentimentos. Relação implica duas pessoas se envolvendo, trocando profundezas. Intimidade não se resume em tirar a roupa e ir para a cama, mas desnudar, aos poucos, as camadas internas. É quando escolhemos quais as páginas da alma que queremos mostrar ao outro. A vida afetiva exige mergulho nas entranhas. Amar é entranhar, revisitar poços, cavernas e grutas.

Como resistir à efemeridade nas relações, a não adesão à banalidade dos sentimentos? Como expressar o descontentamento com o rumo do mundo, quando tudo se transforma em espetáculo, circo midiático? Uma transa vira notícia no Facebook, a viagem e o carro novo têm que ser postados. Exibimos a fartura, a abundância, a beleza e o sucesso. E como fica a vida quando tudo é precário, fracasso e pobreza? Não seria a violência, a criminalidade e os rolezinhos – o urro que destoa da manada, a boiada que sofre a exclusão? A obsessão em priorizar o consumo – a arrogância fascista de se impor pelo dinheiro define os traços de uma sociedade desigual e injusta. A maioria dos pais está ocupada em tamponar a falta do filho com objetos, máquinas e mimos. Poucos pensam em uma formação humanista, uma outra concepção de mundo. Qual o lugar que queremos que o nosso filho ocupe? O de bem-sucedido, rico, estúpido e machista? Os monstrinhos de hoje serão os bandidos de amanhã. Ou será que julgamos monstros apenas os excluídos, que crescem sendo humilhados, destruídos pela desfaçatez daqueles que se julgam melhores por transitarem em carros importados?

O debate questiona o tempo e seu papel na educação das crianças. A forma como os jovens amam, pensam e circulam pela vida remete à postura dos pais. Família, cidadania, ética. Palavras desgastadas diante da fissura em locupletar. O pai não tem tempo para conversar com o filho, a mãe julga mais importante a academia e o salão de beleza. Tudo é prioritário quando se trata de cumprir com as funções paternas e maternas. Tempo, esse desconhecido quando o assunto é educação de filhos. Contudo, ele é o elemento que possibilita aos pais imprimirem nos filhos a marca, o diferencial de cada família. Como educá-los priorizando experiências em que viceja intimidade, interioridade? Relações sem viço são frouxas e expõem a descrença dos envolvidos na potência dos sentimentos. A qualidade da convivência confere sentido à vida, o fio que une brota de dentro. Dificilmente estabeleceremos relações douradoras apenas por satélites.

Nas redes sociais a comunicação é mecânica, a máquina mediando um espaço coletivo, espaço de pouca elaboração onde o tempo é fruição sem maturação. Tempo imediato e não mediato. A internet é um recurso excelente para trocar visões de mundo, encontro de ideias e debates. A obsessão em registrar intimidades em rede atesta a superficialidade da nova ordem amorosa. O mundo virtual em que os afetos e desafetos são postados lembra o Coliseu romano. No Império Romano, a diversão da plebe era torcer pelos gladiadores. Hoje, a juventude se diverte digladiando uns aos outros na arena virtual. As feras soltam o veneno da inveja, ciúme e ressentimento. O palco cibernético é o escolhido pela moçada – muitas garotas se despem e oferecem aos namorados material para possíveis vinganças.

O Brasil é um dos campeões em usuários de celulares e redes sociais, contudo, os índices não são suficientes em garantir qualidade nos conteúdos das mensagens. Não avançamos na forma de trabalhar os sentimentos danificados. O ressentimento não elaborado transforma-se em vingança – sentimento que nasce do retorno dos desejos vingativos sobre o eu. Ao querer se livrar dos incômodos, agimos sem pensar, sem tentar saídas honrosas. Logo, lançamos sobre o outro a fúria, caldo fermentado na crueldade. Sentimento tóxico que adoece a alma indigente e impiedosa. Destacamos a importância daquele que deseja lançar a espada sobre o seu algoz, de se implicar e analisar o teor da vingança – dívida adiada, acumulada. A vingança é a tentativa de reparar o sentimento de ter sido lesado. Uma reparação fajuta, uma vez que o alívio incide apenas em privar o outro de algo – se eu não a tenho, ele também não a terá.

DESEJO E CONFLITO


O sofrimento, sensação de perda e necessidade de se sentir superior, expõe a frustração de não ser o que gostaríamos de ser – o eu idealizado confrontando com o eu real. Ser amado e aceito é um mecanismo de defesa, idealização de proteção. Fantasia que ameniza a sensação de desamparo e abandono. Dependência garantida. O que está em questão não é o amor que sinto pelo outro, mas a dor que sentirei ao perdê-lo. A propriedade é fantasia de proteção, defesa contra a tragédia do desamparo. Sentir-se amado é deparar com a necessidade de escapar da angústia, do medo e da loucura. A traição é uma forma de fuga, de escapar do que realmente importa – a não consciência de si. É o ato de se excluir de uma determinada situação, um acordo que fazemos com a incapacidade de explorar os conflitos afetivos. Todo desejo é conflitante.

O ato de tentar escapar ileso, de não se implicar, demanda pouco esforço. Atravessar os incômodos é mais difícil que suplantá-los. O desejo de punição exposto na web, a chamada pornografia de vingança, é a versão atualizada da violência de gênero. E deveria contribuir para o debate sobre a forma como os jovens estão sendo educados. Machismo, homofobia e racismo apontam rejeição ao diferente e deflagram uma educação elitista, patrimonialista. Talvez falte às famílias introduzir o debate sobre temas e conceitos sociológicos e antropológicos. Saber perder, saber lutar, questão necessária quando o assunto é um mundo menos violento. A violência é efeito da frustração. Sem refletir sobre perdas, exclusão e humilhação, pouco podemos esperar dos jovens. Geração que aprendeu a exigir e pouco sabe sobre trabalho e conquistas.

Deixar frustrar, suportar que o filho entre em contato com a dor pela perda da ilusão da superioridade. Saber do fracasso é se preparar para a satisfação, é dar conta de assumir o lado obscuro, a lama que habita cada um de nós. Cultivar a frustração é manter a ilusão sobre nós mesmos. Quanto mais frustrados, mais ressentidos e vingativos. Se o desejo advém da falta, negá-la é manter-se na repetição, na mesmice. Enfrentar as próprias mazelas, se implicando e se responsabilizando pelo fracasso, é transformação, ação sobre o sentimento.

Como enfrentar a dor se não paramos o caminhão? É na boleia, no ir e vir da vida, que a compreensão se processa. Ao nos proteger da raiva de se saber pior, mais feio ou menos poderoso, algo tem que se romper e abrir espaço para bons sentimentos. Perdão, tolerância, compreensão. A vingança, o desejo de fazer o mal é a incapacidade de estabelecer contato consigo e com os outros. Quando vivemos afastados de nosso âmago – lugar onde jorra emoção –, nos privamos de esperança. Como lutar por sentido e se extasiar pela alegria da conquista? Viver a secura do mundo, desidratado e pouco recompensado por práticas afetivas consistentes, é cunhar loucura. Devastação. No deserto, as almas indigentes de sentido denunciam a descrença no futuro. Atos descabidos e enlouquecidos. O excesso ou a falta de esperança os condenam ao tédio, enfado – pouco há a desejar. Violência e vingança são apelos ao limite, o grito de socorro pela irrelevância da vida, quando tudo é permitido. Seres deformados pela promessa de prazer eterno. Covardia é pecado difícil de ser perdoado, uma vez que não há vida humana sem passar pela experiência da dor. Saber viver é saber conviver com a falta. Ser onde não tenho, eis a questão.


Inez Lemos é psicanalista. E-mail: inezlemoss@gmail.com.