A música da América Latina é discutida sob a neve carnavalesca de Nova York
Na quinta-feira da semana passada, como sempre nesses últimos três
anos, eu escrevia minha coluna de sábado, sobre a nevasca em Nova York,
onde estive no carnaval, quando caiu a tempestade sobre a zona Oeste de
São Paulo, tempestade violenta, ciumenta, mais imprevisível e
incontrolável do que a neve que eu vira lá. A energia elétrica do bairro
foi para o espaço e só retornou de madrugada. Ilhado pela chuva, com o
texto salvo mas perdido dentro do computador inacessível, eu fiquei sem
ter como começá-lo todo de novo em algum outro lugar, e faltei ao meu
lugar aqui. A chuva do meu bairro, o rio da minha aldeia, quis falar
mais alto e calar, de alto a baixo, meus devaneios sobre a neve alheia.
Mas
a neve não era tão alheia assim. Na verdade eu estava dizendo que a
visão de um grupo de marinheiros brasileiros, mulatos e cafuzos, andando
penosamente na neve em Nova York, nos anos 1920, percebidos
angustiadamente como “caricaturas de homens”, estava entre os momentos
originários de toda a obra de Gilberto Freyre. A interpretação é de
Ricardo Benzaquen de Araújo na abertura de seu
“Guerra e paz: Casa
grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30”. Freyre
se lembra com incômodo, a partir da visão, da frase de um viajante
americano ou inglês que enxergara um aspecto de “vira-lata” na população
brasileira. Todo o seu esforço ensaístico pode ser compreendido,
segundo Ricardo Benzaquen, como a tarefa de refutação e reversão dessa
imagem, que coincide aliás com a do famoso “complexo de vira-latas” de
Nelson Rodrigues.
Eu não tinha me lembrado disso enquanto
enfrentava nas calçadas a nevasca de carnaval em Nova York, embora me
sentisse um polaco mulato e cafuzo diante da primeira neve real (as do
inverno parisiense sempre me foram leves e passageiras). Fui para um
colóquio na Universidade de Columbia, que se propunha a pensar a música e
o som na América Latina e no Caribe. A coluna da semana retrasada, que
eu deixei pronta quando viajei, cumpria a dupla função de ser uma
crônica nostálgica de sábado de carnaval, literalmente de “saudades do
Brasil”, ao mesmo tempo que um ensaio para o que ia fazer lá, isto é,
falar sobre o “pequeno nada” rítmico, impossível de escrever, que Darius
Milhaud sentiu nas músicas de Ernesto Nazareth quando executadas pelo
autor, e que podia ser visto como um índice das transformações pelas
quais passou a música europeia nas Américas, transformada pela presença
da África.
O colóquio revelou-se uma imersão fascinante e pouco
acadêmica (se tomarmos a palavra no mau sentido, o de formalidade
estéril) no pensamento e nas experiências musicais das Américas, entre
músicas eletrônicas e indígenas, salsa e jazz, poesia e canção, em meio
às quais a ideia do “pequeno nada” encontrou múltiplas ressonâncias. O
compositor equatoriano de origem indígena conta como trabalhou com
Stockhausen e volta à música indígena, o crítico paraguaio confronta o
som e o silêncio nos ritos guaranis com o pensamento ocidental, os
porto-riquenhos (com os quais eu descubro cada vez mais afinidades
pessoais e culturais) falam sobre batuques transpostos para a linguagem
poética, sobre a “jíbara” camponesa na salsa e as relações desta com o
jazz (a palestra entusiástica era feita instintivamente em ritmo de
salsa) ou sobre Ruth Fernández, cantora porto-riquenha do tempo de Celia
Cruz, Pedro Vargas e Libertad Lamarque. E ainda, a música latina no
Harlem ou a música erudita argentina fazendo a paráfrase borgeana do
museu sonoro europeu, com a proverbial desincompatibilização portenha da
África. As cubanas foram impedidas de vir.
A reunião ia de manhã à
noite no último andar do International Affairs Building de Columbia, de
onde se via a neve cair, suave e contínua, sobre a cidade mais e mais
branca em ritmo minimalista e em escala de
land art. Acredito
não estar delirando se disser que havia ali um cosmopolitismo
concentrado e consciente do grande contraponto de diferenças que fez da
América o continente do encontro dos continentes (“Que continente
loco!”, me exclamou o venerando Mesías Maiguashca, o índio equatoriano
de Stockhausen, enquanto ele saía e eu entrava no banheiro), e que tudo
isso encontra seu corpo material e imaterial na música. Digo mais: a
recente confirmação do poder de fogo do voto latino na eleição
presidencial norte-americana, e o rumo apontando para a inevitável
inclusão dos trabalhadores informais e irregulares na realidade dos
Estados Unidos, dava às discussões uma nova, mesmo que difusa, sensação
de autoridade.
O Brasil também desfruta dessa difusa nova sensação
de autoridade. Nada como aquela que eu senti, intimamente, quando
Claudia Neiva de Matos mostrou Geraldo Pereira cantando “A dama ideal”,
com a entoação tão relaxada e o show de pequenos nadas na voz, sambando
soberano sobre a neve de Nova York.