sexta-feira, 3 de maio de 2013

A Primavera na sombra - Yan Boechat e Dubes Sônego

Para o Valor, de Túnis e Cairo 

Valor Econômico - 03/05/2013


 Dois anos após os levantes no mundo árabe, a economia patina, a política não avança e há quem tenha saudade da ditadura.



Meia dúzia de toalhas puídas descansam em um varal de chão em frente à barbearia. Secam sob o sol ainda tímido. Lá dentro, a luz fraca, no teto baixo, ilumina a saleta onde mal cabem duas cadeiras de barbeiro, decorada com versos do Corão emoldurados nas paredes e bancos de madeira nas laterais. Merhez Zouri usa uma máquina preta pequena e barulhenta para fazer os últimos ajustes no cabelo do cliente, cortado bem curto nas laterais e com volume em cima, como gostam os jovens tunisianos. Fala pouco, mas segue o ritual universal dos barbeiros. Espelho a 45 graus de cada lado da orelha para checar como está o corte na nuca, escovinha no pescoço para retirar os pelos, batida nos ombros para não deixar que os fios de cabelo se juntem à roupa. Tudo muito cerimonioso, tudo em silêncio.

Aos 21 anos, Zouri é um veterano das batalhas de rua que incendiaram a Tunísia e deram início ao movimento que ficou conhecido como Primavera Árabe. Assim como milhares de jovens de sua idade, em janeiro de 2011 ele foi às ruas da capital, Túnis, para atirar paus, pedras e tudo o que encontrassem pela frente contra as forças de repressão, nos protestos que acabaram por derrubar o ditador Zine el Abidine Ben Ali. A desilusão com os resultados do levante, no entanto, o tornaram saudosista.

"Sabem quem é esse?", pergunta, apontando para a foto de um homem de terno preto, uma faixa roxa repleta de medalhas grandes a cruzar-lhe o peito, postado ao lado da bandeira da Tunísia, que faz as vezes de tela de fundo de seu telefone celular. "É Ben Ali. Deixo a foto dele aqui para mostrar para todo mundo que eu queria que ele voltasse", diz, olhando para a imagem clássica do ex-ditador, que por décadas decorou os prédios públicos do país.

Zine el Abidine Ben Ali, o homem que comandou a Tunísia com mão de ferro por 23 anos, partiu no dia 14 de janeiro de 2011. Acuado por maciços protestos populares, reuniu a família, juntou os pertences mais valiosos e embarcou em um jatinho particular com direção à Arábia Saudita. Com a queda do ex-general do exército que conquistara o poder por meio de um golpe de Estado, chegava ao fim um ciclo de seis décadas de ditaduras caracterizadas pela combinação de valores seculares e brutal repressão política e religiosa neste pequeno país do Norte da África, famoso por suas praias paradisíacas e por seus cenários desérticos exuberantes nas dunas do Saara.

Foi a queda de Ben Ali, muito mais do que as manifestações de rua iniciadas em 18 de dezembro de 2010, após a auto-imolação de Mohammed Bouazizi, um jovem vendedor de frutas no interior do país, que serviu como estopim para as revoltas que tomaram o mundo árabe no inverno de 2011. A queda do tirano diante de protestos populares foi o catalisador para que jovens reunissem coragem suficiente para ir às ruas do Egito, da Líbia, da Síria e de outros países para enfrentar ditadores. Mas muito mais do que um movimento ideológico, a Primavera Árabe foi uma resposta às condições econômicas e sociais que entraram em um processo de decadência ainda mais acelerada após a crise financeira de 2008. Merhez Zouri foi à rua por isso. Nos meses que antecederam a chamada Revolução de Jasmim, não conseguiu entrar em uma das universidades financiadas pelo Estado. Sem conhecer quem tivesse boas relações no governo, viu suas repetidas tentativas de conquistar um emprego no serviço público frustradas. "Eu me arrisquei na revolução porque não havia chances para mim e para praticamente ninguém aqui do meu bairro. Acreditávamos que tirando Ben Ali deixaríamos de ser pobres", diz.

Manifestante registra com tablet imagens de protesto pró-governo em Túnis; a tecnologia digital foi empregada amplamente nos primeiros meses da Primavera Árabe

Zouri é um jovem moreno, de cabelos quase lisos e de cara fechada, que facilmente passaria por brasileiro. Vive com os pais no Ibn Khal Doun, bairro operário como muitos das periferias das grandes cidades brasileiras, distante pouco mais de uma dezena de quilômetros do centro de Túnis. Por ali, é fácil encontrar grafitado o tradicional "A.C.A.B.", anagrama para "All Cops Are Bastards" (todos os policiais são "bastardos"). Nos cafés, dezenas de jovens passam o dia tomando chá, vendo futebol e fumando shisha, o narguilé.

Nos últimos dois anos, pouca coisa mudou no Ibn Khal Doun. "Só piorou. Os preços estão mais altos e os empregos, que já eram poucos, sumiram", diz. A única ocupação que Zouri encontrou foi na pequena barbearia de um conhecido, nas proximidades de casa, onde garante a principal renda da família: "Foi tudo um erro, queria mesmo que a revolução nunca tivesse acontecido". A frustração que acompanha o jovem barbeiro tunisiano é compartilhada por milhões de pessoas no Norte da África, no Oriente Médio em boa parte dos países ocidentais, que viam a chamada Primavera Árabe como um momento de transformação profunda nessa que é uma das regiões mais conturbadas do planeta. As decepções não são homogêneas. Longe disso.

Há jovens pouco politizados que esperavam uma melhora rápida e significativa nas condições econômicas. Há a elite educada desses países, que acreditava estar colocando fim a décadas de controle social e cultural por parte dos ditadores. E, por fim, havia toda a expectativa da comunidade internacional de que os países árabes entrassem em um ciclo de democratização aos moldes ocidentais.

Nada disso ocorreu. Dois anos após o que muitos analistas políticos chamaram de "a queda do muro de Berlim árabe", os países que derrubaram seus ditadores vivem momentos de crise profunda. Seja ela política, econômica ou sectária. No fim, com exceção da Síria, onde o futuro ainda é uma incógnita, Tunísia, Egito e Líbia avançam em direção ao cenário menos esperado quando das revoluções: o acirramento conservador proporcionado pelos movimentos islâmicos, os grandes vencedores políticos da Primavera Árabe.

"Os movimentos islâmicos saíram-se vencedores não exatamente por serem islâmicos. Ganharam as eleições porque, no fim das contas, eram os únicos verdadeiramente organizados politicamente", diz Stacey Gutowski, professora do Programa de Estudos sobre Oriente Médio e Mediterrâneo do King"s College, em Londres. No caos pós-revolução, nenhum grupo político era tão organizado, tão capilarizado quanto os movimentos islâmicos, que passaram boa parte das últimas cinco décadas atuando no subterrâneo. O egípcio Hosni Mubarak, o líbio Muamar Gadafi, Ben Ali e mesmo o sírio Bashar Al Assad reprimiram com rigor todos os movimentos políticos que tinham base islâmica. No Egito, a Irmandade Muçulmana, apesar de muito ativa, estava na ilegalidade há quase quatro décadas. Na Tunísia, o Ennahda, cópia independente do movimento egípcio, foi banido e boa parte de seus principais líderes foi para o exílio.


Mas, em comum, todos eles montaram uma rede de assistencialismo, tendo como base as mesquitas. Em países onde um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza, como no Egito, qualquer auxílio material ou econômico é sinônimo de poder.

"Os secularistas sempre foram mais ligados às forças sociais e culturais internacionais, sempre foram mais cosmopolitas, mas ao mesmo tempo estavam longe da população mais simples", diz James Reilly, professor de história moderna do Departamento de Estudos das Civilizações do Oriente Médio da Universidade de Toronto. "Quando chegou o momento das eleições, a histórica organização dos movimentos islâmicos permitiu que eles mobilizassem os eleitores de forma muito mais eficiente", diz.

No Egito, maior e mais importante país da região, o vencedor das eleições - democráticas e limpas, atestam observadores internacionais - foi a Irmandade Muçulmana, o principal movimento islâmico de todo o mundo árabe, nascido nos anos 1920. Desde que Mohammed Morsi se tornou o presidente do país, o Egito aprofundou ainda mais sua crise. Seja por causa da oposição, que não aceita o fato de Morsi tentar promulgar uma nova Constituição que lhe dá poderes quase ditatoriais e tem muitos pontos baseados na sharia, a lei do Corão, seja por causa de uma profunda crise econômica. Na Líbia, o cenário é ainda mais complexo. Após uma guerra civil sangrenta, que terminou com a morte brutal do ex-ditador Muamar Gadafi, o país tenta evitar que divisões históricas façam surgir um novo confronto. Como nos tempos de Gadafi, o Leste, principalmente a região de Benghazi, reclama de não receber a atenção que merece do Oeste, onde está a capital, Trípoli.

A diferença agora é que o país está armado, com divisões tribais mais acirradas e com crescente participação de grupos islâmicos extremistas. Um ataque orquestrado pela Al Qaeda matou o embaixador Chris Stevens no consulado dos Estados Unidos em Benghazi, em setembro. Na semana passada, um carro bomba explodiu na frente da embaixada francesa em Trípoli, na Líbia, deixando dois guardas feridos.
Grupos islâmicos radicais também têm tido participação importante na Síria, onde a guerra civil, que já matou mais de 70 mil pessoas, parece distante do fim. Desde que uma jihad foi decretada por clérigos sunitas, combatentes ligados a movimentos radicais de todo o mundo árabe seguiram para a Síria para combater as forças do ditador Bashar Al Assad, que pertence à corrente minoritária Alauita e é apoiado pelos xiitas do Irã. Bem armados e experientes, esses combatentes estão ganhando espaço na guerra civil e já há quem preveja que, em caso de derrota do regime, ocorra uma tentativa de instalar um Estado islâmico radical no país. É na Tunísia, no entanto, que a vitória dos movimentos islâmicos e da crescente onda de conservadorismo é mais emblemática. E não só pelo fato de ter sido ali o berço da Primavera Árabe. Nenhum país no mundo árabe tinha uma relação tão distante entre Estado e igreja quanto a Tunísia, que, ao longo das últimas seis décadas, se transformou em uma ilha de secularismo, imposto pela mão pesada do Estado.

"Antes da revolução, o uso do véu e da barba eram até malvistos. Hoje, já se escutam histórias de famílias que pressionam as filhas a usar o véu, com medo de que sejam discriminadas ou tenham dificuldade para arrumar um namorado e casar", diz o embaixador brasileiro em Túnis, Luiz Antônio Fachini Gomes, que chegou ao país em setembro de 2010, três meses antes do estouro da revolução.

Túnis ainda tenta ser uma pequena Paris. Na avenida Habib Bourguiba, que homenageia o ex-ditador que garantiu às mulheres liberdades como o direito de escolher o marido e a participação ativa em todas as áreas da vida civil, há dezenas de cafés em estilo francês, com pequenas mesas redondas e cadeiras de vime. São pontos de encontro onde os tunisianos se reúnem para conversar, tomar café e beber cerveja, uma liberdade impensável na vizinha Líbia ou na distante Arábia Saudita. Mulheres elegantes ainda caminham sobre saltos altos por entre as árvores de copas aparadas desta alameda de prédios em estilo neoclássico do século XIX. Mas, lentamente, os véus, antes proibidos, vão ganhando as ruas.


Pela força e por políticas públicas, a Tunísia coibia manifestações religiosas que ameaçassem interferir na estrutura social de um país que se vê, ainda, mais europeu que árabe. Durante os últimos governos ditatoriais do país, mulheres que usassem o véu e homens que ostentassem a barba no estilo muçulmano eram convidados a dar explicações à polícia. A liberação só era feita depois da assinatura de um documento em que se comprometiam a tirar o véu e cortar a barba. A recusa poderia significar a perda de documentos e dificuldades para encontrar emprego, estudar e usar serviços públicos básicos. O ex-jogador de futebol Anis Hamrouni, ponta-direita promissor que chegou à seleção sub-20 da Tunísia, foi vítima de situações como essa inúmeras vezes.

Desde que parou de jogar, há sete anos, por causa de uma meningite, Hamrouni se aproximou da religião e se tornou salafista, membro da corrente muçulmana que advoga uma interpretação mais radical do Corão e que pretende implantar a sharia em todo o mundo árabe. Salafistas como ele foram duramente perseguidos no governo de Ben Ali. "Fui preso inúmeras vezes, só porque mantinha a barba grande, como agora, ou porque simplesmente não queria usar roupas ocidentais", conta. "Não podíamos ser o que nosso profeta Maomé nos ensinou a ser."

Hamrouni frequenta uma das 500 - de um total de 5 mil - mesquitas tunisianas que passaram a ser dominadas por salafistas após a queda de Ben Ali, há dois anos. Ele, como todos os que seguem a mesma linha religiosa, acredita que não há espaço para democracia na Tunísia, assim como não há espaço para direitos das mulheres ou mesmo a necessidade de criar uma nova constituição. "Alá nos deu tudo, está tudo no Corão, não precisamos de novas leis, não precisamos de homens nos governando, quem nos lidera é Alá", diz ele, profundo admirador de Osama Bin Laden.

São homens como Anis Hamrouni que representam, ao menos para a população mais ocidentalizada da Tunísia, a maior ameaça a décadas de contínuas conquistas liberalizantes. "Essa não é a Tunísia que conheço. Não consigo acreditar que mulheres sem véu estão sendo xingadas nas ruas, e que pessoas que defendem a sharia têm voz na sociedade", diz o jovem Ashraf Ayadi. Ele, como uma parcela importante da população urbana da Tunísia, é um muçulmano não muito praticante. Vai à mesquita vez ou outra, mas tem um estilo de vida muito ligado ao Ocidente. "Aqui na Tunísia, não somos 100% árabes, somos uma mistura de povos. Por isso somos essa ilha de secularismo", afirma, em inglês impecável. "Mas se os islamistas continuarem a ganhar força, as coisas vão piorar", diz ele, que, aos 22 anos, trabalha como tradutor e radialista em Túnis.

Para as mulheres, as coisas já pioraram. No Egito, onde em 2010 a maior parte da população (54%) era a favor da segregação por gêneros no ambiente de trabalho e 82% apoiavam a adoção da pena de morte por apedrejamento em caso de adultério, o retrocesso em relação a conquistas femininas consolidadas no Ocidente é imenso. Não só a promessa de campanha de uma vice-presidente mulher não vingou, como a cota parlamentar de mulheres, que existia, foi removida.

Entre mulheres de classe média, muitas das quais são muçulmanas e foram às ruas ajudar a derrubar o governo em 2011, o medo agora é que uma nova constituição legalize práticas que são regra em áreas mais pobres, como o casamento a partir dos 13 anos - a Irmandade Muçulmana defende a idade de 9 anos.


No Egito, até a descriminalização da mutilação do clitóris, da qual escapa somente um terço das meninas egípcias, chegou a ser cogitada pelo atual presidente, ligado à Irmandade Muçulmana. Mas acabou descartada. O número de casos de violência sexual também aumentou significativamente, mesmo em áreas que eram frequentadas livremente por mulheres nos protestos de 2011, como a Praça Tahrir, território proibido para mulheres sozinhas, em especial à noite. A área ficou tão perigosa que, só no aniversário do início dos protestos, em 25 de janeiro, foram confirmados 18 casos, muito deles de estupros coletivos.
Na Líbia, onde um dispositivo de lei que garantia igualdade de direito às mulheres foi removido da constituição redigida após a guerra civil, a situação é semelhante, segundo informações da Anistia Internacional.

Na Tunísia, onde até a queda do antigo regime as mulheres iam à praia em biquínis, Amina Tyler, uma jovem de 19 anos, foi condenada à morte por apedrejamento por um clérigo radical depois de postar na internet uma foto em que aparecia fazendo topless, com a frase "F... a sua moral" pintada no corpo, em árabe. O protesto contra a crescente repressão às mulheres no país repercutiu mundialmente e terminou com o rompimento de Amina com a família religiosa. Ela está escondida e quer fugir para a França. Teme ser violentada por policiais ou morta por salafistas.

Os salafistas fazem parte do grupo mais extremo dos movimentos islâmicos. Ao contrário da Irmandade Muçulmana ou do Ennahda, na Tunísia, advogam que todo o mundo árabe precisa voltar a ser um califado. De origem sunita e surgido em sua versão moderna no século XVIII, o salafismo passou a ganhar mais força nos anos 1960 e veio a desaguar em movimentos radicais como a Al Qaeda.

Apesar de os partidos moderados islâmicos, como a Irmandade Muçulmana, no Egito, ou o Ennahda, na Tunísia, não compartilharem da visão desses movimentos, nenhum deles teve força suficiente para impedir o avanço dos salafistas no período pós-revolução. Para esses grupos não há espaço para negociação e o uso da força tem sido sistemático em defesa de suas ideias. "Há um crescente descrédito nas instituições que deveriam proteger os direitos humanos", diz o vice-diretor da Anistia Internacional para o Oriente Médio e Norte da África, Hassiba Hadj Sahraoui.

O auge dessa política de medo ocorreu em 6 de fevereiro na Tunísia, quando o líder da oposição Chokri Belaid foi assassinado com quatro tiros. Belaid era crítico feroz dos salafistas e acusava o Ennahda de não tomar nenhuma ação para controlar os mais radicais. A morte de Belaid pode muito bem ter sepultado o sonho de que um novo mundo de democracia e liberdade floresceria nos países árabes. A pergunta que ficou no ar foi: se não deu certo na Tunísia, o mais secular dos países da região, onde mais poderá dar?


"As próximas eleições vão definir se os islamitas vão consolidar o poder que conquistaram. Agora, mais do que antes, a questão econômica será crucial para definir quem sairá vitorioso", diz Amel Saffar, professor do Instituto de Altos Estudos Econômicos de Cartago e integrante da Associação Tunisiana para a Democracia, um dos grupos responsáveis pela observação das disputas eleitorais.

As próximas eleições parlamentares no Egito e na Tunísia estão marcadas para outubro, apesar de não haver certeza se elas de fato ocorrerão. No Egito, estavam programadas para o mês passado, mas os protestos violentos do início do ano no Cairo e em cidades próximas ao canal de Suez, somados às promessas da oposição de boicote, levaram Morsi a adiá-las para outubro. Agora o presidente dá sinais de que haverá novo adiamento. A razão, segundo ele, é que precisa de mais tempo para negociar um acordo de auxílio financeiro com o FMI (Fundo Monetário Internacional).

Muito mais que a Tunísia ou a Líbia, que passa por um momento de reconstrução pós-guerra civil, é o Egito o país mais pressionado pela decadência econômica que tomou conta dos países da região. Desde a queda de Hosni Mubarak, há dois anos, o processo de deterioração do cenário econômico se acelerou rapidamente. O PIB, que crescera 5,14% em 2010, decepcionou, com 1,7% em 2011; no ano passado, teve apenas uma leve recuperação, fechando em 2,21%.

Mas o problema mais grave está no balanço de pagamentos. Desde janeiro de 2011, as reservas em moeda forte caíram de US$ 36 bilhões para cerca de US$ 13 bilhões. O problema é grave para um país que mantém uma política de subsídios agressiva em produtos que precisa importar, como o trigo, do qual é o maior importador mundial, e o petróleo. Hoje o pão comercializado nas ruas do Cairo, por exemplo, custa o equivalente a menos de US$ 0,10, enquanto o litro da gasolina é vendido nas bombas a US$ 0,20. O gás de cozinha chega ao consumidor egípcio a meros 7% do valor internacional de mercado. Sem ajuda externa, os US$ 13 bilhões em caixa são suficientes para apenas três meses de importações.

A inflação disparou nos últimos meses. A taxa anual, que em dezembro estava em 5%, pulou para 8% em fevereiro. Ao mesmo tempo, a libra egípcia perdeu mais de 10% de seu valor apenas neste ano, tornando a missão do governo de abastecer o país com commodities importadas ainda mais difícil. A taxa de desemprego oficial saiu de 9% em 2010 para 12,3% no ano passado. O FMI, no entanto, projeta que os desempregados serão 13,5% da população economicamente ativa ao fim deste ano e 14,2% em 2014.
O Egito não quer aceitar o acordo com o Fundo para receber um pacote de auxílio de US$ 4,8 bilhões porque sabe que terá de adotar medidas de austeridade duras, como o corte de subsídios e o aumento de impostos, como exige o FMI. Os reflexos de um acirramento econômico em um país já dividido e instável são imprevisíveis.


Para não quebrar, o Egito anda de pires na mão. O Catar já deu US$ 5 bilhões e prometeu mais US$ 3 bilhões. A Turquia se comprometeu a transferir em dois meses US$ 1 bilhão, dos US$ 2 bilhões que prometeu no ano passado. Mesmo a Líbia, que se transformou em pouco mais que um punhado de cidades autônomas ricas em petróleo, anunciou no mês passado ajuda de US$ 2 bilhões.

A Tunísia também sofre com uma economia que caminha a passos lentos. Mas foi mais rápida nas negociações com o Fundo e garantiu, na semana passada, crédito de US$ 1,75 bilhão em caso de necessidade. O valor ficará disponível por 24 meses, segundo anunciou no dia 19 a diretora-gerente do Fundo, Christine Lagarde. Na lista de exigências do Fundo estão velhas recomendações conhecidas dos brasileiros, como políticas para a contenção da inflação, ajustes de despesas públicas, garantias à estabilidade do setor bancário e maior flexibilidade do câmbio, para que o país possa ganhar competitividade, melhorar suas contas externas e reservas internacionais.

Na praça Tahrir, na região central do Cairo, talvez o maior símbolo da Primavera Árabe, ainda estão as tendas montadas pelos manifestantes para marcar território e resistir às investidas das forças de segurança do governo. Um museu foi improvisado com paus e lonas plásticas para homenagear os mártires dos conflitos. Lá estão expostas charges políticas, pequenos textos e fotos de jovens desfigurados pela violência, de batalhas, de momentos de heroísmo e alegria. Há carcaças de carros incendiados, fezes nas entradas do metrô e muita poeira cobrindo a rua. Suja, decadente e insegura, ela, de certa forma, se transformou em um símbolo também do período atual.

"Os egípcios que fizeram a revolução estão cheios de perguntas sem resposta", diz Mohamad Shinnewy, jovem documentarista egípcio que vive na Tahrir desde o início dos protestos. Magro, a barba por fazer, os cabelos sem corte presos em um rabo de cavalo, Shinnewy é o retrato dos manifestantes de hoje. Está ali sem saber muito o que fazer, e diz: "Continuamos aqui para defender a revolução".

A rotina modorrenta e desesperançada é quebrada pelos constantes choques com a polícia. Eles ocorrem, em geral, nas proximidades da embaixada americana, a cerca de 500 metros da Tahrir. Sob as luzes fortes da avenida que margeia o Nilo, os manifestantes avançam e recuam em ondas, atirando paus, pedras e coquetéis molotov. Os mais destemidos à frente, alguns deles crianças, de peito aberto, se arriscando a receber tiros com munição para matar passarinhos. Do outro lado, a polícia responde também com pedras e bombas de gás lacrimogêneo. Depois de dois anos de enfrentamentos, um ar de normalidade toma conta do cenário.

O caos controlado atrai uma leva de vendedores ambulantes que se acostumaram a ganhar a vida em meio a conflitos como esse, que neste ano já fizeram mais de 70 mortos e cerca de 1.400 feridos. Misturados aos manifestantes, no meio da avenida, eles comercializam pães, lenços de pano - bastante úteis para respirar no ar saturado de gás lacrimogêneo -, água, sucos e chás. Alguns, como o dono de um grande carrinho de metal, já têm até slogans para desbancar a concorrência: "Aqueça-se com um chá para derrubar Morsi".

“Eu sou de um país que se chama Pará” - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

 O Estado de S.Paulo - 03/05/2013

Por que tanta gente de talento não chega ao Sul? Onde fica o muro que nos separa?

BELÉM

Quando a mediadora Renata Ferreira disse que o meu conto o homem que viu a osga comer meu filho a tinha aterrorizado, assustei-me. Não tenho este conto. Ela riu e explicou:“O que vocês chamam de lagarto ou lagartixa, chamamos de osga.Aliás, está no Aurélio”. Estava certa, o conto existe.
Quando ouvi a fotógrafa Elza Lima contar uma história minha em que os olhos dos cavalos do carrossel de meu avô eram petecas, reagi: “Como petecas? Eram bolas de gude”. Elza: “Pois aqui, petecas são as bolasde gude”.Caminhava pelo Espaço Palmeira, um feirão popular, no centro da cidade.Aqui foi uma tradicional fábrica de bolachas, biscoitos e doces, fundada em 1892. Demolida, restou uma área de piso concretada sobre a qual se armam as barracas.Então,ouvi: “Vamos fazer nossa sombra aqui”, disse o mulato de chapéu branco. E sentou-se com dois amigos num canto. Não havia sombra alguma, ao contrário, era um solão, mas gostei da expressão. Porque grande e diverso é o Brasil.

Vim para a 17.ª Feira Pan-Amazônica do Livro, que no ano passado vendeu 850 mil livros, me contou Paulo Chaves Fernandes, secretário de Cultura, arquiteto que criou as Docas e o Mangal das Garças, imperdíveis. A Pan-Amazônica deste ano termina no próximo domingo com Affonso Romano de Sant’Anna. Pelo palco principal passaram Ziraldo,Tony Bellotto, Cristovão Tezza, Guilherme Fiuza, Tiago Santana e José Castello. Para terem ideia, o folheto com a programação tem 74 páginas com oficinas, seminários, aulas, lançamentos, mesas-redondas, salão do humor.

Tudo acontece no Hangar, um centro de convenções moderno e funcional. Ao falarmos,temos à nossa disposição auditórios variadosque vãode300 a 1.500 espectadores. Distante daqueles espaços fechados por divisórias de eucatex da Bienal do Livro de São Paulo, ondea barulheira do salão penetra e ninguém ouve o que se fala.

Lembrei-me que estive na primeira Pan-Amazônica, ainda no centro, sufocada, apertada, mas cheia de gente. Assim como me lembro de uma casa de sucos da terra, onde havia um de pinha que era puro regalo. A casa fechou, virou loja. Por outro lado,nas sorveterias você mergulha a colher em taças de sorvete de tapioca (deslumbrante), buriti, bacuri, cupuaçu, açaí, graviola, manga.

Quem me indicou a Cairu como o melhor sorvete da cidade foi Fafá de Belém. Opinião considerável.O Pará é terra da Fafá, da Gaby Amarantos, da Dira Paes, da Olga Savary (que está na cidade em que nasceu, emocionada,há muito não vinha), Leah Soares. E de Dalcídio Jurandir, um dos grandes escritores brasileiros de todos os tempos.

A feira deste ano foi dedicada a Ruy Barata, poeta, compositor, jornalista, político progressista, ícone paraense, homem que navegou em todas as águas. Dele é a frase epígrafe desta 17.ª Pan-Amazônica: “Eu sou de um país que se chama Pará”. Milhares de crianças vagando entre centenas de estandes. Perguntando: “O senhor é escritor?”. Correndo atrás do Ziraldo, que se intitula “o velhinho maluquinho”. Vi Ziraldo, com tremenda luxação no ombro, cheio de dores, sentar-se e autografar centenas de livros. Mais do que profissional, ele ama o que fez e adora ver ameninada em torno.

Certa noite,fomos jantar nas Docas, olhando  o rio de frente.Chegavam homens feitos querendo tirar uma foto com o “menino maluquinho”. Chegavam também jovens querendo uma foto com TonyBellotto, que tinha acabado de fazer uma bela fala sobre seu romance Machu Picchu.Depois,elas viravam para mim:“ E o senhor é alguma coisa?”.Respondi com a maior seriedade: “Não, sou apenas pai do Bellotto”. E elas: “Não precisamos tirar fotos do senhor, não?”. Felizes com minha negativa, partiam, ruidosas, enquanto voltávamos ao filé de filhote, peixe delicioso, com risoto de pupunha e jambu, e ao pato com tucupi. Belém é sabor e é necessário comer, de preferência à noite, no Mangal das Garças, parque nascido à beira- rio,cheio de pássaros, tartarugas, borboletário. Iguanas verdes, figuras pré-históricas, vagueiam pelos gramados.

Tomei um avião e cheguei a Marabá 50 minutos depois. O nome da cidade vem de um poema de Gonçalves Dias. Região ligada à siderurgia e celebrizada pela Serra Pelada. Estudantes e professores se juntaram no Cine Marrocos para conversar com escritores. É a Pan-Amazônica expandida. A feira não acontece apenas em Belém, vai ao interior, agrega, abre-se às populações. A ideia avança pelo Brasil. A fotógrafa Elza Limame contou que esta “feira fora de feira” nasceu após a leitura de uma crônica, aqui, minha no jornal, falando de Fortaleza, da bienal fora da bienal, quando autores vão aos bairros e às cidades do interior. Andressa Malcher, coordenadora,apanhou a ideia no ar e desenvolveu.

Sentei-me no palco ao lado de Ademir Brás, jornalista, advogado e poeta de primeira linha. Ele descreve sua terra, a gente, as paisagens, o Rio Tocantins,manso e largo, silencioso. Pequenas casas coloridas inclinam se para as águas. A poesia de Ademir oscila entre a ternura e a indignação, com ritmo e afeto. Por ele e pelos jovens, soube do Pará.E contei das coisas de cá. Porque tanta gente de talento como Ademir não chega ao Sul? Onde fica o muro que nos separa?

Força que nunca seca

O Estado de S.Paulo - 03/05/2013

Gênio da música nordestina luta pela vida em meio a drama familiar

Julio Maria

Os dedos de Seu Domingos se movem lentamente. Há meses estavam duros, em nada parecidos com aqueles que a diva do jazz Sara Vaughan beijou depois de vê-los incendiar as teclas de uma sanfona no Free Jazz Festival de 1987. Nem de longe os mesmos que Luiz Gonzaga nomeou herdeiros legítimos de seu reinado. 

Ao sentir a mão da mulher Guadalupe tocar a sua, Dominguinhos a aperta forte. Sua reação mais comovente depois de oito enfartes, 23 minutos sem oxigenação no cérebro, uma traqueostomia, dois meses na UTI e desavenças familiares sobre seu próprio leito até parece milagre. A luta de Dominguinhos não é só pela própria vida. Seu estado “minimamente consciente”, conforme diz o último boletim médico divulgado em 18 de março, lhe permite perceber o que o rodeia de bom e de ruim. 

Quando o flautista Proveta surgiu tocando no quarto, acompanhado pelo sanfoneiro Mestrinho, o homem só faltou dançar. Já nas duas das vezes em que o filho Mauro Moraes apareceu para visitá-lo, discussões tensas entre Mauro e um acompanhante de quarto que permanece ao lado do leito a pedido de Guadalupe entristeceu o músico profundamente. Se pudesse fazer um pedido, Domingos certamente suplicaria mais por paz do que pela própria vida. 

A luta do maior músico da cultura nordestina, um dos mais geniais instrumentistas do País, se dá em um quarto do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Assim que foi diagnosticado com um câncer de pulmão, fez tratamentos de rádio e quimioterapia sem jamais falar sobre a doença com a imprensa. Sua incapacidade de dizer não, mesmo debilitado, o levou, em dezembro de 2012, até Exu, no interior de Pernambuco, para tocar nos 100 anos de nascimento de Luiz Gonzaga. 

Uma decisão difícil, tomada depois de uma noite de lágrimas como respostas às súplicas de Guadalupe. “Eu dizia para ele não ir e ele só chorava. Ele nunca diz não.” Como não entra em avião nem sob tortura, Dominguinhos saiu de carro de Recife para Exu. A cada dois quilômetros, ligava para dizer a Guadalupe como estava. Em uma ligação, reclamou de febre. “Então volta, homem. Volta pelo amor de Deus”, ela implorou. Domingos foi até o fim e tocou já sentindo o pulmão fechar. Quatro dias depois, passou mal, foi internado e começou a lutar pela vida.


Visita

Três rapazes chegaram quarta-feira do Recife só para ver Dominguinhos. Era um sonho conhecer o mestre. Guadalupe aceitou levá-los até o quarto. Enquanto Domingos dormia, ela contava sobre o dia em que o “trouxe de volta”. Guadalupe implorava para que o marido saísse de seu estado de inconsciência. “Domingos, acorde. Sei que você está me ouvindo. Venha comigo homem, você consegue. Pegue nas mãos desse homem de branco a seu lado e venha...” 

De repente, nas lembranças de Guadalupe, o sanfoneiro levou o tronco para frente e ergueu os braços. Quando tentou falar, percebeu que não podia e, então, sua expressão foi de pânico. Guadalupe contava esta história quando percebeu que os rapazes não olhavam surpresos mais para ela, mas para Dominguinhos. Seu Domingos, notou a mulher, estava acordado e chorando. “Ele ouviu o que eu disse e se emocionou.” Ela não chamou os médicos, só confortou o paciente. “Não desista, não deixe o que aconteceu hoje abalar você.” 

Antes dos três fãs chegarem do Recife para beijarem suas mãos, uma cena triste vivida sobre seu leito pela segunda vez deixou Dominguinhos visivelmente triste. Quem passou pelo hospital foi Mauro Moraes, filho do sanfoneiro e de Janete, sua primeira mulher. Mauro, 53 anos, não tem boas relações nem com Guadalupe, a segunda esposa de Domingos, nem com Liv, a filha do casal. 

Segundo testemunhas, Mauro chegou para visitar o pai quando se desentendeu com Márcio, o acompanhante que Guadalupe contratou para ficar o tempo todo ao lado de Dominguinhos. Mauro pediu para ficar a sós com o pai, mas Márcio se negou a deixar o quarto. Mauro então teria começado uma discussão acalorada com Márcio, pedindo privacidade e dizendo que ninguém teria o direito de fazer aquilo com ele. O clima esquentou e impropérios foram trocados. Mauro vive no Rio de Janeiro mas está em São Paulo desde que o pai chegou ao hospital. 

Contra a vontade de Liv e de Guadalupe, hospedou-se no apartamento de Dominguinhos e diz que não tem planos de sair de lá tão cedo. “Sou filho legítimo, que mal tem em eu ficar na casa dele? Estão me tratando como se eu fosse um bastardo. Eu só quero que me respeitem. Dizem que estou atrás da herança do meu pai. Eu nunca liguei para isso, nem carro eu tenho”, diz. Guadalupe não gosta de alimentar discussões, mas diz estar exausta das desavenças provocadas por Mauro. 

Em março, sites publicaram frases do rapaz dizendo que seu pai estava “em coma irreversível”, informação nunca confirmada pelo hospital. Dias depois, redes sociais multiplicavam o boato de que Dominguinhos havia morrido. “Você imagina as pessoas me ligando dizendo que meu pai morreu”, conta Liv. “Quando disse que ele estava em coma irreversível, só repeti o que um médico disse para mim.” 

O Sírio Libanês não dá notícias que vão além de um boletim divulgado em 18 de março: “Houve melhora do quadro cardiológico, respiratório e renal. Do ponto de vista neurológico, ele apresenta estado minimamente consciente, demonstrando discretos sinais de recuperação. O paciente permanece internado, sem previsão de alta.” O coração de José Domingos de Moraes, 72 anos, tem o tamanho do mundo e segue batendo no ritmo de um xote doído e comovente.

 Dias cheios e amigos ilustres

 Os dias de Seu Domingos são agitados.
NasdependênciasdoHospital
Sírio Libanês,umdos mais
requisitadosdoPaís, Dominguinhostemuma
rotinadefisioterapia
duas vezes por dia, terapia
ocupacional e fonoaudiologia.
Faz trabalhos ainda em
uma prancha, onde é colocado
em posição vertical. No quarto
há dois meses depois de outros
doismesesna UTI,ele ainda
não se comunica verbalmente
e não fica em pé, mas
reage a estímulos, segundo a
cantora Guadalupe, que se casou
com o sanfoneiro há 37
anos. “Chegamos a nos separar”,
diz ela. “Mas voltamos a
ter contato muito próximo
quandoentendiqueDominguinhos
era mesmo do povo.”

Guadalupe contaqueas visitas
são frequentes. Entre os artistas
que o visitaram, estão
Tatto, do Falamansa, Sergio
Reis, o humorista Tom Cavalcante,
Elba Ramalho, Raul Gil,
ArismardoEspírito Santo, Proveta
e o sanfoneiro Mestrinho.
Uma visita de Alceu Valença
está agendada para hoje.

Alguns músicos levam seus
instrumentos, como Proveta e
Mestrinho. E quando não há visitas,
Guadalupe colocaCDsdo
próprio Dominguinhos. “Às vezes
ele bate o pé acompanhando
o ritmo”, diz ela. “Há quatro
meseseunãoacreditavaquehaveria
evolução alguma. Hoje eu
acredito.Elerecuperouosmovimentos,
osrinsfuncionam,está
se dedicando às fisioterapias”,
diz Guadalupe. Às vezes fazum
bicomepedindobeijo,eeudigo
a ele que isso é assédio”, sorri.



As visitas se emocionam.
“Ohmeumestre, tudo o que eu
sei foi o senhor quem me ensinou”,
disse Mestrinho. Proveta,
depois de tocar para o amigo,
abraçouGuadalupeenãosegurou
mais as lágrimas.


Assim que o pesadelo passar,
Guadalupequerlançarumsongbook
do músicocomo luxo que
ele merece. “Um material de
CDs, livro, partituras e algumas
músicas que eu vi nascer.” / J.M.

Por que o Brasil não cresce?

 Valor Econômico - 02/05/2013

Na data de seu 13º aniversário, o Valor publica hoje o caderno especial "Rumos da Economia", cujo conteúdo está totalmente voltado à resposta a uma pergunta que intriga os brasileiros: "Por que o país, a despeito dos estímulos aplicados nos últimos dois anos, não cresce?"

Para responder a essa pergunta, o jornal pediu artigos, entrevistou economistas e fez reportagens sobre alguns obstáculos que parecem impedir o crescimento do PIB. Trouxe também ao jornal dois economistas de tendências diferentes, embora nem sempre divergentes, os professores Edmar Bacha e Luiz Gonzaga Belluzzo, que durante três horas dialogaram sobre os entraves ao crescimento.

Bacha, hoje ligado ao PSDB, é um dos formuladores do Plano Cruzado e do Plano Real. Belluzzo, também da equipe que implantou o Cruzado, se identifica mais com a atual equipe econômica do governo. No debate, ambos concordaram em que, para que haja crescimento, será preciso fazer alguma coisa para salvar a indústria brasileira. "O foco é a indústria", disse Bacha, que propôs o lançamento de um "Plano Real da indústria".

A proposta de Bacha inclui três estágios, não necessariamente sequenciais. O primeiro seria fiscal, um programa pré-anunciado para um certo número de anos, durante os quais haveria corte progressivo de impostos e racionalização sobre a atividade industrial. Isso resolveria o primeiro problema da indústria, que é o custo dos tributos, gerando perda de receita compensada com o controle de gastos públicos por oito anos.

O segundo estágio seria uma espécie de URV do Real: a troca de tarifas de importação pelo câmbio. Haveria amplo de corte de tarifas, também pré-anunciado, com redução de conteúdo nacional, abdicação de controles de normas e procedimentos. E no terceiro estágio seriam firmados acordos comerciais com os diversos mercados mundiais, incluindo Alca e União Europeia.

Belluzzo concordou com a ideia de que o país precisa de uma reindustrialização. Mas, sobre a proposta de Bacha, fez uma pergunta básica: "Para onde iria o câmbio?" Bacha deixaria o "câmbio solto", para flutuar, e estima que a taxa poderia ir a R$ 2,40, com uma desvalorização de uns 20%. "Tudo depende de quem vai fazer [o programa de reindustrialização]. Se for alguém crível, vai entrar capital", disse.

Em artigo (página F3), o economista Yoshiaki Nakano diz que na onda liberalizante global, a partir dos anos 80, o pensamento econômico hegemônico no Brasil tinha como componente básico que o objetivo maior da política econômica era alcançar a estabilidade macroeconômica e conquistar a credibilidade do mercado. "Políticas voltadas para desenvolvimento foram consideradas desnecessárias e o planejamento de longo prazo virou sinônimo de atraso." O diagnóstico, segundo Nakano, era de que para crescer bastava abrir a economia e atrair capital. "O resultado desse regime foram baixo crescimento, ciclos sucessivos de recuperação e crise, forte elevação da carga tributária, crise de balanço de pagamentos, apreciação de taxa de câmbio e desindustrialização."

Para o economista Marcos Lisboa, o maior crescimento econômico no governo Lula deveu-se, na sua maior parte, ao aumento da produtividade, tendência que tem sido revertida nos últimos anos. "Produtividade significa aumentar a capacidade de produção com os mesmos recursos produtivos, e não pode ser confundida com reduções forçadas dos preços de alguns bens e serviços". Essas reduções, segundo o economista, apenas implicam transferências de recursos entre setores, sem aumento da produtividade total da economia. "Soluções oportunistas podem postergar o enfrentamento das dificuldades, porém adicionam novos e crescentes problemas e, progressivamente, nos condenam de volta à mediocridade", escreve Lisboa.

O ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros sustenta que crescimento é limitado pela oferta de bens e serviços e pelo aumento da inflação. Essa limitação seria produto de um diagnóstico equivocado feito pela presidente Dilma que "deu continuidade à política econômica estabelecida pelo ex-presidente Lula, quando a economia do país já havia mudado."


Proposta é fazer "Plano Real" para a indústria

  questão industrial tem lugar de destaque na agenda de Edmar Bacha. No início do ano, o economista lançou o livro "O Futuro da Indústria no Brasil", organizado com a também diretora da Casa das Garças Monica Baumgarten de Bolle, que espelha debates realizados na instituição. As reflexões começam a se transformar agora em propostas, que também foram discutidas no evento do Valor.

Valor: O senhor fala de uma reconversão da indústria, de buscar as áreas que seriam competitivas na produção global integrada...


Bacha : Eu acho que precisa ter um programa integrado. Pelo que o Belluzzo está dizendo, nós concordamos com os problemas e que é preciso fazer uma coisa diferente, que o foco é a indústria. Como fazer? Haverá bastante diferença e tomara que haja. O Plano Real que saiu teve uma enorme discussão até a gente chegar na sequência correta. Eu veria a discussão como pensar no Plano Real da indústria... Como seria? Teria as três primeiras etapas do Plano Real. A primeira etapa seria fiscal, um programa pré-anunciado e para um número de anos. Seria racionalizar a carga tributária, cortar impostos. Para poder fazer isso, eu preciso controlar os gastos. Não vamos reduzir os gastos de um dia para o outro, mas temos que pensar numa economia crescendo a 4% ao ano e fazer com que o gasto não cresça mais do que 2% ao ano. Minha proposta inicial era fazer o que Israel propôs e está seguindo, com objetivo lá de produzir superávit estrutural. Mas aqui o propósito seria permitir a redução tributária, ou seja, você tem que garantir que o gasto cresça a 2%, enquanto o PIB está crescendo a 4%. No fim de oito anos, dois mandatos presidenciais, você conseguiu uma economia substancial para poder reduzir a carga tributária. Precisamos ver como isso seria. Uma economia política mais eficiente exigiria uma reforma na Previdência. Precisa ver como encaixar as peças, mas eu diria a primeira parte é abrir espaço para poder reduzir os impostos controlando os gastos ao longo de um período de oito anos. Resolvemos o primeiro e principal problema da indústria que é tributário.

Valor: E a segunda fase?
Bacha : A segunda fase seria a URV, é a troca da tarifa pelo câmbio, essa é parte que o Belluzzo não vai gostar. Eu não iria na marra no câmbio.

Belluzzo : Nem dá para ir na marra.

Bacha : Como é que seria a troca? Eu anunciaria um programa amplo de redução das tarifas de conteúdos nacionais.

Valor: Como fez o Collor?

Bacha : Não, o Collor fez abruptamente. É um programa pré anunciado de redução de tarifa, redução de conteúdo nacional, abdicação de todos os controles de normas e procedimentos. Vergalhão nacional vai ter a mesma dimensão do vergalhão internacional, um dos capítulos do livro é justamente sobre os vergalhões, porque vergalhões aqui no Brasil custam o dobro do que deveriam custar, em parte porque o padrão é diferente do internacional. Então é um programa para limpar toda essa área ao longo do tempo. Mas é um anúncio crível, quem anuncia está convencido e tem capacidade no Congresso para "delivery", certo? Como o mercado vai reagir? Vai abrir uma inundação de importações. O que é que o mercado vai fazer? Onde é que ele vai pôr o câmbio? Se você deixar ele flutuar, que é outro ponto de diferença que eu tenho com
Belluzzo, deixar o câmbio solto, aí vai para R$ 2,40. Depende de quem for fazer, se for alguém muito crível vai entrar capital. Vamos ver como a gente lida com o capital em um primeiro momento, obviamente vai ter que mudar a natureza do processo de inversão aqui, vai ter que mudar a cabeça. Tem que ter obviamente um poder político, a opinião pública tem que estar facilitada, enfim todas as coisas do Plano Real que já tinha expectativa. O terceiro ponto, não precisa ser sequencial, também acho que é importante, já que nós vamos entrar em briga de cachorro grande - e não ser o país mais fechado do mundo, depois da Coreia do Norte - é acordo comercial, para valer, com a União Europeia, que está aí há não sei quantos anos. Retomar a Alca, ver se a gente negocia lá no Transpacífico, para assegurar que nós vamos abrir a economia. Mas tem que ter a compensação aqui do outro lado. Eu não me preocuparia tanto, Belluzzo está aqui muito preocupado, que indústrias, quais setores, deixa mercado resolver. Podemos até discutir complementarmente aqui que setores, vendo as vocações, os nichos de mercado. Mas eu acho que isso é complementar a essa estratégia de três pontos.

Valor: Em que câmbio teria que se chegar para isso ser viável?
Bacha : Em 1971 meu primeiro artigo publicado se chamava "Shadow price da taxa de câmbio". É o seguinte, você pega a redução tarifária, divide por dois, e esse é o câmbio. Aqui eu imagino que esse conjunto que poderíamos fazer, quanto que implica de desproteção ao reduzir a tarifa, reduzir o conteúdo nacional, eu calculo por volta de 40%, mas talvez seja mais.

Belluzzo : Você está falando da desvalorização?

Bacha : A desvalorização seria 20%, seria a metade disso R$ 2,40, mas isso por enquanto...

Valor: Essas três etapas seriam simultâneas?

Bacha : É um programa para oito anos, cada uma dessas coisas ao longo do tempo.

Belluzo : Ao mesmo tempo, ao longo do tempo...

Bacha : Teria três estágios.

Valor: Precisaria mudar a gestão do modelo macroeconômico?
Bacha : Isso não é política de curto prazo, isso é política estrutural, nós estamos pensando aqui para o lado da oferta, a questão macroeconômica é equilíbrio de curto prazo das variáveis cíclicas.


País apresenta indícios de deterioração institucional

 Por Marcos de Barros Lisboa

 

O desempenho dos países após a crise de 2008 tem sido desigual na América Latina. Brasil, Argentina e Venezuela têm decepcionado quando comparados a Chile, Peru, Colômbia e México, apresentando menor crescimento econômico e maior inflação. No nosso caso, o governo tem reagido com impressionante ativismo às dificuldades recentes. Medidas de estímulo e concessão de privilégios à roldão refletem a preocupação com a superação das restrições existentes e a retomada do crescimento. Por que, entretanto, as medidas têm sido pouco efetivas e o crescimento tão decepcionante?

Este artigo discute a evolução da nossa economia na última década e os impactos das recentes medidas de política econômica. Na sequência, são esboçadas sugestões para uma agenda de produtividade e o aperfeiçoamento da gestão da política pública.

O maior crescimento econômico no governo Lula em relação ao governo FHC deveu-se, na sua maior parte, ao aumento da produtividade; aumento este que, infelizmente, tem sido revertido nos últimos anos. Diversos trabalhos acadêmicos têm mostrado que as reformas institucionais realizadas entre 1994 e 2005 tiveram impacto relevante no aumento da produtividade em alguns setores, como telecomunicações, a intermediação financeira e setores beneficiados por estímulos à formalização e reformas como a lei de falências. Além disso, a melhora nas técnicas de produção permitiram ganhos de produtividade em atividades como o agronegócio.

O impacto de reformas institucionais sobre a produtividade pode surpreender, porém a literatura recente sobre crescimento econômico tem repetidamente verificado a sua relevância para explicar a diferença de renda entre os países. Indicadores do funcionamento das instituições, como a agilidade do judiciário, a eficiência na gestão dos setores regulados, incluindo setores de infraestrutura e mercado de trabalho, o desenvolvimento dos mercados de crédito, capital e o ambiente de negócios estão positivamente correlacionados com as mais bem-sucedidas experiências de desenvolvimento econômico.

A privatização das telecomunicações levou à expansão do acesso à telefonia e à queda dos custos para os consumidores. A introdução do consignado reduziu o risco de inadimplência, levando a menores taxas de juros e à expansão dos volumes emprestados. A tecnologia de transformar depósitos em empréstimos se tornou mais eficiente, permitindo o aumento do consumo e o crescimento de diversos setores, assim como maior empreendedorismo. A nova lei de falências levou à redução do número de empresas que entram em dificuldades para o mesmo nível de atividade econômica, provavelmente em decorrência dos procedimentos que foram introduzidos e que levam a um comportamento empresarial mais prudente e preventivo. Além disso, há evidência de que nas regiões em que a lei tem sido aplicada judicialmente com maior eficiência aumentaram o crédito disponível, o investimento e a melhora na tecnologia adotada.

Há frustração com as diversas políticas adotadas recentemente que não aumentam a produtividade
Existem indícios, porém, de que nossa economia simultaneamente apresentou piora institucional em diversas áreas. Os processos para liberação e monitoramento de investimentos em grandes obras físicas têm sido crescentemente mais complexos, como no caso de produção de energia e logística. A falta de clareza dos processos de autorização e do mandato das agências reguladoras, a sobreposição de órgãos de controle e a incerteza sobre o processo de construção, decorrente de possíveis reivindicações adicionais uma vez iniciadas as obras, significam maiores custos de produção e menor expansão da oferta. As dificuldades e custos crescentes dos investimentos têm impacto sobre toda a estrutura produtiva, sobretudo as mais dependentes de atividades físicas, como a indústria de transformação, levando a menor crescimento da produtividade.

Além disso, a melhora dos termos de troca e a valorização cambial também tiveram efeitos divergentes sobre a estrutura produtiva, fragilizando parte da indústria, mas não os serviços. Para além dos efeitos setoriais, no entanto, resta a evidência dos ganhos de produtividade total no governo Lula e a sua piora recente, com o consequente menor crescimento econômico.

Produtividade significa aumentar a capacidade de produção com os mesmos recursos produtivos, e não pode ser confundida com reduções forçadas dos preços de alguns bens e serviços que apenas implicam transferências de recursos entre setores, sem aumento da produtividade total da economia. O mesmo ocorre com medidas de proteção à competição externa a alguns setores, que levam ao aumento dos custos dos seus compradores, outros setores ou consumidores. Proteção de uns à custa dos demais.

Por essa razão, a frustração com as diversas políticas públicas adotadas recentemente que não aumentam a produtividade e apenas transferem renda entre os setores. Além disso, medidas como a desoneração da folha em contrapartida ao aumento de impostos sobre o faturamento pioram a eficiência econômica e tornam mais complexo o sistema tributário.

Uma agenda para ganhos de produtividade passa pela maior eficiência dos processos para aprovação, controle e regulação dos investimentos. Melhor definição do mandato das agências reguladoras e das contrapartidas necessárias, assim como das atribuições dos órgãos de controle. Maior eficiência significaria menores custos e incerteza, inclusive jurídica, para esses investimentos, permitindo menores custos de produção e expansão da oferta. No caso da infraestrutura, esse ganho de produtividade implicaria menores custos e maior eficiência para o restante das atividades produtivas, estimulando o seu crescimento.
Uma segunda agenda é a melhora da eficiência e gestão da política pública. Nossa carga tributária é maior do que a observada em países com grau equivalente de desenvolvimento, sem que, no entanto, tenhamos indicadores equivalentes da boa política pública, como acesso à educação ou a serviços de saúde de qualidade. A carga elevada decorre da existência de diversos programas de transferência de renda não relacionados às políticas sociais de investimento, como educação, ou à proteção aos grupos de menor renda, como o bolsa-família.

Agenda passa pela maior eficiência dos processos de aprovação, controle e regulação dos investimentos
Existem diversos programas de concessões setoriais de privilégios, como empréstimos subsidiados, desonerações seletivas ou transferências discricionárias de recursos. Há, porém, pouca avaliação, gestão e controle democrático. Dos diversos empréstimos subsidiados do BNDES, por exemplo, quais eram as metas ao serem concedidos e quais são os resultados obtidos? Quanto custam para a sociedade as diversas proteções tarifárias e não tarifárias e quais os seus resultados? Qual o custo e resultado das políticas de produção local de bens antes produzidos no exterior? Sem indicadores de resultado não há gestão, não há a identificação dos projetos bem-sucedidos que poderiam ser fortalecidos, nem a interrupção dos mal-sucedidos.

Interromper programas que conferem privilégios geram reações por parte dos beneficiados. Seu custo, por outro lado, é diluído para toda a sociedade, que não é significativamente afetada por cada programa específico, ainda que pague um elevado preço pelo conjunto da obra. Democracia requer transparência e debate estruturado sobre a política pública e as opções para o uso dos recursos da sociedade.
Pode-se, por exemplo, constituir uma agência independente que teria como missão registrar os objetivos e custos de cada política pública. Anualmente, seriam divulgados os custos e resultados frente às metas assumidas o que permitiria à sociedade, por meio dos instrumentos democráticos, escolher os programas a serem incentivados e os que deveriam ser interrompidos. A boa gestão subordinada à escolha que deveria ser de todos nós e não feita pelo acesso de alguns poucos ao príncipe de plantão.

Não precisamos seguir a variação de Marx e repetir a história, desta vez como farsa. Na sequência da grave crise dos anos 1960, com descontrole fiscal, elevada taxa de inflação e baixo crescimento, foram adotadas medidas de austeridade e reformas institucionais liberalizantes. Algumas dessas reformas foram rapidamente revertidas, como a independência do Banco Central. Entretanto, a evidência disponível indica que as reformas que foram preservadas contribuíram fortemente para o posterior crescimento que se iniciou no do fim dos anos 1960.

A reação à grave crise externa dos anos 1970 foi na direção inversa. Ao invés do ajuste, o governo optou por uma série de estímulos ao investimento com a concessão de privilégios e benefícios para setores escolhidos, empréstimos subsidiados, recursos públicos e proteção para o desenvolvimento de setores econômicos e grupos privados.

O desequilíbrio fiscal, o aumento da inflação e a restrição externa levaram a diversas medidas discricionárias nos dois últimos governos militares com o objetivo de estimular o crescimento por meio de soluções heterodoxas de política econômica, evitando enfrentar com serenidade as dificuldades e adotar as medidas necessárias de austeridade e de aperfeiçoamento dos fundamentos econômicos. A política econômica à época foi caracterizada por intervenções generalizadas nos diversos mercados, a tentativa de impor o ajuste por meio do controle de preços, a começar pela taxa de câmbio, e medidas de estímulo ao investimento privado com a concessão de benefícios e privilégios. O resultado foi o inverso do esperado. Descontrole das contas públicas, aceleração da inflação e a expansão de distorções microeconômicas que reduziram a produtividade e o crescimento sustentável. A consequência foi uma década perdida.

Quanto custam para a sociedade as diversas proteções tarifárias e não tarifárias e quais os seus resultados?
Apenas com Fernando Henrique Cardoso as dificuldades foram parcialmente superadas. Equilíbrio das contas públicas, estabilização dos preços, reformas liberais e soluções institucionais, desta vez, finalmente, em um regime democrático. Além disso, progressivamente as distorções introduzidas no passado começaram a ser superadas.

A agenda de melhorias institucionais foi interrompida em meados da década passada, restando ainda muitas distorções microeconômicas introduzidas nas décadas anteriores à estabilização. Existem no Brasil uma infinidade de privilégios, distorções e mecanismos de transferências de renda para grupos específicos. Vários dos privilégios e benefícios, inclusive, nem mesmo passam pelo orçamento público. Um primeiro exemplo são as proteções não tarifárias à concorrência externa baseadas em restrições técnicas. Um segundo, as operações de crédito direcionadas para setores específicos, com taxas de juros abaixo das taxas de mercado. No primeiro caso, o custo das proteções é pago pelos compradores dos produtos protegidos, famílias ou outros setores produtivos; no segundo, pelos tomadores de crédito das operações livres.

O custo dos privilégios, benefícios e proteções é diluído por toda a sociedade, sem transparência e discussão integrada sobre seu impacto sobre a distribuição de renda, a evolução da produtividade e o crescimento econômico. Essa é a consequência das medidas oportunistas, que são propostas como soluções fáceis para problemas complexos. Porém, uma vez introduzidas, as distorções criam grupos de interesse, e se revelam difíceis de serem revertidas. Benefícios privados à custa da eficiência econômica, de maiores recursos para a política social e do crescimento para a maioria.

A opção por soluções institucionais e políticas horizontais, que não escolham privilegiados, adotada pelo governo FHC e pelo primeiro Lula, tem sido sistematicamente revertida desde meados da década passada, sobretudo após 2008. A política oportunista prefere defender que medidas de austeridade não são necessárias, acreditar que a concessão de privilégios aos próximos do governo estimula o espírito empreendedor bem como o crescimento econômico e escolher vilões para responsabilizar pelas eventuais frustrações. As soluções oportunistas podem postergar o enfrentamento das dificuldades existentes, porém adicionam novos e crescentes problemas e, progressivamente, nos condenam de volta à mediocridade.

Referências
Acemoglu, D. e J. Robinson (2012): Why Nations Fail; Crown.
Lisboa, M. B. e S. A. Pessoa (2013): "Uma História de Dois Países."; Insper.
Lisboa, M. B. e Z. A. Latif (2013): "Democracy and Growth in Brazil"; Insper.
Veloso, F.; A. Villela e F. Giambiabi (2008): "Determinantes do "milagre" econômico brasileiro (1968-1973): uma análise empírica," Revista Brasileira de Economia; 62(2).
Marcos de Barros Lisboa é vice-presidente do Insper, Instituto de Ensino e Pesquisa


Quadro de muitos paradoxos e incertezas 

 Por Yoshiaki Nakano

 

De 2004 a 2010, a economia brasileira cresceu em média cerca de 4% ao ano e nos deu a ilusão de que estávamos vivendo uma transição para crescimento acelerado e sustentado por longo prazo. A eleição de Lula em 2003, com promessas de geração de emprego e mais crescimento, representava claramente uma opção da sociedade brasileira por mudança e a rejeição do modelo econômico até então implantado desde o início dos anos 90, e cuja forma final vemos após o Plano Real.

Mas em 2011 e 2012, crescemos, em média, apenas 1,8 % ao ano, e em 2013 vivemos um quadro quase enigmático, pois não se trata de um problema de curto prazo, de retomada cíclica. Vivemos o que eu chamo de regime de baixo crescimento, um quadro estrutural com diversos paradoxos, enorme incerteza e um pessimismo profundo, particularmente no meio empresarial.

Aqui cabe fazer um rápido retrospecto histórico para entendermos os empecilhos de natureza estrutural ao crescimento. Não é com a simples mudança na orientação das políticas ou na retórica do governante que se muda a dinâmica da economia. São necessárias mudanças mais profundas, desde o pensamento econômico dos formadores de opinião e o correspondente quadro de referência conceitual para interpretar os fatos econômicos e os atos de governo, passando pelos interesses econômicos e políticos hegemônicos, instituições e o regime de políticas macroeconômicas de curto e longo prazos.

Lembremos que do início dos anos 1990 até a eleição de Lula predominou um paradigma que englobava os aspectos mencionados acima, e que poderíamos denominar de "paradigma da integração financeira global".
Na onda liberalizante global a partir dos anos 80, o pensamento econômico hegemônico no Brasil e o modelo implantado, depois do Plano Real, tinha como componente básico o seguinte: o objetivo maior da política econômica era alcançar a estabilidade macroeconômica e conquistar credibilidade do mercado. Políticas voltadas para desenvolvimento econômico foram consideradas desnecessárias e o planejamento econômico de longo prazo foi transformado em sinônimo de atraso.

O diagnóstico era de que para crescer, como o fator escasso no Brasil é o capital, bastava abrir a economia e atraí-lo do exterior, visto que o mercado eficiente alocaria de forma ótima esses recursos. O crescimento acelerado seria, portanto, um resultado natural. Assim, toda prioridade deveria ser dada à liberalização da conta capital e a integração financeira global. A construção de uma estrutura produtiva nacional integrada competitivamente aos fluxos de comércio global não estava na agenda do governo, muito menos como objeto de políticas.

Para atrair capital bastaria uma política macroeconômica de curto prazo, garantindo uma taxa de juros doméstica acima do patamar internacional, deixar a taxa de câmbio flutuar livremente e dar garantias ao investidor externo com metas de superávit primário. O Banco Central deve ter uma única meta de inflação, pois utiliza apenas o instrumento juros. Para completar, nada de política industrial, setorial ou para estimular o desenvolvimento econômico.

O resultado desse regime todos nós conhecemos: baixo crescimento, ciclos sucessivos de recuperação e crise, forte elevação da carga tributária, crise de balanço de pagamentos, tendência de apreciação da taxa de câmbio e desindustrialização, é o "regime de baixo crescimento".

No entanto, o interessante é que apesar da ideologia liberal e pró-mercado, o Estado brasileiro continuou grande, super intervencionista, com serviços públicos extremamente ineficientes e um dos, senão o maior, entraves ao crescimento econômico. A rigor nada se fez para reduzir o tamanho do Estado nem o seu intervencionismo burocrático. Ao contrário, a partir do início dos anos 1990 até o fim do governo Lula, a carga tributária aumentou dez pontos percentuais do PIB, tornando o Brasil um "completo outlier" pelos padrões internacionais. Nada mais verdadeiro do que a expressão: "O Estado brasileiro não cabe no nosso PIB".

De fato, salários exorbitantes dos funcionários públicos, com a folha de salário por trabalhador dos governo três vezes maior do que do setor privado, gestão burocrática e ineficiente, ao invés de gestão por resultado, geram uma despesa corrente maior do que a receita corrente. O déficit público pressiona a taxa de juros, não deixa espaço para investimentos públicos, e vem contraindo os investimentos privados.

Entre 2004 a 2010, tivemos um interregno de crescimento causado por choques exógenos. A forte depreciação da taxa de câmbio decorrente da crise do balanço de pagamentos de janeiro de 1999 gerou, a partir de 2002/2003, um mini-boom de exportação de manufaturados utilizando especialmente a capacidade ociosa existente, que desencadeou o início da recuperação da economia brasileira. Esse mini-boom durou até 2005/2006 e gerou um impulso no crescimento da indústria de transformação que sobreviveu até 2010.
A rigor nada se fez para reduzir o tamanho do Estado nem o seu intervencionismo burocrático
O segundo choque que acelerou o crescimento foi demográfico, com a redução, em termos absolutos, do estoque de jovens trabalhadores procurando o primeiro emprego a partir de 2004. Com isso, houve um esgotamento da "oferta ilimitada de trabalho" que inverteu e mudou a dinâmica do mercado de trabalho, com pressão salarial na base da pirâmide e forte impacto redistributivo. Daí o surgimento da classe C, que representa hoje quase 100 milhões de brasileiros incorporados ao mercado de consumo.

Finalmente, tivemos o choque de preço de commodities, a partir do final de 2003, com forte crescimento da demanda da China, o que promoveu o crescimento de setores produtores de commodities e removeu as restrições ao crescimento.

Neste período, a taxa de inflação, apesar de alta, esteve sob controle em função da forte apreciação da taxa de câmbio (em mais de 100%) e a existência de amplo desemprego de mais de 10% no início do período.
Como já ressaltei, não tivemos mudanças profundas na direção de um Estado mais eficiente e capaz de atender às aspirações básicas da sociedade. Mais do que isso, há uma distância entre a retórica e a realidade dos fatos que gerou uma dissonância cognitiva. Enquanto a população, particularmente no seu segmento empresarial, rejeitava o "paradigma de integração financeira" que era contra a intervenção do Estado, mas de fato pouco fez nesta direção. Os novos governos do PT ganham justamente com a retórica pró-geração de emprego e crescimento, mas com intervencionismo estatal arraigado em sua alma.

Em outras palavras, a população em geral, ainda que de forma contraditória e confusa, rejeita o atual Estado brasileiro burocrático e intervencionista. A retórica anti-Estado era parte do paradigma rejeitado pela população, mas agora, especialmente no governo Dilma Rousseff, o novo papel reservado ao Estado se manifesta de forma mais clara. Assim, as manifestações pró setor privado, como as desonerações tributárias, acabam gerando mais ruído e incertezas no meio empresarial, levando-os a contrair os investimentos.

Com a eleição da presidente Dilma Rousseff, o governo assumiu explicitamente o compromisso de crescimento acelerado e introduziu diversas mudanças, dando um novo direcionamento à política macroeconômica. Controlou e depreciou a taxa de câmbio, reduziu significativamente a taxa de juros, expandiu o crédito, reduziu a carga tributária na indústria e deu início à agenda da competitividade, com a redução no custo de energia, entre outras. Ações essas que vão ao encontro das reivindicações dos empresários industriais e trabalhadores, mas não ativam os investimentos.

Entretanto, 2011 e 2012 mostraram que não entramos ainda num novo regime de crescimento acelerado, mas sim, numa "armadilha de baixo crescimento com inflação alta". Os paradoxos não param por aí. Em 2012, a demanda doméstica continuou crescendo mais de 7%, mas os investimentos produtivos recuaram cerca de 5% e a indústria de transformação contraiu a sua produção em 2,5%, num "quadro enigmático". De fato, o governo vem estimulando a demanda agregada, o consumo com expansão de crédito, redução temporária de IPI e investimentos com juros baixos.

2011 e 2012 mostraram que entramos numa "armadilha de baixo crescimento com inflação alta"
No entanto, a oferta doméstica de bens da indústria de transformação sofre contração, sendo atendida pelas importações, indicando um problema mais profundo de natureza estrutural. Por outro lado, a oferta doméstica de serviços e outros não "tradables" respondem aos estímulos da demanda, levando a economia à situação próxima a pleno emprego e gerando inflação. Temos assim um quadro aparentemente paradoxal de contração na produção industrial com inflação alta. Para desfazer o enigma precisamos entender quais as causas estruturais que travam a produção industrial e os investimentos.

A rigor, as causas estruturais do atual regime de baixo crescimento e inflação alta vêm do "paradigma de integração financeira global", dominante nos governos anteriores. O foco desse paradigma é a liberalização do movimento de capitais, sua remuneração com grande diferencial positivo na taxa de juros, na crença de que o mercado financeiro alocaria produtivamente esses recursos e promoveria o crescimento acelerado.
Neste paradigma, para garantir retorno estimulante aos investidores estrangeiros, era fundamental gerar a tendência persistente de apreciação da taxa de câmbio. Assistimos a isso desde o Plano Real, com forte onda de desindustrialização até 1998, quando a participação da indústria de transformação no PIB caiu para 15,7%. A crise cambial de janeiro de 1999 e a forte desvalorização inverteram a tendência com a reindustrialização do país, que denominamos de mini-boom da indústria de transformação de 2002/2003 a 2005/2006.

Entretanto, o regime de política macroeconômica persistente de taxa de juros doméstica muito acima da internacional no governo Lula provocou nova onda de forte apreciação na taxa de câmbio, o que voltou a favorecer o setor de não-tradables em detrimento dos tradables, promovendo assim seguidas ondas de desindustrialização, com profundas mudanças na estrutura produtiva do país. A participação da indústria de transformação, que tinha saltado para 19,2% do PIB em 2004, volta a cair para 13,2%.

A indústria de transformação (tradables), setor mais dinâmico e difusor de inovações, com produtividade mais do que 30% superior à média da economia, ganhos de escala e geradora de externalidades, responsável por mais de 70% dos gastos em P&D, entrou em profunda crise. A apreciação do real promoveu a expansão do setor de não-tradables, serviços com produtividade mais baixa incapaz de gerar efeitos dinâmicos e ser a "locomotiva" do crescimento mais acelerado.

A expansão de serviços absorveu trabalhadores, provendo elevação de salários acima da produtividade, gerando inflação persistente e elevação de custos generalizados nos demais setores e outras consequências perversas.

O custo unitário do trabalho na indústria de transformação aumentou a uma taxa média de 6,6% entre 2004 e 2011. O dinamismo da demanda doméstica (emergência da classe C etc) e estímulos fiscais ao consumo foram em grande parte transferidos para o exterior, com a invasão das importações. O coeficiente de importações na indústria de transformação aumentou de 11,6%, em 2004, para 22,3%, em 2012.

Apesar do dinamismo transmitido pelo forte crescimento da demanda doméstica, a oferta da indústria de transformação e os investimentos sofrem contração. Esse regime gerou também uma nova tendência de deterioração rápida das transações correntes do país e aumento persistente do passivo externo e seus encargos, insustentáveis no longo prazo. Esse último resultado também é paradoxal, pois quedas do saldo comercial tendem a acontecer quando a economia cresce de forma acelerada e não quando a indústria contrai a produção.

Para remover os entraves ao crescimento é preciso ampliar o debate, eliminando as dissonâncias cognitivas em relação à função do Estado e do mercado. Existem muitas falhas em ambos que precisam ser eliminadas através de profundas reformas. A sociedade brasileira precisa ampliar o seu horizonte temporal e suas lideranças chegar a um acordo sobre o que queremos no futuro.

Se quisermos, por exemplo, dobrar a renda per capita em 15 anos ou 20 anos e assim atingirmos o limiar do desenvolvimento, as lideranças têm que decidir pragmaticamente o que fazer para alcançar este objetivo. Certamente envolve escolhas difíceis.

Para começar, para crescer é preciso investir mais e para isto poupar mais. É preciso elevar a taxa de investimento para pelo menos 25% do PIB, elevando o investimento público em infraestrutura em 5% a 6% do PIB. Candidato natural para ampliar a poupança é a redução do consumo público neste montante ao longo do tempo.

As causas estruturais do atual regime vêm do "paradigma de integração financeira global"
É preciso atacar de frente o "Custo Brasil" que torna os nossos produtos da indústria 34,2%, em média, mais caros que o importado de 15 principais parceiros comerciais do Brasil, segundo um estudo da Fiesp. O "Custo Brasil" e a taxa de câmbio apreciada tornam a nossa indústria de transformação não competitiva e o país inviável. Será que podemos crescer e empregar mais de 200 milhões de brasileiros na agricultura e serviços, lembrando que quando a indústria de transformação cresce são os serviços pessoais que crescem, como vem acontecendo no Brasil nos últimos anos? Para atacarmos o Custo Brasil a agenda está definida. A carga tributária e o custo do capital de giro representam um Custo Brasil de cerca de 20% acima dos importados.

Por sua vez, a taxa de câmbio apreciada torna os produtos importados cerca de 20% mais baratos que os produzidos domesticamente. Assim, a taxa de juros de empréstimos dos bancos com seus "spreads" mais do que cinco vezes maiores do que nos principais parceiros comerciais, a taxa de câmbio apreciada e carga tributária excessiva constituem o trio mortal. Com taxa de juros, taxa de câmbio mais competitiva, estável e sustentável no longo prazo e carga tributária condizente com o nosso nível de desenvolvimento, é possível reindustrializar o país. É a expansão do setor de tradables que deve ser a locomotiva e não o setor de não-tradables.

Dada a restrição do mercado de trabalho, o aumento da produtividade é essencial para o Brasil sair da "armadilha do baixo crescimento". Mas não é algo exógeno à economia, mas endógeno e em grande parte resultado do próprio crescimento, isto é, da ampliação da taxa de investimentos, particularmente com a reindustrialização do país. Como o setor industrial tem produtividade acima da média dos demais setores, a reindustrialização permite um ganho estrutural de produtividade ao realocarmos recursos produtivos neste setor. Nos últimos anos fizemos o inverso, realocando recursos escassos, trabalhadores, particularmente para o setor de serviços pessoais.

Finalmente, não podemos deixar de mencionar que para reduzir a carga tributária, colocando-a dentro dos padrões internacionais, a reforma do setor público é vital. Para iniciar, devíamos impor, por lei, um teto para o aumento da despesa corrente para aumentar os investimentos públicos e reduzir a carga tributária ao longo de um determinado período. Acabar com os ganhos e benefícios exorbitantes do funcionalismo público. Equiparar e integrar os mercados de trabalho público e privado são requisitos de qualquer República. Com a implantação de gestão por resultado, esta integração e rotatividade de funcionários do setor privado para o público e vice-versa permitirá ao setor público dar saltos de produtividade e redução nos seus custos.
Dessas definições e escolhas será possivel fazer um planejamento estratégico de longo prazo para o Brasil transitar definitivamente em um novo paradigma de crescimento acelerado.

Yoshiaki Nakano, mestre e doutor em economia pela Cornell University. Professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EESP/FGV). Ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP).



Ambiente mais conturbado abre nova frente na sucessão de 2014 

 Por Cristian Klein

 

A política nem sempre se guia pelo impacto de fatores econômicos - há a força do carisma, da máquina governamental e da estabilidade dos laços partidários que reduzem a incerteza -, mas a subida da inflação neste ano está acrescentando uma dose de suspense aos preparativos da eleição de 2014, na qual o favoritismo da presidente Dilma Rousseff não seria mais pule de dez.

Economistas consultados pelo Valor apontam um cenário no qual surgem oportunidades para os concorrentes da presidente, que, por sua vez, dispõe de poderosos instrumentos para aumentar ainda mais sua popularidade - 79%, de acordo com a mais recente pesquisa CNI/Ibope, divulgada em março.

Com a escalada da inflação e o baixo crescimento do PIB, o economista Samuel Pessoa, da Fundação Getúlio Vargas, calcula que as probabilidades de sucesso dos adversários do PT subiram de virtualmente zero para um patamar em torno dos 20%. Em sua opinião, o "cenário básico" é de reeleição de Dilma Rousseff e os principais concorrentes - o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB) - estão muito mais orientados em acumular forças e recall para 2018, quando a disputa será mais aberta, do que aprontar uma surpresa já em 2014.

Mesmo assim, os últimos desdobramentos da economia teriam gerado uma brecha para a criação de bandeiras alternativas ao PT - algo que não ocorria durante os anos Lula.

Num ambiente econômico mais conturbado, haveria espaço para essencialmente dois discursos da oposição.

O primeiro é a crítica ao Estado desenvolvimentista, indutor da economia, e que desde 2009 retomou o modelo vigente no país entre as décadas de 1930 e 1970. A inflexão desenvolvimentista, afirma Pessoa, começa depois dos liberalizantes anos 90 e do fim do que chama de período "Malocci" - quando a Fazenda foi ocupada pelos ministros Pedro Malan, no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), e o petista Antonio Palocci (2003-2006).

Desde a entrada de Guido Mantega no ministério, em 2006, mas especialmente depois de ter de enfrentar os efeitos da crise internacional, em 2009, o governo do PT voltou ao ideário desenvolvimentista. Foi reinaugurado por Lula e reafirmado por Dilma. Para o economista, uma das estratégias para a oposição é desconstruir esse modelo, sem confundi-lo com o Estado de bem-estar social.

"Este modelo está fazendo água e custa caro aos cofres. É preciso diferenciá-lo de conquistas sociais. Estado de bem-estar social é SUS [Sistema Único de Saúde], é escola boa, é aposentadoria básica. Isso é diferente de BNDES, por onde tudo passa, e de desonerações para este ou aquele segmento. Se este ensaio desenvolvimentista continuar a não gerar crescimento, o discurso é: "Vamos manter o Estado de bem-estar social, mas vamos parar de brincar de grande potência. Não somos China, Japão, Coreia do Sul ou Taiwan"", afirma Pessoa, lembrando que esses países têm uma taxa de poupança em torno de 35% enquanto a brasileira é cerca de metade, 17%.

O segundo discurso alternativo é o da maior eficiência nos serviços públicos, que já vem sendo utilizado por Aécio Neves e Eduardo Campos. Ele remete à reforma do Estado, tema que teria sido abandonado desde a gestão de Luiz Carlos Bresser-Pereira à frente de ministério com o mesmo nome, durante o primeiro mandato de FHC (1995-1998). "Não precisa ser privatizante. É um discurso com o qual o PT tem dificuldade de lidar porque mexe com interesses de corporações - como a dos funcionários públicos - das quais é quase refém, por estarem eles em sua base de sustentação", afirma Samuel Pessoa, que foi assessor do ex-senador tucano do Ceará Tasso Jereissati, hoje presidente do Instituto Teotônio Vilela (ITV), a fundação do PSDB.

Pessoa concorda que qualquer discurso que proponha mudanças na extensão dos poderes do Estado pode ser acusado de atentar contra determinadas conquistas sociais aprovadas pela população e associadas ao PT. Mas que a pior saída é uma campanha recalcitrante, ou que traz o "não discurso", como ocorreu, em sua opinião, em 2010. "Deixaram tudo com o marqueteiro, que fez pesquisa qualitativa e propôs o que o eleitor queria ouvir. Mas, como isso é exatamente o que a situação vai fazer, não traz resultado", diz.
Samuel Pessoa destaca que o favoritismo para 2014 e o poder de agenda ainda estão nas mãos de Dilma Rousseff

Para o economista, o discurso de "vou fazer mais e melhor" - utilizado pelo ainda aliado do governo federal Eduardo Campos - é uma estratégia perdedora. Em primeiro lugar, porque se for para fazer mais, e manter o status quo, o eleitor "é conservador com razão" e vota na situação. Em segundo lugar, porque a escolha não deixa um legado, não se apropria de um discurso que possa vir a ser o vencedor na próxima eleição.
Samuel Pessoa delineia as possibilidades para a oposição, lembra dos riscos de deterioração da economia, mas destaca que o favoritismo e o poder de agenda ainda estão nas mãos de Dilma Rousseff. Ele afirma que a presidente atingiu o mais alto nível de popularidade para um ocupante do cargo desde a redemocratização e que a mandatária ainda tem "cartuchos" para gastar no campo da desoneração fiscal. A redução do preço dos medicamentos é a candidata mais forte da fila. "Isso tem um impacto popular grande e a PEC [proposta de emenda constitucional] está em tramitação", diz.

Por sua ligação com os tucanos, Samuel Pessoa tem sido apontado como um dos colaboradores do senador Aécio Neves, que teria contratado um economista com quem debate uma vez por semana para elaborar o discurso de 2014. Pessoa nega, mas insinua: "Até gostaria, se ele me convidar".
Próxima do presidenciável do PSB, a professora da Universidade Federal de Pernambuco Tânia Bacelar também afirma que não tem atuado na preparação da candidatura de Eduardo Campos. Mas a empresa de consultoria da qual é sócia, a Ceplan, faz trabalhos encomendados pelo governo do Estado, como o que analisou os impactos positivos e negativos da construção do Porto de Suape - uma realização do governo de Pernambuco com investimentos do governo federal.

Esse caráter ambíguo do perfil de Campos - um presidenciável que se criou na base e com o apoio do PT - é apontado por Bacelar como responsável pelo "discurso pouco claro" e, "por enquanto, muito genérico" do governador. "Fazer mais é o quê? Elevar o valor dos salários? Ou é mais educação? Ele cunhou esta frase que não tromba [com o governo], não diz que está tudo errado. Mas o que está errado na macroeconomia, na retomada dos investimentos?", questiona Tânia Bacelar.

A professora da pós-graduação de geografia da UFPE diz até que não vê como irreversível a candidatura de Campos - apesar da gradual subida de tom do presidenciável. Bacelar ressalta que a dinâmica da política não permite "o candidato de si mesmo". É necessário apoio do empresariado para o financiamento de campanha, base social e tempo suficiente de propaganda no rádio e na TV para passar a mensagem.
Diferenciar-se dos adversários é outro ponto fundamental, lembra. "O PSDB é conhecido do Brasil. Tiveram oito anos no governo. A população sabe o que foi. O Eduardo ninguém sabe. Ele também é um desenvolvimentista [como Dilma Rousseff]. Mas precisa se distinguir do PSDB", afirma.
Uma das tentativas do líder do PSB tem sido chamar a atenção para um modelo de gestão baseado em metas e resultados, na boa administração dos serviços públicos, "e não na politicagem". "O Eduardo gosta de governar, ele passa isso. Mas Pernambuco é 3% do PIB brasileiro. Não é tarefa simples, mais fácil a partir de outros Estados", diz Tânia Bacelar.

Desonerações são como "metralhadora giratória" para conter inflação e não levam em conta a solidez fiscal
A economista aponta a questão federativa como a seara onde Campos se sente mais à vontade para desferir seus primeiros ataques ao governo federal - como no caso dos royalties do petróleo e da medida provisória sobre os portos. O motivo, argumenta, é que, em primeiro lugar, há mesmo espaço de contestação, e em segundo, porque, como governador, Eduardo Campos tem legitimidade para falar desses assuntos.
Por outro lado, as principais oportunidades para a oposição ainda estariam numa piora do ambiente econômico. Tânia Bacellar relativiza a popularidade de Dilma Rousseff. "Isso é recall da era Lula. Tem muita ameaça no cenário econômico".

A professora da UFPE diz que este cenário é que abre espaço para o movimento político no qual surgem novas candidaturas de terceira via. Além de Campos, há a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva - que obteve quase 20% dos votos na eleição de 2010 e está formando um novo partido - e possibilidades de nomes próprios do PV, do PSC, do PV e do MD, resultado da recente fusão entre o PPS e o PMN.
Apesar dos problemas, Bacellar afirma que Dilma Rousseff não pode ser acusada de inércia, já que tomou várias iniciativas desde o início do mandato como a redução da taxa de juros, da tarifa de energia e a ênfase na retomada de investimento, "até ousando para um governo do PT", por meio das concessões na área de infraestrutura, num reconhecimento de que o setor público não tem capacidade de dar conta de tudo. "O problema é que a economia não dá resposta", diz.

A professora da PUC-Rio e sócia-diretora da Galanto Consultoria Monica de Bolle critica várias dessas medidas e prevê efeitos negativos. Ela divide a ação do governo em quatro instrumentos principais: regulação (como a MP das elétricas, dos portos e as concessões de ferrovias, rodovias e aeroportos), desoneração (linha branca, automóveis), compras governamentais e crédito público subsidiado (concedido sobretudo pelo BNDES, mas também por outras instituições estatais).

A economista afirma que esses instrumentos, em si, não são maléficos nem benéficos e que seus efeitos dependem da forma como são usados, da intensidade do uso e de suas intenções principais.
As desonerações seriam bem-vindas, por reduzir a carga tributárias, mas são como uma "metralhadora giratória" para conter as pressões inflacionárias e não levam em conta os efeitos sobre a solidez fiscal, aponta Monica de Bolle, que também é diretora do Instituto de Estudos de Política Econômica da Casa das Garças (Iepe/CdG), o "think tank" tucano sediado no Rio.

A mudança de marcos regulatórios, como o de energia, também seria boa em princípio, mas intervém muito nos mercados e afasta os investidores.

As compras governamentais seriam um instrumento valioso se houvesse uma estratégia para o desenvolvimento do país e viraram uma forma de o governo promover os seus "campeões nacionais", sem maiores considerações sobre o quanto isso renderá ao país.

"Este é também o objetivo principal da "Bolsa BNDES", do crédito público farto e barato que inevitavelmente levará, em algum momento, a perdas para os cofres públicos quando alguns desses empréstimos não apresentarem o retorno almejado", critica.

Para Monica de Bolle, a oposição deve buscar um discurso mais moderno do que a "velha ladainha de sempre" de ficar batendo apenas na tecla da estabilidade macroeconômica. "Não dá para fazer um discurso que não fale diretamente aos jovens e às mulheres", defende. A economista propõe como bandeira a melhora da qualidade dos serviços públicos, como educação e saúde. "Aí estão as brechas que o PT deixou, pois não acredita que as novas classes sociais almejem a excelência, acha que se contentam com a média, a mediocridade", diz.

Em sua opinião, a política de indexação do salário mínimo ao PIB precisará ser desmantelada. "O aumento dos salários acima da produtividade do trabalhador é a principal fonte de inflação no país e, mais cedo ou mais tarde, acabará corroendo exatamente o poder de compra das classes de renda que o governo mais quer preservar", afirma.

 

Dilma faz leitura equivocada da economia

  Por Angela Bittencourt 

 

Não é por falta de esforço do governo que a economia brasileira teima em não crescer. São fatores estruturais e conjunturais que explicam as taxas de expansão declinantes do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos dois anos, equivalentes à metade da gestão Dilma Rousseff. A soma desses fatores mostra que o crescimento econômico é limitado pela oferta de bens e serviços e pelo aumento da inflação. Essa limitação, porém, não foi criada espontaneamente, mas é produto de um diagnóstico equivocado feito pela presidente Dilma que deu continuidade à política econômica estabelecida pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando a economia do país já havia mudado.

Lula ocupou nos primeiros seis anos de seu duplo mandato os "estoques" ociosos de oferta que existiam em vários segmentos da economia quando foi eleito em 2002. Dilma não diagnosticou corretamente que essa condição havia mudado em 2011 e manteve a política anterior, buscando avanços onde a capacidade já estava está esgotada. "Não percebeu que havia herdado - ela sim - uma herança maldita. Assim, não há como crescer em ritmo necessário, desejável ou sustentável sem que ocorra um novo ciclo de investimentos e de reformas em segmentos importantes do sistema produtivo no Brasil".

Essa é a avaliação do ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros que, em entrevista ao Valor PRO, serviço de notícias em tempo real do Valor, lançou como pano de fundo para explicar o porquê da percepção generalizada que existe hoje de que por mais que se faça mais do mesmo, a economia segue e vai continuar emperrada. Para ele existe uma diferença crucial entre os governos dos presidentes Lula e Dilma na gestão da economia.

"Para o Lula estava clara a necessidade de respeitar os princípios de uma economia de mercado, seguindo as leis de oferta e demanda e respeitando os contratos em que o governo é uma das partes. Certamente aprendeu isso no longo período em que chefiou o sindicato dos metalúrgicos no chamado ABC. Já para a presidente Dilma, o crescimento deve ser liderado pelo Estado por meio de medidas pontuais que, muitas vezes, agridem regras de mercado e rompem cláusulas de contratos estabelecidos. E esses critérios soviéticos justificam o recuo dos investimentos privados na primeira metade de seu mandato. A manutenção dessa política não permitirá ao Brasil crescer muito mais de 3% ao ano", afirma Mendonça de Barros.
O ex-ministro explica que a grande maioria das forças positivas que operavam na economia durante o governo Lula perdeu intensidade e o governo Dilma não percebeu esta mudança. Uma dessas forças - e um componente estrutural importante para explicar a atividade acanhada atual - é representada pelos termos de troca do Brasil. Entre 2003 e fins de 2011, os termos de troca da economia saltaram de 95 para 130. Ou seja, para cada US$ 100,00 de exportações o Brasil de Lula comprava no exterior o equivalente a US$ 130,00, contra US$ 95,00 nos anos FHC. Um presente que o país recebeu por conta do crescimento das importações chinesas.

Como resultado, nos primeiros anos do governo Lula o superávit comercial chegou a US$ 45 bilhões anuais, provocando uma valorização fortíssima do real que, de mais de três reais por dólar chegou a R$ 1,60 no início do governo Dilma. Essas mudanças alteraram o padrão das exportações e importações brasileiras, provocando um aumento na oferta de bens necessária para equilibrar o aumento da demanda doméstica provocada pelas políticas sociais de Lula. Com maior capacidade de importar e com a valorização do real, o crescimento da demanda interna na casa dos dois dígitos não provocou o aumento da inflação e manteve em crescimento a massa real de salários.

Os índices de inflação ao consumidor chegaram a ficar no centro da meta do Banco Central, apesar da expansão acelerada da economia. As empresas brasileiras, depois de um primeiro momento de cautela com Lula, passaram a reagir a este período de bonança aumentando de forma importante seus investimentos. O país viveu durante três ou quatro anos o que se chama de ciclo virtuoso do capitalismo, ajudado pela política econômica oficial que seguia no campo macroeconômico o padrão sempre sonhado pelos mercados. Em outras palavras, o ex-presidente Lula manteve a economia funcionando com regras de mercado, corrigindo via políticas sociais o viés de concentração de renda que é o padrão do chamado capitalismo no mundo emergente.

Outra evidência das consequências benéficas da opção de Lula pela gestão econômica a partir de regras de mercado é a arrancada do crédito. "Quando se iniciou esse ciclo virtuoso em 2004, o crédito ao consumo no Brasil era mínimo. Mas ganhou fôlego e dobrou de tamanho em proporção do PIB. Esta foi uma das forças que, junto com a política de aumentos reais do salário mínimo, explicam a incrível expansão das chamadas classes médias no Brasil nos últimos anos. Hoje não se pode esperar a manutenção daquele ritmo de crescimento das carteiras de crédito dos bancos, pois o endividamento das famílias chegou ao limite, com a parcela da renda comprometida com pagamentos de juros e amortizações superando 20% da renda das famílias."

Mas Mendonça de Barros lembra que esse processo de expansão das economias de mercado via estímulo ao consumo tem sempre um horizonte finito de sucesso. Os desequilíbrios, que sempre ocorrem entre investimento e consumo, acabam por gerar forças contrárias que enfraquecem o sucesso inicial. Apenas uma nova agenda que fortaleça o aumento da oferta via investimentos privados pode perenizar os frutos do ciclo de expansão que se encerra. Neste sentido o exemplo brasileiro não fugiu ao padrão encontrado em outros países emergentes. E o fim deste ciclo em que aparentemente tudo dava certo coincidiu com a posse de Dilma no Palácio do Planalto.

Entre os fatores estruturais que dificultam hoje a expansão da economia, Mendonça de Barros aponta a inflação, que ficou "mais complicada". "Hoje, a inflação é de serviços e sustentada pelo nível baixo do desemprego e a preservação da renda. E serviços não dá para importar. Além disso, por pressão da indústria, o governo promoveu no ano passado uma desvalorização cambial de mais de 20% que, por azar, veio junto com o choque de alimentos. Tudo somado, a inflação comeu a renda dos trabalhadores."
O desempenho da indústria merece particular atenção do ex-ministro, que coloca o setor entre os fatores conjunturais que explicam a expansão apática da atividade no país. "Quando se compara o comportamento da produção industrial no Brasil e nos Estados Unidos nos últimos anos, a diferença é flagrante". Em 2008 e 2009, período marcado pela crise financeira global, a produção industrial caiu e muito no mundo todo. Em 2010, Brasil e Estados Unidos optaram por trilhar caminhos diferentes para recuperar o crescimento. Nos Estados Unidos, a expansão começou lentamente e a recuperação só agora se tornou evidente, embora ainda de forma gradual. Não por outra razão o nível de desemprego é ainda muito alto e o Federal Reserve continua com sua política de expansão monetária. Mas a recuperação da economia ganhou tração e deve continuar nos próximos anos.

No Brasil, em 2010, que foi ano de eleição, a recuperação da produção industrial teve forte expansão inicialmente ao responder aos agressivos estímulos criados pelo governo, voltando rapidamente ao patamar pré-crise. "Mas a partir daí, estagnou e não consegue mais crescer", afirma Mendonça de Barros que vê o crescimento do Brasil restrito por limitações de oferta e falta de investimentos.


Para economistas, país ficou defasado no cenário global 

 

"Nós nunca conseguimos na verdade montar um arranjo de política econômica que pudesse nos reinserir no processo de redistribuição da indústria mundial" - Luiz Gonzaga Belluzzo
Começa a ser esboçada uma convergência no diagnóstico sobre o tímido desempenho do PIB brasileiro nos últimos anos. A retomada do crescimento requer um plano estruturado de redefinição da indústria, o calcanhar de Aquiles no atual cenário econômico. Essa é avaliação de dois renomados economistas, os professores Luiz Gonzaga Belluzzo e Edmar Bacha, convidados pelo Valor para analisar o tema deste suplemento que comemora os 13 anos do jornal: "Por que o Brasil não cresce?"

Em uma conversa de três horas, Bacha, um dos formuladores do planos Cruzado e Real e hoje ligado ao PSDB, e Belluzzo, também da equipe que implantou o Cruzado e que se identifica mais com a atual equipe econômica do governo, falaram sobre os desafios econômicos do país em curto e médio prazo. Veja nesta e na próxima página os principais momentos dessa troca de ideias.

Valor: O governo adotou estímulos fiscais e monetários e a economia não reagiu. Por quê?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Ficamos atrasados. Quando falamos que tem um processo de desindustrialização, não estamos dizendo que estamos arrancando fábrica daqui, até porque o investimento estrangeiro direto continua vindo, mas ele vem para a ponta desse sistema. Nós não estamos nos engrenando nas cadeias produtivas globais. Quando começou esse negócio de globalização, houve uma discussão, a meu juízo ideológica, que tinha viés dos dois lados. Por um lado apresentavam a globalização como um processo homogêneo. Vou dar como exemplo um comentarista respeitado, Thomas Friedman, que diz que o mundo é plano. O mundo não é nada plano, é cheio de saliências e de diferenças. Você não explica o sucesso da China sem o que ocorreu nos Estados Unidos em matéria de elevação do consumo, naquelas condições que a gente conhece, com estagnação dos rendimentos, maior desigualdade etc. Também é um equívoco achar que são as reservas chinesas que financiam a economia americana. Se você olhar o fluxo de capitais, o bruto e o líquido, vai ver que os EUA foram o principal receptor de capital financeiro nesse período que vai de meados dos 1980 até recentemente. A variável independente, do meu ponto de vista, é a liberalização financeira, são os fluxos financeiros dos EUA. As taxas de juros longas dos EUA ficaram baixas durante o tempo inteiro por causa desse brutal fluxo de capitais. E a City londrina funcionava como uma espécie de transatlântico financeiro. A maior parte do dinheiro vinha da Europa. Quando se tinha crise aqui, como houve em vários momentos, o dinheiro fugia daqui e ia para os EUA. Isso deu espaço para duas bolhas: a da pontocom e, depois, a bolha dos imóveis. Houve uma restruturação, se terceirizava tudo, as empresas ganharam grande competitividade e isso foi muito eficiente, teve muita importância para a inflação mundial. A China e essa mudança estrutural, porque o preço dos manufaturados veio abaixo. Nós fomos os beneficiados. Quando se discute o Brasil até 2002 e depois de 2002 tem que contar com o fato de que as circunstâncias internacionais mudaram substancialmente. Exatamente nesse período que se tem o boom de commodities, certo? Tivemos o boom de commodities de 2004 a 2008. De 2004 a 2008 tivemos uma mudança internacional raras vezes observada e acumulamos 300 e tantos bilhões de dólares de reserva. Nós temos US$ 370 bilhões, o que nos dá certa segurança. Tem um custo, teve o custo fiscal alto. Na verdade nós carregamos as reservas com taxas de juros muito altas e aí começam os problemas de curto prazo, que eu vou deixar para o Bacha falar. O que eu quero dizer é o seguinte: nosso atraso no que diz respeito à indústria nasce do final dos anos 1970, começo dos anos 1980. Nós nunca conseguimos na verdade montar um arranjo de política econômica que pudesse nos reinserir no processo de redistribuição da indústria mundial.

Valor: A não ser a indústria financeira.
Belluzzo : Pega as taxas de crescimento dos anos 1980, qual foi a taxa de crescimento média?

Edmar Bacha : Per capita, negativa.

Belluzzo : Per capita, negativa. Mas ela foi 2%, 2,5%, por aí. Nos anos 1990 quanto foi a taxa de crescimento médio? A mesma coisa. Deu uma recuperada a partir de 2004, pelas razões que eu expus aqui, bateu em 4% em 2004, foi bem até 2008, em 2008/09 tivemos aquela queda de 0,6%, eu vou deixar para falar das coisas de curto prazo depois, porque acho que o Bacha tem que começar a dar a opinião dele.
Bacha : Deixa eu ser tecnocrático aqui: por que cresce pouco? Porque investe pouco e porque tem baixa produtividade. E a segunda é: por que investe pouco? Porque tem baixa produtividade. Além disso, tem um antecedente, porque a Europa também está crescendo pouco, não é? Em comparação com a Europa a gente está crescendo muito. Nosso problema não é só o crescimento baixo, é um crescimento baixo e inflação alta. Todos concordamos que não temos um problema de demanda efetiva, nós temos um problema de oferta. O crescimento é baixo porque há alguma coisa errada do lado da oferta. Isso é denotado pelo fato de que acompanhando o crescimento baixo tem inflação alta, esse é primeiro ponto. Aí a gente tem que entrar nessas questões de oferta. O investimento é baixo se comparar - com os asiáticos, nem se compara - mesmo na América Latina, a taxa de investimento no Brasil acho que é menor que a do Paraguai, não sei se é menor do que mais alguém. Então o país investe pouco, aí a gente vai ter uma série de discussões sobre por que o país investe pouco, mas esse é um problema. E a produtividade também é muito baixa. Então tem alguma coisa que não está funcionando na economia. Aí na hora em que você vai falar sobre o que não está funcionando na economia, em vez de ficar focado nas controvérsias dos economistas, você deveria olhar em que o Brasil é diferente, olhando assim para o lado ruim, por que a gente está no final da linha? Falando só de economia, uma coisa que está clara é dívida pública bruta de 65% do PIB, que é extraordinariamente elevada para um país em desenvolvimento, mas tem outros que estão lá também: tem a Índia, o Egito.
Valor: Mas é realmente elevado 65% do PIB?

Bacha : 65% do PIB comparados com nossos parceiros de renda per capita é extremamente elevado, o padrão normal seria mais nos 20%. Apesar dessa dívida elevada, temos uma tributação que é elevadíssima, no ano passado de 37% do PIB, isso também é totalmente fora de compasso. Esse tipo de tributação é maior, por exemplo, que no Japão ou Estados Unidos, para não dizer o resto dos países em desenvolvimento. Acho que essa é uma coisa crítica. Qual é o outro componente que a gente tem totalmente fora de compasso? É a Previdência, com uma taxa de dependência muito baixa na relação entre idosos e pessoal ativo, 10%. A gente já gasta 11% do PIB, tanto quanto gastam países que têm relação de dependência três vezes mais alta. A questão previdenciária é particularmente preocupante porque nós vamos chegar muito rapidamente a esse padrão de distribuição etária que hoje existe nos países avançados na Europa. A outra questão em que o Brasil é realmente muito diferente é infraestrutura. A gente gasta 2% do PIB em infraestrutura, isso não existe, é parte importante do componente na revisão - além do custo Brasil implícito na carga tributária - de por que o investimento é tão baixo. Não tendo a infraestrutura, a rentabilidade do setor privado é muito menor, estamos vendo aí as questões dos portos, a preocupação com apagão. E finalmente, mas provavelmente mais importante do que eu disse antes, a educação é lastimável, como é demonstrada pelo próprio resultado do Pisa, a gente é melhor que o Cazaquistão, número 73, mas nós somos numero 67. É uma coisa inacreditável. Conseguimos colocar as crianças na escola, mas não estamos ensinando nada a elas. Tem tudo a ver com o que o Belluzzo falou, não sei se ele vai concordar. O Brasil se isolou do ponto de vista econômico, do ponto de vista do comércio.
Valor: Parece que os dois concordam que a indústria é o grande ponto fora da curva. O senhor citou que Brasil se isolou do ponto de vista do comércio internacional e o professor Belluzzo usou a expressão de que nos anos 1970 e 1980...

Belluzzo : O Brasil não se isolou, teve uma especialização ruim, eu acho.

Valor: O governo hoje quando olha para indústria está fazendo uma política atrasada? Exigência de conteúdo nacional....

Bacha : Eu acho que é exatamente por aí. Eu creio que está crescentemente se compondo uma ideia no país, uma percepção desse tipo de convergência - que é parecida com uma convergência com que a gente conseguiu através do Plano Real acabar com inflação - que é essa noção, com um "pibinho" e inflação alta, estamos convergindo para aquele problema de oferta. Na hora que a gente olha para os problemas de oferta no Brasil, tem tanta coisa para consertar, mas não tem um caminho? Eu estou cada vez mais convencido, ainda é uma tese, de que o caminho é partir para uma reindustrialização do país, o renascimento da indústria no Brasil.

"Dívida pública bruta de 65% do PIB é extraordinariamente elevada para um país em desenvolvimento" -
Edmar Bacha

Valor: O que isso significa?

Bacha : Significa repensar a indústria brasileira, não no contexto do mercado interno, que foi sempre só nossa percepção, mas tendo em conta que é um país que tem uma dimensão grande interna, mas a gente tem que pensar a indústria brasileira em termos do mundo. Nós somos uma economia grande, mas nós só somos 3% do mundo, tem 97% lá fora. Está totalmente equivocada essa política de conteúdo nacional, está acabando com a Petrobras. Hoje em dia, nós vamos conseguir produzir todos os componentes de todos os bens aqui internamente, é essa ainda a concepção? Você pega a política industrial da saúde - é porque tem um déficit de R$ 11 bilhões; política industrial da eletroeletrônica é porque tem um déficit de R$ 16 bilhões. Então eu acho que precisa virar isso de cabeça pra baixo. (Ver matéria na pág. F7).
Valor: É realmente uma mudança de concepção.

Bacha : Se você fizer isso, vai forçar o governo a ter de fato uma política de controle de redução da carga tributária. Vai forçar o governo a colocar o câmbio no lugar, de outro jeito não dá. E vai forçar os empresários a pensar na hora de investir no Brasil - "não, não vou investir aqui só porque o mercado está ruim, eu vou investir aqui porque vai fazer parte das minhas plataformas exportadoras".
Valor: Professor Belluzzo, como o senhor vê a indústria?

Belluzzo : Estou achando ótimo o Bacha falar isso, porque eu tenho diversas observações, digamos assim, críticas, sobre o quê ele falou. Assim fica legal o debate. Vou começar pela primeira observação que ele fez, corretíssima: o Brasil tem uma baixa taxa, você se lembra da taxa de investimento do Brasil nos tempos do milagre?

Bacha : 22%, 23%, chegou a 27%.

Belluzzo : O seu trabalho com o Regis Bonelli...

Bacha : Comigo.

Belluzzo : O diabo é que eu tenho boa memória, eu não sou muito inteligente, mas boa memória eu tenho. A taxa no auge do milagre chegou a 27%, mas na verdade a média era 22%, 23%. A partir da crise da dívida externa tivemos um declínio fortíssimo. Vou analisar algumas questões estruturais do período anterior para a gente entender. Você tinha uma sinergia muito grande entre investimento público e privado naquela época em que construímos toda a nossa infraestrutura, até os anos 1970. Temos 30 anos atrasados na infraestrutura. Keynes era um liberal conservador, gostava das conquistas culturais e civilizatórias do capitalismo, mas achava que o sistema não funcionava muito bem. Então, o que ele recomendou? Precisa ter uma sinergia para que você tenha um mínimo de estabilidade na taxa de inversão entre os programas de investimento, uma coordenação. O que você perdeu aqui no Brasil foi muito dessa coordenação, nós tínhamos, mal ou bem, essa coordenação nos anos 1950 e 1960. Quem fazia isso? As empresas estatais. Eu não estou dizendo que você tem que desfazer a privatização, eu estou dizendo o seguinte, o governo precisa ter um orçamento de capital separado do orçamento corrente, orçamento corrente tem que ser sempre equilibrado, o orçamento de capital é aquele que regula as flutuações cíclicas, isso foi o que ele pensou. Muito bem, deixamos o investimento público aqui baixo, a nossa indústria de bens de capital está reduzida. A taxa de investimento é muito baixa. E ela ficou estagnada com flutuações muito pequenas ao longo desses últimos 30 anos, o investimento público caiu para menos de 2% do PIB. Não é possível, isso é uma economia que não tem coordenação. Eu não vou ficar discutindo esse negócio de mais Estado, mais mercado. Essa é uma coisa que não me interessa, discussão ideológica, porque em todo lugar do mundo você tem alguma ação do Estado, boa ou má, às vezes não muito boa. Essa coordenação nós perdemos a partir da crise da dívida externa, tivemos graves problemas fiscais e nunca recuperamos a capacidade do Estado de investir e coordenar o setor privado. E aí está o resultado na infraestrutura. Isso tem um impacto grande. E subimos a carga tributária, de 20%, antes da estabilização ela estava em 21%, depois dela foi a 30%, 37%, de uma maneira totalmente caótica. Agora, vai fazer uma reforma tributária no Brasil... Eu acho que desse ponto de vista, e aí eu vou ter a primeira relação crítica com o Bacha, temos sim um problema de oferta e temos um problema demanda efetiva, porque se você quer criar oferta você tem que gerar demanda. Esse problema não ficou claro e agora está começando a ficar, porque durante o período da bonança nós promovemos uma mudança na composição da demanda doméstica, certo? Por causa dos programas sociais, do salário mínimo etc. Então, nós temos um mercado de trabalho apertado, até porque houve, não sei até quando isso vai durar, uma redução da PEA, então você tem uma taxa de desemprego baixa. Mas nós estamos em um enrosco, por quê? Como o crescimento se deu dessa maneira, e é claro que se incorporou um monte de gente como consumidor, e dadas as mudanças que ocorreram na economia, sobretudo a queda da inflação, eles viraram demandantes de crédito. Nos anos 1980 você não tinha crédito, a relação crédito/PIB era de 20%? Era isso?

Bacha : Isso.

Belluzzo : Era 20%, quanto é hoje, 50%? Ocorreu alguma coisa diferente, quem não tomava crédito começou a tomar, isso tudo deu uma mudança na estrutura da demanda, qual foi o impacto na estrutura da oferta? O governo precisa colocar o câmbio no lugar. A questão cambial é fundamental. Imaginem o seguinte, eu sou investidor estrangeiro e vou montar uma fábrica de chips em Campinas e vou decidir isso com o câmbio a R$ 2,40, quando termino de construir a minha fábrica o câmbio está a R$ 1,60, então o que eu faço: dou um tiro na cabeça? Desmonto o meu investimento? Quer dizer, você aumenta a incerteza. Eu acho que hoje em dia, dada a reestruturação da indústria mundial, essa questão cambial é crucial. Agora não é suficiente, por quê? Vamos pegar o exemplo bem-sucedido. O Bacha fez uma crítica ao conteúdo nacional. Eu acho que precisa escolher alguns setores que têm maior poder de disseminação e dar prioridade a eles. Para terminar: este é o país mais burocratizado do mundo.

Bacha : Você nunca foi à Índia?

Belluzzo : Mas na Índia funciona, aqui não funciona. A burocracia aqui é um negócio de enlouquecer, você abrir uma empresa, fechar uma empresa, especialmente fechar, você está perdido. Mas eu queria falar o seguinte, sobre a burocracia: vai ter que resolver esses impasses que estão cada vez mais graves entre Legislativo, Judiciário e Executivo. Existe uma interferência burocrática na ação econômica do Estado que a gente precisa discutir.


Desonerações trazem alívio temporário 

 Por Marta Watanabe

 

Para a Metalplan, indústria de bens de capital, a desoneração de folha de pagamento, uma das medidas do governo federal para reduzir custo de produção, foi mais do que bem-vinda. Com a troca do pagamento da contribuição previdenciária de 20% sobre folha pelo pagamento de 1,5% do faturamento, a empresa reduziu pelo menos 3% de seu custo industrial.

O incentivo para aquisição de máquinas com financiamento mais barato e facilitado via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), outra medida do governo, também beneficiou a empresa. No ano passado a Metalplan dobrou o valor de venda por meio do cartão BNDES. Atualmente, informa, cerca de 30% do faturamento vem por meio de vendas efetivadas com o cartão ou o Finame, linha de crédito do banco específica para compra de máquinas.

As medidas adotadas pelo governo nos últimos meses não favoreceram apenas as indústrias. A desoneração de folha, por exemplo, também beneficiou o setor de serviços, entre eles o hoteleiro. Alberto Grau, diretor de hotelaria da GJP Hotels e Resorts conta que a desoneração da folha trouxe redução de 50% do valor devido de contribuição previdenciária, levando em consideração o período de agosto de 2012, quando o benefício passou a valer, até março de 2013, em relação a igual período do ano anterior.

A redução da tarifa de energia elétrica, que passou a vigorar em fevereiro, também deve contribuir para reduzir custos, mas a rede ainda não fez os cálculos. Grau informa, porém, que a despesa estava em expansão. A média histórica desse custo é de 6% a 7% da receita, diz o executivo, e no ano passado já havia atingido os 10%.

Apesar do alívio resultante das medidas adotadas pelo governo, a pressão de custos sobre as empresas persiste. O caminho para condições de competitividade mais isonômicas e que permitam colher ganhos de produtividade mais expressivos, dizem, ainda é longo e depende de mudanças mais estruturais.
A Metalplan, por exemplo, fechou 2012 com faturamento nominal menor que o do ano anterior, uma situação que só havia sido registrada antes em 1992, diz Edgard Dutra, diretor da empresa. A queda de 5% nominais, porém, teria sido maior sem as medidas do governo, avalia. "A empresa conseguiu manter os preços sem reajuste, apesar da pressão de custos, como de salários".

Com a contenção no preço, a empresa manteve a capacidade de concorrer no mercado. Com mais fôlego e animado com o desempenho dos primeiros meses de 2013, Dutra planeja fechar este ano com ganho de 20% de faturamento em relação a 2012. O horizonte num prazo mais distante, diz, parece promissor, mas depende do aumento de competitividade.

Os resultados das medidas do governo federal não se restringiram à Metalplan. Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostram que a política de redução da taxa de juros evitou que os custos das indústrias crescessem com maior intensidade. Na média anual, houve queda de 24,8% no custo de capital de giro de 2011 para o ano passado. O custo tributário, um dos grandes problemas estruturais apontados pelas empresas para a competitividade, ainda subiu 5,6% em relação ao ano anterior, apesar de ter apresentado queda no quarto trimestre do ano passado.

Mesmo com as medidas do governo, porém, o custo industrial calculado pela CNI indica alta de 6,3% de 2011 para 2012, elevação maior que os 5,8% registrados no ano anterior. Os preços praticados pela indústria subiram menos, com alta de 4,9%. Segundo o economista Renato da Fonseca, da CNI, isso significa que a indústria não conseguiu repassar o aumento de custo para o preço e apertou a margem de lucro.

As empresas tiveram que encolher os ganhos mesmo com o efeito favorável do câmbio no decorrer de 2012. Fonseca explica que o real mais valorizado elevava, em dólar, a despesa com mão de obra e energia elétrica, por exemplo, o que tirava a competitividade do produto brasileiro na concorrência com o importado ou no mercado internacional. A desvalorização do real durante o ano passado, entretanto, diz Fonseca, deu à produção doméstica maior competitividade. Os preços em reais dos manufaturados importados tiveram elevação de 16,9%, variação que supera em 10 pontos percentuais o aumento de 6,3% dos custos industriais no Brasil.

As taxas de desemprego, porém, mantiveram a pressão sobre o custo da mão de obra em alguns segmentos. Entre 2006 e o ano passado, a taxa de desemprego passou de 10% para 5,5%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Na rede de hotéis GJP, os custos de pessoal ainda são altos e continuam em elevação. O valor da folha de pessoal, incluindo salários, encargos e benefícios, cresceu 32,9% entre 2011 e 2012, levando em consideração a rede já existente em 2011. O crescimento deve-se à elevação do quadro de pessoal e ao aumento dos benefícios.

O baixo nível de desemprego, diz Grau, gerou aumento de rotatividade em algumas unidades e pressão sobre os salários. Paralelamente, o setor enfrenta cada vez mais o problema da qualificação da mão de obra. A melhora da educação, explica, reduziria os gastos de qualificação e treinamento de pessoal e aumentaria a produtividade.

A melhoria da educação é uma das mudanças estruturais consideradas essenciais pelas empresas. Há uma percepção de que as medidas do governo para reduzir custos foram positivas, mas é preciso adotar simultaneamente políticas que também façam diferença num prazo mais longo.

Além da melhoria da educação e, consequentemente, da qualificação da mão de obra, Dutra, da Metalplan, aponta a necessidade de inovação como forma de elevar a competitividade brasileira. Segundo ele, os mecanismos atuais são burocráticos e desestimulam as empresas menores a investir. "O financiamento para inovação no Brasil demanda pagamento em dois ou quatro anos". O investimento em inovação, argumenta, precisa de mais tempo porque muitas vezes a nova tecnologia, além do tempo e de recursos para ser desenvolvida, ainda precisa formar um mercado. Para ele são necessários dez ou vinte anos.
O aparente esgotamento de alguns mecanismos emergenciais que deram fôlego para as empresas no ano passado também faz as empresas olharem para um período mais longo à frente. A desvalorização do real, que ajudou no ganho de competitividade das empresas, diz Fonseca, da CNI, "já acabou". Para ele, é preciso intensificar ações que reduzam custos de produção da indústria e custos sistêmicos da economia brasileira.

O economista exemplifica alguns, como carga tributária, infraestrutura logística, regulação ambiental, qualificação de mão de obra e melhora do resultado fiscal do governo por meio da redução de gastos. A melhora da infraestrutura, avalia Fonseca, depende, porém, além de uma taxa de juros baixa, da retomada de confiança na demanda doméstica e na existência de regras claras para dar segurança ao investidor.
Fonseca lembra que, apesar da desvalorização da moeda nacional em 2012, o real ainda está valorizado frente ao dólar. A melhora dos demais fatores de competitividade, porém, dará importância relativa e mais marginal ao câmbio.


Insegurança jurídica eleva o fator risco dos investimentos

 Por Cristine Prestes 

 

O primeiro leilão específico do pré-sal ocorre em 28 de novembro, mas ainda não se sabe se até lá a regra para a distribuição dos royalties gerados pela exploração do petróleo já estará definida. A decisão sobre a nova forma de partilha dos recursos, pagos pelas empresas titulares do direito de explorar as novas áreas, está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF).

Embora o tema seja de interesse exclusivo das diferentes unidades da federação - já que são elas as destinatárias dos valores, que para as empresas são líquidos e certos -, a possibilidade de que Estados produtores venham a criar novos tributos para o setor, diante da eventual perda de arrecadação com uma nova divisão, não é descartada. O cenário de incerteza em relação aos royalties é o que se chama, no mercado, de insegurança jurídica, termo usado para definir a instabilidade de regras que, quando não afasta investimentos, leva as empresas a darem peso extra ao fator "risco" no cálculo da taxa de retorno e na equação de formação do preço de seus produtos.

A situação não é exatamente nova. Afora as alterações legislativas promovidas frequentemente pelo Executivo e Legislativo, o Judiciário vem aumentando seu quinhão na divisão de tarefas entre os poderes da República num movimento crescente desde a Constituição de 1988. Pela Justiça têm passado inúmeras questões que afetam diretamente o mercado - o caso dos royalties é apenas um exemplo de mudança na lei que cai no colo do Judiciário tão logo é promovida.

Mas, se há algum tempo a indefinição que perdura enquanto a Justiça não define a validade de uma norma posta sob seu crivo era apontada como um dos principais motivos a afugentar investimentos do país, hoje a insegurança jurídica desafia o desejável investidor de longo prazo. "Com a mudança de classificação da economia brasileira, o Brasil passou a atrair investimentos a despeito da insegurança jurídica", afirma o jurista Fábio Ulhoa Coelho, professor de direito comercial da PUC de São Paulo. "Só que o investidor atraído é aquele mais afeito ao risco", diz.

Segundo ele, mesmo o investidor de longo prazo precisa ajustar sua lógica para um investimento mais arriscado, já que o retorno tem que ser proporcional ao risco. "E para ter um retorno maior, o preço do produto tem que ser maior. É por isso que, mesmo tirando os impostos, o produto aqui é mais caro", explica Ulhoa Coelho.

No caso dos royalties do petróleo, a mudança nas regras de distribuição foi feita pelo Congresso Nacional, que em 2012 aprovou a Lei nº 12.734. Submetida à sanção presidencial, a legislação foi parcialmente vetada pela presidente Dilma Rousseff, mas seus vetos foram derrubados no Congresso. Diante do impasse nas negociações entre os Estados produtores - Rio e Espírito Santo - e os demais, o tema foi parar no Supremo. Neste caso, diz o advogado Saul Tourinho, responsável pelo acompanhamento de processos no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Pinheiro Neto Advogados, foram testados todos os instrumentos que a Constituição oferece: a lei saiu do Legislativo, foi vetada pelo Executivo e os vetos foram derrubados pelo Parlamento. "Mesmo assim, a solução do problema caiu no colo do Supremo", afirma. "É um momento de efervescência dos tribunais", diz.

É possível que o Supremo dê uma resposta ao vácuo jurídico relacionado aos royalties a tempo do leilão do pré-sal. Mas nem sempre isso acontece. No mês passado, a Corte definiu, ainda que de forma parcial, uma gigantesca disputa entre o fisco e os contribuintes em torno da incidência do Imposto de Renda e da Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL) de coligadas no exterior, derrubando a tributação e mantendo-a apenas para as empresas que estão em paraísos fiscais. A decisão era aguardada há nada menos do que 12 anos por um sem número de companhias brasileiras de porte que mantêm coligadas fora do país: a Medida Provisória nº 2.158, que deu início à tributação, é de 2001.

"Há um grau muito grande de insegurança jurídica gerada por problemas de prazo", diz Décio Zylbertstajn, professor titular e livre docente da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEAUSP) e coautor do livro "Direito e Economia". "Temos que ter um Judiciário que seja capaz de dar respostas rápidas, em tempo hábil", afirma. A boa notícia, diz, está em recentes ações que têm como objetivo garantir maior celeridade processual, como o investimento na informatização da Justiça. "Mas não é algo que cai do céu, estamos no meio desse processo, tentando acelerar a tomada de decisões".

Se a demora na solução de controvérsias provoca insegurança jurídica, não menos impacto gera a falta de convergência do Poder Judiciário em torno dos inúmeros temas econômicos submetidos a ele. Tomada ao pé da letra, o ditado popular que diz que em "cada cabeça, uma sentença" ganha proporções gigantescas quando se trata de uma Justiça com cerca de 17 mil juízes e 90 milhões de processos. "O problema da insegurança jurídica não é tanto de uma questão ir ao Judiciário, mas de o Judiciário ter coerência nas decisões", diz Décio Zylbertstajn, para quem a maior dificuldade está em termos uma Justiça heterogênea a lidar com essas questões.

À falta de unidade soma-se uma duvidosa qualidade das decisões judiciais quando se trata de temas empresariais. "Há muitas decisões judiciais que não estão de acordo com o que a lei prevê e acabam interferindo na economia", diz o professor Fábio Ulhoa Coelho. Um episódio clássico é o que ficou conhecido como o "caso da soja verde": durante as safras de 2002 a 2004, o preço da saca de soja atingiu picos elevados no mercado à vista, muito acima do definido na venda antecipada fechada com tradings ou esmagadoras. Na época, os produtores foram à Justiça para romper os contratos, com o argumento de que eles teriam se tornado injustos. A Justiça atendeu o pleito - mas no ano seguinte, a venda antecipada da safra em Goiás caiu imensamente, diante do risco de novas liminares. "É um Judiciário que não está devidamente instrumentalizado para discutir questões de direito empresarial de forma correta", diz Ulhoa Coelho. "Nem todos os juízes estão preparados para decidir questões de direito comercial".

Exemplos não faltam. O advogado Luciano Timm, estudioso das relações entre direito e economia, cita o entendimento da Justiça brasileira sobre a desconsideração da personalidade jurídica - em outras palavras, quando uma decisão judicial permite que os sócios respondam por eventuais fraudes praticadas pela empresa. "A Justiça do Trabalho criou uma regra que inibe investimentos", diz. "Já vi uma empresa italiana que deixou de investir no Brasil porque nunca viu um país com uma extensão tão grande da responsabilização dos sócios quanto no Brasil", conta.

Luciano Timm cita outro exemplo, que acaba levando a uma consequência perversa. Segundo ele, por causa da enorme chance de uma pessoa ir à Justiça para aumentar a cobertura de seu plano de saúde, muitas empresas hoje só negociam planos coletivos. "Se uma empresa fecha um contrato com uma pessoa, não tem como distribuir o risco de ações judiciais; mas se for um plano coletivo, com 100 pessoas, o risco é embutido no custo", explica. De acordo com ele, isso ocorre porque a Justiça sempre define que o plano tem que incluir uma cobertura não prevista no contrato. "O Judiciário muitas vezes vai além do órgão regulador", afirma. Para ele, há no Judiciário "uma mentalidade antieconômica". Para o professor Décio Zylbertstajn, a insegurança jurídica não é apenas o fruto de imperfeições de um sistema legal, mas principalmente da interpretação das lei. "E quando isso torna o resultado da aplicação da lei muito amplo, gera incertezas e vem a insegurança jurídica".


Educação melhora em ritmo inferior às necessidades do país

 Por Luciano Máximo

 

Seja na preocupação dos empresários com a disponibilidade de mão de obra qualificada para a sustentação dos negócios ou nas centenas de iniciativas governamentais, a educação hoje perpassa praticamente todas as grandes agendas do Brasil.

A despeito da importância do setor e do progresso visto nos últimos 20 anos, como a universalização da educação básica ou a expansão do ensino superior, uma sensação incômoda persiste no cotidiano de quem está diretamente envolvido com as políticas educacionais brasileiras: melhorias em termos de qualidade são excessivamente lentas.

O ritmo desses avanços acaba virando um grande problema de médio e longo prazos, pois joga contra o atual esforço de elevar o crescimento econômico e interfere diretamente no modelo de desenvolvimento pensado para o país.

Na opinião do professor Romualdo Portela, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), a lentidão dos avanços da qualidade do ensino pode ter raiz na ausência de prioridades atribuída ao setor na formulação dos planos estratégicos de desenvolvimento do país.

Estudioso da inserção da educação nos instrumentos de planejamento de Estado, Portela explica que o país vive um dilema, como pretende demonstrar no livro "Desafios da Educação para o Desenvolvimento Brasileiro", que será publicado em breve pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

"O ensino aparece como componente fundamental do processo de desenvolvimento e de crescimento desde o Plano de Metas do Juscelino [Kubitschek, 1902-1976] nos anos 1950, mas isso nunca se desdobra em uma clara priorização de investimento na área como materialização dessa prioridade", avalia o acadêmico. "O desenvolvimento não é parte estruturante da agenda educacional, ainda que a expansão da educação com qualidade represente aporte significativo aos projetos de desenvolvimento", complementa Portela.
O descompasso entre as prioridades do ensino estabelecidas nos planos estratégicos de desenvolvimento e sua efetiva realização é visível nas políticas educacionais atuais mais importantes, que se arrastam ou sofrem terrível dificuldade para serem colocadas em prática. Exemplos disso são o Plano Nacional de Educação (PNE), a indefinição sobre o investimento das receitas do pré-sal no ensino e o pagamento do piso nacional dos professores.

Legislação que cria diretrizes nacionais para a educação no período de uma década, a primeira edição do PNE, que vigorou entre 2001 e 2010, foi inócua. Já o PNE 2 está parado no Congresso desde dezembro de 2010, sem perspectivas de aprovação. Na semana passada, o Congresso Nacional, orientado pelo governo federal, ignorou o capítulo da nova lei de distribuição dos royalties de petróleo que trata da aplicação dos recursos em manutenção e desenvolvimento do ensino - a decisão agora cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF). Com relação à lei que desde 2008 obriga Estados e municípios a pagar um piso a seus docentes, centenas de prefeituras e governos estaduais burlam a legislação e pagam salários inferiores a R$ 1.500.

"Esses exemplos mostram que, no discurso, governadores e prefeitos colocam educação como prioridade, mas criam uma série de obstáculos quando surgem medidas concretas que podem trazer algum resultado num ritmo interessante. É a retórica vencendo a prática", critica Portela.

Em suas andanças pelo país, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, tenta passar uma visão diferente, de que educação é prioridade tanto do governo Dilma Rousseff como do Estado brasileiro. Em suas palestras e entrevistas, Mercadante não se cansa de afirmar que o MEC enxerga o setor como prioritário para o crescimento sustentável do país. "Como há muito tempo não se via, desenvolvemos uma visão sistêmica da educação, investimos com a mesma prioridade da creche à pós-graduação. O orçamento do MEC mais que quadruplicou nos últimos dez anos, vamos investir mais de R$ 6 bilhões dentro do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), trabalhamos para ter os recursos do pré-sal visando ao desenvolvimento futuro e temos um importante papel na política econômica que vem sendo executada pelo governo federal no período pós-crise", disse Mercadante em entrevista ao Valor no fim do ano passado.
Outros especialistas ouvidos pela reportagem destacam as experiências dos últimos 50 anos de Coreia do Sul, China, Austrália e Chile como referências para avanços considerados rápidos na qualidade do ensino. Uma das razões para isso é que nesses países a política educacional está intimamente associada a um planejamento de desenvolvimento de nação. O caso mais estudado é o da Coreia do Sul, que registrou o mais rápido avanço em qualidade da educação e vários indicadores sociais, num processo que começou nos anos 1940 e continua até hoje, com o país no topo dos rankings de ensino e de desenvolvimento humano.
Sung-Sang Yoo, professor da Hankuk University of Foreign Studies, da Coreia do Sul, e pesquisador da University of California (Ucla), conta que a receita para o salto educacional da Coreia ocorre a partir de um ponto de vista "simples": "Prioridade governamental e planejamento de longo prazo", diz. Segundo Yoo, o governo coreano aproveitou oportunidades do pós-guerra e apoios multilaterais para traçar um plano de desenvolvimento estratégico que conjugasse crescimento econômico junto com avanço educacional, de forma conceitual e pragmática.

"Em dez anos foi uma avalanche de medidas. Com elas, as conquistas vieram rapidamente: universalização da educação básica chegou em menos de dez anos, ainda nos anos 1950; professores passaram a ter os melhores salários do mercado; o governo central aumentou expressivamente os gastos com educação. Tudo isso foi um ponto de partida importantíssimo para definir os rumos da economia coreana, baseada numa indústria forte e inovadora", explica Yoo.

Ele acrescenta que, mesmo hoje, as políticas educacionais continuam liderando as prioridades de Estado. "A mais nova ambição do governo é transformar a Coreia no primeiro país a universalizar o ensino superior". Hoje, 65% dos coreanos de 25 a 34 anos têm diploma universitário, o maior índice do mundo; no Brasil, essa taxa não ultrapassa 15%.

Na avaliação da consultora em educação Ilona Becskeházy, para o Brasil avançar mais rapidamente na qualidade do ensino são necessárias decisões mais simples, não necessariamente associadas a grandes planejamentos estratégicos. Decisões simples, diz ela, é dar padrão às políticas educacionais mais estruturais, principalmente aquelas relacionadas ao conteúdo pedagógico e à formação de professores. "É preciso definir parâmetros de qualidade e como esses parâmetros serão alcançados. Não há no Brasil um currículo nacional, não sabemos bem o que a criança precisa aprender em cada série e em cada disciplina". Sem a adoção de parâmetros o país nunca dará os saltos "que precisamos".



Expansão fiscal é uma das questões preocupantes 

 Por Sergio Lamucci

 

A expansão dos gastos públicos, o comportamento do crédito e a alta dos preços dos imóveis no Brasil preocupam a economista Carmen Reinhart, professora da Universidade de Harvard. Para ela, num cenário com juros baixos nos países desenvolvidos e preços de commodities em níveis ainda elevados, o país precisa tomar cuidado para não tratar "choques favoráveis como se fossem permanentes".

"Os aumentos dos gastos são totalmente pró-cíclicos agora. Evitar o caráter pró-cíclico da política fiscal neste momento é algo de grande importância", diz Reinhart. Segundo a economista, o país não está próximo de uma crise, mas essas questões precisam ser monitoradas. Com a política monetária expansionista nas economias avançadas, é necessário lidar com grandes fluxos de recursos externos.

Usar controles de capitais faz sentido, mas não há uma "bala de prata" para tratar desse problema, afirma Carmen, que virá ao Brasil para participar do 24º Congresso Brasileiro do Aço, que ocorre nos dias 8 e 9 deste mês no Rio, promovido pelo Instituto Aço Brasil. "Quando você está importando a política monetária expansionista de outros países e não está distante do pleno emprego, há um risco de aquecimento excessivo, um risco inflacionário".

Carmen acredita que a política monetária continuará expansionista por um bom tempo nos países desenvolvidos, o que significa que os emergentes terão de se habituar a grandes fluxos de capitais. Além de atividade econômica seguir fraca, as economias avançadas têm outro incentivo para manter os juros no chão, num cenário de elevado endividamento do setor público, diz ela. "Quando há um excesso de endividamento, eles sempre terminam com transferências de poupadores para devedores. Juros reais negativos nos Estados Unidos são um imposto sobre os detentores de títulos".

Nas últimas semanas, um estudo escrito em 2010 por Carmen juntamente com Kenneth Rogoff, de Harvard, esteve no centro de uma grande polêmica. Em "Growth in a time of debt", os dois analisam dados de 44 países ao longo de 200 anos, concluindo que níveis elevados de endividamento público - com dívida bruta igual ou superior a 90% do Produto Interno Bruto (PIB) - estão associados a taxas de crescimento muito baixas. Em 15 de abril, economistas da Universidade de Massachusetts, em Amherst, publicaram um trabalho criticando o estudo de Carmen e Rogoff, apontando um erro numa planilha de Excel, "exclusão seletiva" de dados disponíveis e ponderação não convencional das estatísticas, que teria levado a "erros sérios" nas conclusões a respeito da relação entre dívida e crescimento.

Carmen e Rogoff reconheceram o equívoco na planilha de Excel, mas rechaçaram as outras acusações. Em artigo publicado no "The New York Times" na semana passada, os dois divulgaram uma extensa defesa, dizendo que não só a pesquisa, mas também as credenciais e a sua integridade, foram furiosamente atacados nos jornais e na televisão. O fato de o estudo ter sido várias vezes usado para justificar políticas de austeridade fiscal ajuda a entender o tamanho da polêmica. Reinhart falou ao Valor em 12 de abril. O jornal pediu que ela comentasse as críticas ao seu trabalho, o que não ocorreu até o fechamento desta edição.
A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Como está a recuperação da economia americana?

Carmen Reinhart: Recuperações de crises financeiras não seguem padrões normais de ciclos de negócios. Em 2008, eu e Kenneth Rogoff escrevemos que o processo de recuperação tenderia a ser modesto, em grande parte porque uma recessão causada pela crise financeira atingiu de modo importante o mercado imobiliário e a indústria da construção de um modo que o ciclo de negócios não faz. Num paper que escrevi com o meu marido, Vincent Reinhart, em 2010, analisando 15 graves crises bancárias depois da Segunda Guerra Mundial, o desemprego recuperou o nível anterior ao da crise apenas depois de dez anos. Na década seguinte a crises graves, as economias avançadas tiveram taxas de crescimento em média 1% a 1,5% mais baixo do que na década anterior à crise. Eu não estou surpresa com a profundidade, a extensão e a fraqueza da atividade econômica. Não é um cenário de recessão, mas nós estamos falando de crescimento abaixo da tendência.
Evitar o caráter pró-cíclico da política fiscal neste momento é algo de grande importância

Valor: A economia, então, vai demorar para retornar à tendência?

Reinhart: É exatamente isso o que estou falando. E a melhora na taxa do desemprego tem muito a ver com a queda na taxa de participação na força de trabalho, não porque ocorreu uma criação significativa de empregos. A taxa de participação está despencando. Eu sou uma das consultoras do Escritório de Orçamento do Congresso, e uma das últimas discussões que tivemos é quanto do desemprego se tornou estrutural. Se você olhar para os Estados Unidos, houve um aumento dramático da fatia das pessoas que recebem seguro por invalidez. Apenas uma pequena parcela dessas pessoas volta ao mercado de trabalho. Em relação à situação europeia, os EUA estão ainda em melhor forma, mas não é o caso de apostar que o crescimento americano vai voltar para o que era na década antes da crise.

Valor:Alguns economistas como Paul Krugman dizem que, se houvesse uma política fiscal diferente, o crescimento seria maior. O que a sra. acha dessa avaliação?

Reinhart: Eu não concordo com isso. Acho que ele está errado. Você não resolve um problema de dívida acrescentando mais dívida, que é exatamente o que ele está sugerindo. Uma das áreas em que nós atrasamos significativamente é a redução da dívida. E eu não me refiro apenas à questão fiscal, mas também ao setor privado.

Valor: Há muita desalavancagem a ser feita?

Reinhart: A desalavancagem perdeu fôlego. Nos EUA, as empresas não financeiras estão em boa forma. Não há um problema de endividamento, elas têm muita liquidez. No entanto, a dívida das famílias, que atingiu o pico mais alto em 2008, um pouco acima de 100% do PIB, caiu um pouco, ficando um pouco acima de 90%, e então parou. Em 1982, quando nós tivemos uma recessão muito grave nos EUA, mas uma recuperação realmente robusta, houve uma retomada forte do consumo das famílias, dos gastos de consumo com duráveis e não duráveis. Naquele período, a dívida das famílias era de cerca de 45% do PIB. As famílias continuam com um excesso de endividamento. Outra questão é que os preços de imóveis nos EUA se estabilizaram, em algumas áreas há sinais de melhoras, mas nós estamos muito abaixo dos picos atingidos em 2005 e 2006. O refinanciamento de hipotecas tem sido um processo lento e doloroso. O problema do balanço das famílias continua lá, e está limitando o crescimento. Quando você vê pesquisas que perguntam porque as empresas não estão investindo mais e empregando mais, isso tem a ver com a percepção de que a demanda final vai ser fraca. Isso afeta muito a recuperação. Estou descrevendo um cenário com a economia patinando, não de recessão ou de depressão, em que as taxas de crescimento ainda não estão próximas das médias de longo prazo.

Valor: A sra. acredita num crescimento na faixa de 1,5% a 2,5%?

Reinhart: Acho que a taxa de crescimento deve ficar na casa de 2%. Não acredito que a economia americana vai atingir 3% numa base sustentável.

Valor: Por que não é uma boa ideia tentar impulsionar o crescimento com estímulos fiscais de curto prazo?

Reinhart: Eu sou muito keynesiana, mas políticas keynesianas, pelo que eu entendo, têm a ver com ações contracíclicas. No auge da crise, em 2008 e 2009, quando se falava de estímulos fiscais, a minha tese era de que quanto mais estímulos, melhor. Aquele era o momento de ter um grande estímulo fiscal e monetário. Mas já se passaram alguns anos depois do auge da crise. Isso não é política contracíclica.

Valor: O que a sra. acha da política monetária americana, com os juros próximos de zero e o afrouxamento quantitativo?

Reinhart: Eu posso falar do ponto de vista dos EUA e também do ponto de vista do Brasil e outros mercados emergentes. Nos EUA, você pega o cenário que eu acabei de traçar. Um excesso de endividamento, não apenas público, mas privado; um crescimento que não é um desastre, mas é algo patinando; no mercado de trabalho, não há uma grande recuperação na criação de empregos e as pressões inflacionárias estão sob controle. Nesse ambiente, o Fed nos diz que eles querem manter por um período indefinido de tempo uma política em que os juros vão ficar nos atuais níveis.

Valor: Eles estão certos?

Reinhart: Acho que sim. Não sempre pelos motivos que eles dizem, deixe-me explicar. Quando há um excesso de endividamento, eles sempre terminam com transferências de poupadores para devedores. Juros reais negativos nos EUA são um imposto sobre os detentores de títulos. Eu tenho trabalhado no assunto da repressão financeira. Com a repressão financeira e juros reais negativos, o governo está liquidando a dívida. Juros reais negativos são um imposto sobre os detentores de títulos. Isso facilita o financiamento na escala atual.
 Se os preços de commodities não estivessem onde estão, como estariam as contas externas?

Valor: E quais as implicações para os mercados emergentes?

Reinhart: As implicações para os mercados emergentes são muito diferentes. Com juros nos países desenvolvidos mais ou menos onde estão, os problemas dos fluxos de capitais para os países emergentes vão continuar a ocorrer. As pessoas estão buscando rendimentos mais elevados.

Valor: O ministro da Fazenda, Guido Mantega, reclamou muitas vezes de guerra cambial. Ele está certo?

Reinhart: Claro que ele está reclamando. Do ponto de vista dos Estados Unidos, uma política monetária expansionista faz um sentido enorme. Mas para um país que cresce mais que os EUA e está com capacidade instalada mais elevada, a política monetária expansionista nos EUA significa que haverá fluxos de capitais e que a moeda tenderá a valorizar. Agora há também o Japão, que começou com uma política monetária muito mais agressiva para acabar com a deflação, o que faz sentido do ponto de vista deles.

Valor: O Banco do Japão vai ser bem-sucedido em sua tarefa de evitar a deflação?

Reinhart: Essa é uma questão em aberto. No passado, quando o iene começou a se desvalorizar com força, eles não perseguiram uma política monetária relaxada tão agressivamente como seria necessário para produzir inflação.

Valor: E a situação da Europa?

Reinhart: Não acho que já houve o fim da reestruturação das dívidas. A Espanha e a Irlanda têm grandes volumes de dívida bancária sênior, ainda carregadas a valor de face. Acho difícil ver uma normalização das economias desses países sem alguma baixa (write offs) dessas dívidas. Nem estamos entrando em questões de dívida soberana. A repressão financeira, que tem a ver com a criação de audiências cativas para a dívida, está voltando rapidamente. Há pouco tempo a Espanha aumentou a parcela que os fundos de pensão precisam ter de títulos do governo espanhol em suas carteiras.

Valor: Como países como o Brasil e outros emergentes devem reag
ir a essa política de juros baixos e grande liquidez criada pelo afrouxamento quantitativo?

Reinhart: Em 1993, escrevi um paper com Guillermo Calvo e Leonardo Leiderman sobre o problema dos fluxos de capitais. Ele basicamente diz que não há balas de prata. Quando você tem grandes fluxos de capitais, se você permite a valorização do câmbio, surgem problemas de competitividade, de conta corrente. Se você tenta lutar contra a valorização, por meio da intervenção, acumulando reservas, é algo que também é custoso. Primeiro, é improvável que você consiga esterilizar a intervenção completamente. Com isso, surge a questão de booms de crédito e de preços de ativos. Não há balas de prata. Acho que países, incluindo o Brasil, estão se movendo na direção de usar controles de capitais.

Valor: O Brasil adotou algumas medidas de controle de capitais, medidas macroprudenciais e acumulação de reservas para lidar com os fluxos de capitais.

Reinhart: Vamos chamar as coisas pelos seus nomes. Está na moda chamar de medidas macroprudenciais, mas elas são controle de capitais. É um modo de lidar com fluxos de capitais grandes e persistentes.

Valor: O Brasil deve tentar combater parte desses fluxos de capitais com controles de capitais?

Reinhart: Sim, eu acho. As sementes das crises aparecem em geral nos bons tempos. Uma coisa que me preocupa quando começo a ver governos começando a tratar choque favoráveis como permanentes. Isso se reflete nos gastos. Os aumentos dos gastos são totalmente pró-cíclicos agora. Evitar o caráter pró-cíclico da política fiscal neste momento é algo de grande importância. Nós vimos um aumento dos gastos fiscais, inicialmente um estímulo fiscal em resposta à crise, algo muito apropriado. A questão é que os gastos subiram, mas não recuaram novamente. Se você olhar a história, os preços de commodities podem ter períodos prolongados de alta, mas quando eles começam a cair, eles podem expor muitas vulnerabilidades tanto nas contas fiscais como nas contas externas. Esse é o motivo pelo qual eu insisto que essas vulnerabilidades iniciais precisam ser monitoradas. E, dado o que eu disse, que não acredito que os EUA, a Europa ou o Japão vão reverter em breve a política monetária, é necessário ver como lidar com os juros baixos no cenário internacional por um bom tempo. Quando você está importando a política monetária expansionista de outros países e não está distante do pleno emprego, há um risco de aquecimento excessivo, um risco inflacionário.

Valor: Como a sra. vê a situação brasileira?

Reinhart: Com eu disse, a expansão fiscal é uma das coisas que me preocupam sobre o Brasil, que o país comece a tratar alguns dos fluxos como permanentes. Isso é sempre algo perigoso. Nós temos agora um cenário internacional favorável não apenas em termos de juros, mas também de preços de commodities. Se os preços de commodities não estivessem onde estão, como estariam as contas fiscais e as contas externas? Em 2008, o Brasil e a América Latina foram capazes de enfrentar a crise com solidez. Em parte isso se deveu ao fato de que o Brasil e outros países da região, assim como na Ásia, tinham se desavalancado, tanto doméstica como externamente. O principal é que houve uma mudança de dívida externa para mais dívida doméstica. Isso ajudou muito, porque naquele período de turbulência, em 2008 e 2009, ninguém estava questionando a solvência do Brasil e do México, por exemplo. Os países estavam sendo duramente atingidos, com queda das exportações e a desvalorização das moedas, mas ninguém questionava a solvência. E, seis anos depois, o crédito doméstico tem crescido bastante rápido no Brasil, ainda mais rapidamente no Peru. Há aumentos significativos nos preços de imóveis.

Valor: A sra. está preocupada com o aumento do crédito e os preços de imóveis no Brasil?

Reinhart: É uma linha tênue entre o que é algo saudável e o que é aquecimento excessivo. O que eu estou dizendo é que eu não tinha dúvida em relação ao equilíbrio externo e interno que o Brasil e outros mercados emergentes tinham em 2008. Não é onde eles estão agora. É algo a ser monitorado. Não estou dizendo que há uma crise, mas é algo a ser monitorado.



Licenciamento ambiental avança, mas caminho é longo 

  Por Chico Santos

 

Em setembro de 2009 o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu fiscalização para avaliar o quanto o Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) estava preparado para conceder licenciamento ambiental a projetos econômicos com o rigor que o cuidado com a preservação dos recursos naturais para as futuras gerações exigia e com a celeridade que o desenvolvimento econômico e social demandava. Os auditores concluíram, entre outras coisas, que havia excesso de foco nos processos e "pouca atenção aos efeitos ambientais e sociais de um determinado empreendimento ou à efetividade das medidas mitigadoras adotadas".

Viram também dificuldade de acompanhamento das condicionantes às licenças, gerando acúmulo delas que atrasavam a concessão das licenças. Identificaram também falta de padronização dos processos que, somada a Estudos de Impactos Ambientais (EIAs) ruins, geravam decisões conservadoras por parte dos analistas ambientais, temerosos de serem responsabilizados judicialmente por danos futuros provocados pelo projeto analisado.

A essas constatações do TCU somava-se a percepção geral, inclusive dentro do próprio governo, de que a falta de coordenação entre o Ibama e outros órgãos envolvidos no processo de licenciamento, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da União (Iphan) era outro entrave de respeito. O licenciamento ambiental era visto como o grande gargalo, especialmente dos projetos de infraestrutura.

Quase quatro anos depois, há mudanças na realidade, reconhecidas por boa parte dos atores envolvidos nos processos. "O Ibama de hoje é significativamente melhor do que era há cinco anos", disse ao Valor um analista de um dos órgãos de controle e fiscalização dos processos - TCU, Ministério Público Federal (MPF) e Advocacia Geral da União (AGU) - federais de licenciamento, que preferiu não se identificar. O próprio TCU, ao fiscalizar o cumprimento das determinações e recomendações feitas em 2009, concluiu em 2011 que o órgão ambiental estava trabalhando para cumprir a maioria delas.

"O Ibama não é mais o gargalo de coisa nenhuma", afirma Gisela Forattini, diretora de licenciamento ambiental do órgão. Segundo ela, correm paralelamente processos de aperfeiçoamento tanto do aparelhamento técnico do Ibama como "das normativas que precisamos para trabalhar". Gisela cita entre essas a Portaria Interministerial 419, de outubro de 2011, definindo os papéis dos vários órgãos federais intervenientes nos processos de licenciamento.

Os números também dão suporte às palavras da diretora. Em 2003 o Ibama concedeu 138 licenças nos mais variados estágios, incluindo licença prévia, licença de instalação e licença de operação, com um efetivo de 130 técnicos na sede (Brasília). No ano passado foram 700 licenças, e nos três primeiros meses deste ano, 208, com um efetivo de 240 técnicos em Brasília e mais 160 nos núcleos regionais.

"Temos percebido alguns avanços, mas focados principalmente no Ibama. O Instituto passou a trabalhar nos últimos tempos de forma mais positiva, mais ativa. Isso tem sido muito importante para buscar a solução de conflitos que surgem na gestão socioambiental dos projetos de infraestrutura, conflitos esses que se agravam, principalmente em empreendimentos de energia elétrica e de ferrovias nas regiões Norte e Centro-Oeste", diz Paulo Godoy, presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).

Para Godoy, mesmo com medidas como a Portaria 419, que estabelece prazo de 90 dias no caso de Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), para manifestações conclusivas dos órgãos envolvidos no licenciamento além do Ibama, "ainda há problemas em outras instituições que fazem parte do licenciamento ambiental, mas que não são especializadas nesse assunto".

A diretora Gisele, do Ibama, afirma que hoje o calcanhar de Aquiles está na má qualidade de muitos EIAs, que frequentemente são executados por consultorias desaparelhadas para fazê-los. Grandes empresas, como a Petrobras e a Vale, já perceberam isso e montaram estruturas para cuidar da questão ambiental. Um EIA bem feito, segundo ela, acelera muito o prazo de licenciamento. Nesse aspecto da qualidade dos estudos ela conta com a aliança do MPF, um dos elos da cadeia que têm sido vistos como obstáculo à livre fluidez dos processos de licenciamento. "Levantamos questões e informações de que há falhas muito graves no que diz respeito à produção de EIAs", disse o procurador da República João Akira, que coordena desde 2002 o Grupo de Trabalho de Licenciamento de Grandes Empreendimentos do MPF.

Segundo ele, "quando muito", uma parte expressiva dos estudos consegue levantar dados do impacto "biótico" (referentes aos recursos naturais), deixando de lado os impactos "antrópicos" (socioambientais), sendo que estes causam "profundas alterações" nas áreas de instalação de grandes projetos.

Para Akira, cabe aos órgãos do Estado devolver os estudos ruins aos seus autores para que eles sofram as consequências. Ele também tem críticas à Portaria 419. Considera que o estabelecimento de prazos sem que os órgãos, como a Funai, tenham estrutura para cumpri-los adequadamente está errado e fará com que o licenciamento acabe parando na Justiça.

Para o professor de Direito Ambiental da PUC-Rio Fernando Walcacer, "o EIA não pode ser visto como um obstáculo ao empreendedor" e por isso mesmo "precisa ser bem feito". Ele considera o licenciamento ambiental "uma das instituições mais importantes da Política Nacional de Meio Ambiente, criada em 1981, por contemplar o "princípio da prevenção do dano", para ele, uma das figuras mais caras ao Direito Ambiental. "Até porque reparar [o dano] muitas vezes é impossível", pondera.

Para o economista Ronaldo Seroa da Motta, ex-coordenador de Estudos Ambientais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o licenciamento é a forma mais simples de corrigir o risco (ambiental) na origem. Na sua opinião, partindo do Termo de Referência (os parâmetros para o licenciamento de um projeto) estabelecido pelo órgão licenciador, esse risco já está relativamente precificado para a indústria onde o impacto é pontual e as tecnologias mitigadoras são conhecidas na maioria dos casos.

O problema, segundo ele, está na área de infraestrutura onde não existe nada pontual e tudo é muito complexo. "Eu vou perder ambiente para oferecer um serviço. Posso compensar? Posso, mas como definir a compensação ideal?", questiona, recolocando a problemática da grande quantidade de órgãos envolvidos no processo de licenciamento.

Para o ex-ministro do Meio Ambiente Carlos Minc (2008-2010), atual secretário do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro, para resolver o problema da diversidade de órgãos no plano federal "é essencial que seja criada uma coordenação geral que comande o trabalho de órgãos tão diversos como o Ibama, a Funai, o Iphan e a Fundação Palmares" (cuida de comunidades quilombolas).

Minc considera ainda essencial que o ministro do Meio Ambiente tenha força política para dizer não a projetos que considere inviáveis ambientalmente, lembrando que ele teve que enfrentar outros ministros para barrar a construção de termelétricas a carvão, o asfaltamento da BR-319, na Amazônia, e o plantio de cana no Pantanal. "É falso o antagonismo entre crescimento e preservação. Mas é preciso [para quem cuida das questões ambientais] ter força política", diz. No Rio, ele conseguiu reunir três antigos órgãos ambientais em um só, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea).