quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A Batalha das Biografias - Trocando em miúdos

O GLOBO 17/10/2013

Citados por Chico Buarque em seu artigo ontem no Segundo Caderno, Paulo Cesar de Araújo, autor de "Roberto Carlos em detalhes", Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e Mário Magalhães, biógrafo de Carlos Marighella, contestam as afirmações do compositor

De seu amável interrogador - Paulo Cesar de Araújo 

Foi com grande espanto que li, ontem, declaração de Chico Buarque aqui no GLOBO, afirmando que jamais me deu uma entrevista. Ou seja, ele alega que eu teria faltado com a verdade ao incluí-lo entre as fontes listadas na biografia "Roberto Carlos em detalhes" Ocorre que Chico Buarque foi, sim, uma das 175 pessoas que entrevistei para a pesquisa que resultou naquele livro. O artista certamente se esqueceu, mas ele me recebeu em sua casa, na Gávea, na tarde de 30 de março de 1992. E esta entrevista, com duração de quatro horas, foi gravada, filmada e fotografada. Falamos muito sobre  censura, interrogatórios — creio que por isso ele escreveu, junto com o autógrafo que me deu na capa do disco "Construção": "Para o Paulo, meu amável interrogador, com um abraço do Chico Buarque. Rio, março/92."

Naquela entrevista, Chico me falou sobre as principais fases e canções de sua carreira. Uma de minhas perguntas foi sobre sua relação com Roberto Carlos nos anos 60, quando ambos representa-vam poios opostos na nossa música popular — suas frases estão reproduzidas na página 184 da biografia que escrevi.

No seu artigo de ontem o cantor também negou uma declaração dele que reproduzo no meu livro anterior, "Eu não sou cachorro, não" No livro eu cito a fonte: "Última Hora-SP" 28/06/1970 — mesmo jornal para o qual, em 1974, o próprio Chico daria uma famosa entrevista, sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Esta entrevista está no seu site. Resumindo: no seu artigo de ontem, Chico dá a entender que o jornal era desprezível, mas ele falava, sim, com seus repórteres. Pois bem. Ele disse ontem ser impossível ter "criticado Caetano e Gil, então no exílio, por denegrirem a imagem do país no exterior" Ocorre que a crítica registrada na "Última Hora" não tinha este viés nacionalista. O que ele criticava era o fato de os baianos usarem a condição de exilados para sensibilizar os ingleses e fazer sucesso: "Nos cartazes de publicidade que eles mandaram imprimir, consta que foram banidos do país. Isso é ridículo, querer vencer pela pena."

Registre-se que na época Chico andava mesmo afastado de Gil e Caetano por conta de rusgas desde a eclosão do tropicalismo — o que Chico confirmou ao "Pasquim" em 1970. Trecho: "Eu perdi o contato com eles, perdi a amizade deles. Então eu não entendo mais se o Caetano é o mesmo que eu conheci" Nesse mesmo papo com o "Pasquim" Chico se mostrou também desconfiado da gravação de "Carolina" feita por Caetano. "Eu ouvi o disco uma vez só e confesso que não gostei e não quis ouvir mais porque é um problema em que eu não estava a fim de ficar pensando: será que ele gravou de boa-fé ou de má-fé?" Portanto, neste contexto, acho bastante possível ele ter feito também aquela declaração sobre os baianos na "Última Hora" Por isso, incluí sua declaração no livro. Faz parte do meu ofício de historiador.

Paulo Cesar de Araújo é historiador e escritor


Um editor de biografias - LUIZ SCHWARCZ

Falei recentemente com o Chico Buarque sobre o assunto das biografias mais de uma vez. Como ele agora escreveu publicamente, utilizando-se de exemplos sensíveis à história da Companhia das Letras, “condenada” a pagar uma larga soma de indenização à família de Garrincha, preciso vir a público esclarecer minha posição e contar, pela primeira vez, minha versão de toda esta história.

Quando o livro Estrela solitária estava para ser publicado, uma matéria foi veiculada no Fantástico chamando atenção para o livro. As filhas do Garrincha, que não haviam se manifestado até então, me procuraram, através de um advogado, e, sem ler uma página sequer do livro, demandaram pagamento de direitos e ameaçaram com um pedido de indenização.

O representante da família, a essas alturas, não falava em “imagem denegrida”, mas em “ajudar o Natal das meninas”. Como não aceitamos nenhum acordo — por julgarmos que a biografia enaltecia o jogador como o melhor de todos os tempos e tratava do alcoolismo, conhecido por todos, de maneira absolutamente ética –, seguimos em frente com a publicação. A partir daí fomos processados, com a família exigindo, ao mesmo tempo, o pagamento de direitos autorais — como se a vida de um antepassado pertencesse a seus herdeiros — e reclamando da imagem do jogador supostamente denegrida pelo livro, de cujos rendimentos gostariam de participar.

A partir daí, uma longa e custosa história se instaurou e, em segunda instância, Estrela solitária foi retirado de circulação, sem que todas as etapas do julgamento estivessem concluídas — situação que só a nossa lei permite. Assim como permite que um juiz ameace “quebrar” uma editora, ao ter amplos poderes para arbitrar a indenização. A biografia de Garrincha só voltou a circular mediante um volumoso acordo, e sem nenhuma condenação. Com o pagamento realizado, nem a capa ou muito menos o conteúdo voltou a preocupar as herdeiras. O fato é que a atual lei brasileira permite, singularmente, que se instaure um balcão de negócios, arbitrariedades e malversações.

Sei que Chico discorda da capa que escolhi pessoalmente para o livro do Ruy Castro. Estrela solitária termina com o triste fim do jogador, isolado e alcoólatra. Julguei que não devia, como editor, publicar um livro com tal força dramática colocando Garrincha com as mãos erguidas junto às pombas da Praça de Milão, foto que, aliás, teria sido a escolhida pelo autor. Aceito o julgamento público, confiante  de que segui critérios editoriais corretos. O oposto significaria fugir da história para proteger a imagem de um ídolo nacional.

Pela lei vigente, os herdeiros se transformam em historiadores, editores e, desculpe-me, censores, sim. A foto que utilizamos foi retirada de arquivos públicos e, se não me falha a memória, havia sido previamente publicada em jornal. Existia uma muito pior para o Garrincha, capa de um jornal  importante, com o ídolo desfilando no Carnaval, em carro alegórico, completamente entregue ao álcool. A família na época permitiu o desfile e a aparição do jogador na avenida. De quem é a culpa, então?

Quem ajuda a moldar a vida e a cultura de um país, seja no futebol, na música ou na política, tem, desde sempre, menor controle de sua vida pública. Sempre foi assim, de Cleópatra a Maria Callas, passando por Getúlio Vargas e pelos ídolos do iê-iê-iê. A defesa da privacidade no mundo contemporâneo deveria nos unir, mas o custo que a lei brasileira cobra é inaceitável, é muito pior.

Espero que um dia escritor e editor se juntem na defesa das duas causas: a da liberdade de expressão necessária para a nossa profissão, e a da privacidade possível no mundo atual. O “Procure saber” escolheu o vilão errado e ofendeu os profissionais do livro ao defender a permissão apenas da publicação gratuita dos livros pela internet, apresentando editores e escritores como argentários e pilantras profissionais. Além do Chico Buarque, Gil e Caetano foram publicados com muita honra pela Companhia das Letras e me conhecem bem.

Agora, que o pagamento à família de Garrincha justificado pela fragilidade das leis brasileiras de defesa da liberdade de expressão foi indevido, sem dúvida nenhuma foi. E que divergências não abalam amizades como as que tenho com Chico Buarque e Caetano Veloso, é certeza e nunca esteve em discussão.

* * * * *

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.

 Meu caro Chico - MÁRIO MAGALHÃES

Caríssimo Chico Buarque, eis o artigo do Código Civil que o grupo Procure Saber, ao qual você pertence, batalha para eternizar:


“Salvo se autorizadas [...], a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Quando você lançou a obra-prima “Apesar de você”, o ditador Médici presidia o Brasil. Era um tempo em que agentes públicos torturavam milhares de pessoas. Hoje, para biografar o general, só com autorização dos herdeiros. Dá para pensar no rame-rame laudatório que eles exigiriam?

A legislação em vigor permite que Fernando Collor barre uma biografia não autorizada, em nome de sua “boa fama”. Idem o juiz Lalau e o torturador Brilhante Ustra. É assim porque a lei vale para todos, artistas ou não. Pense bem: a prerrogativa de contar a história passou ao coronel Ustra.

No seu elegante artigo “Penso eu”, generoso com meu livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”, você menciona, sem título, uma biografia do Cabo Anselmo. Conheço três obras focadas no infiltrado que entregou a mulher grávida para repressores da ditadura a matarem (ela se chamava Soledad, e não Consuelo; todos tropeçamos, não somente os biógrafos).

As de 1984 e 99, com depoimentos mentirosos do covarde, assemelham-se a autobiografias.  A de 81 é um breve perfil independente. A tragédia: publicado ainda durante a ditadura, este livro poderia ser proibido hoje, na democracia, amparado no Código Civil de 2002. A norma obscurantista transfere a Anselmo o poder de definir o conteúdo de uma biografia.

Concordo: é inaceitável a impunidade de biógrafo leviano ou criminoso que difunda informação “infamante ou mentirosa”. Mas a decisão tem de ser da Justiça, e não de censura prévia. Se o Judiciário é lento e a lei dócil com difamadores, aperfeiçoemos ambos. Somos contra o indulto de Natal porque, entre milhares de presos, meia dúzia foge? Crimes pontuais não devem abolir direitos coletivos. O conhecimento da história consagra-se como direito humano. Roberto Carlos é, sim, dono da vida dele. Mas não é dono da história.
Biografias são reportagens, que constituem gênero do jornalismo. Pagar royalties a personagens descaracteriza biografias não autorizadas _você propõe mesmo dar uns caraminguás aos netos do Médici?

Se defende que as filhas do Garrincha recebam pelo trabalho árduo do biógrafo, já pensou em remunerá-las, por ter citado o Mané junto com Pelé, Didi, Pagão e Canhoteiro? “O futebol”, sua música, não tem também “fins comerciais”? A imprensa de “fins comerciais” publica perfis. E se o Sarney e o Bolsonaro resolverem cobrar? Devemos reeditar a censura de outrora ou persistir no bom combate a ela?
Chico, perdoe o tom. Você merece interlocutores do “tempo da delicadeza” evocado em “Todo o sentimento”. Aceite um abraço e o carinho deste fã irrevogável.

 Mário Magalhães é jornalista e biógrafo

Nem na ditadura...

O Globo - 17/10/2013

DIEGO WERNECK ARGUELHES E
IVAR A. HARTMANN


Nem mesmo naquela época se ousou restringir a tal ponto a liberdade de expressão cultural

Reunidos na organização Procure Saber,
importantes nomes da nossa música
defendem que se continue a proibir biografias
não autorizadas. Hoje, a proibição
resulta de uma interpretação precária do
art. 20 do Código Civil. Um dos argumentos desses
músicos é que não se pode permitir que
apenas o autor tire vantagem financeira da biografia.
Ou ambos lucram, ou o autor não pode
comercializar a obra. Mas essa interpretação da
lei traz risco enorme à cultura brasileira. Mais
diretamente, aliás, afetaria os próprios músicos
que a defendem.

O artigo 20 fala de “escritos”, mas não só. Inclui
“transmissão da palavra”, “publicação”, “exposição”
e “utilização da imagem”. Se o Código proíbe
alguma coisa, essa proibição não se aplica somente
a biografias. Um discurso — a transmissão da
palavra ao vivo. Uma matéria de jornal — publicação.
Uma homenagem a alguém — utilização da
imagem. Quem invoca o art.20 precisaria também
estar disposto a aplicá-lo aos muitos outros tipos
de expressão que ele abrange.

Músicas gravadas e tornadas públicas por meio
físico ou virtual preenchem todos os requisitos do
artigo 20. São “transmissão da palavra”. São “publicações”.
Mais ainda, músicas sobre pessoas reais
e específicas são uma exposição da pessoa e
utilizam sua imagem. Com “Fio Maravilha”, por
exemplo, Jorge Ben Jor expôs e divulgou (e imortalizou)
o jogador do Flamengo. E o próprio Caetano
construiu o cenário de sua “Sampa” com as
imagens de outros artistas de carne e osso, como
Rita Lee e os Novos Baianos.

Para a Procure Saber, não seria justo que “só os
biógrafos e seus editores lucrem com isso e nunca
o biografado ou seus herdeiros”. Para evitar essa
injustiça, portanto, deveríamos exigir sempre a
autorização prévia da pessoa retratada naquela
expressão artística, cultural, literária ou musical.
Ou de seus herdeiros. Mas onde isso nos levaria se
o artigo 20 fosse aplicado de forma coerente a todas
as formas de expressão? Caso sua mãe já houvesse
falecido quando compôs a tocante “Lady
Laura”, Roberto Carlos precisaria pedir autorização
de seus irmãos. A “Sampa” de Caetano só poderia
ser povoada por personagens que consentissem
em ser retratados.

No auge da ditadura militar, nos anos 70, Jorge
Ben Jor sofreu um processo judicial por não ter
pedido autorização do jogador Fio Maravilha
antes de lançar a sua famosa música. O pedido
foi rechaçado. Nem mesmo naquela época se
ousou restringir a tal ponto a liberdade de expressão
cultural.

Pelo que exigem agora alguns músicos brasileiros,
deveríamos ter obrigado Raul Seixas a
conseguir autorização dos herdeiros de Al Capone.
Ou exigido que o grupo Los Hermanos fizesse
primeiro um contrato de partilha do lucro
dos direitos autorais com a estudante retratada
em “Anna Julia”. E o que dizer da música “Clint
Eastwood”, do grupo Gorillaz? Seria necessária
a autorização do ator americano para divulgar a
música no Brasil?

Os músicos do Procure Saber deixaram claro
que, pelo artigo 20, opõem-se a manifestações
culturais não autorizadas apenas quando são
comercializadas. Se divulgadas gratuitamente,
não haveria problema. Mas a proibição do artigo
20 é mais insaciável do que pensam. Ela não
tem fundo. Estariam dispostos a abrir mão dos
direitos autorais de todas as suas músicas que
envolvam a imagem de uma pessoa real?