sábado, 20 de abril de 2013

A ARTE DE EDITAR ARTE

UM EDITOR E A ARTE DE ANDAR NA CONTRA MÃO DO MERCADO



Quando não era hábito publicar monografias de artistas, Charles Cosac editou há 16 anos um livro de Tunga; hoje, na era digital, ele vai criar um selo para lançar edições exclusivas destinadas a leitores e colecionadores exigentes

O Estado de S.Paulo - 20/04/2013

ANTONIO GONÇALVES FILHO
MARIA FERNANDA RODRIGUES

Em junho de 1997, o mercado viu chegar às livrarias um volume inusual com mais de dez tipos de papel e duas centenas de ilustrações. Não era exatamente a espécie de livro de arte que circulava entre os leitores brasileiros. Compreensível. Nem o artista que assinava o livro Barroco de Lírios, Tunga, nem seu editor, Charles Cosac, eram tipos convencionais. Tunga, um dos vetores da arte contemporânea brasileira, trabalha com chumbo e materiais corrosivos em suas obras. Charles está longe de ser um editor burocrático. Colecionador de arte, sua editora, criada para publicar livros da área, viria a se tornar uma referência ao lançar monografias de outros artistas contemporâneos, sozinha ou em parceria com instituições como a Bienal de São Paulo. Foi a primeira editora latino-americana a coeditar um título com o Museu de Arte Moderna de Nova York (o catálogo da exposição Tangled Alphabets, deMira Schendel e Leon Ferrari).

Em seus 16 anos de existência, a editora passou 15 deles no vermelho, inicialmente bancando livros de arte sem o amparo de leis de incentivos. Michael Naify, o sócio americano e cunhado de Charles Cosac, socorreu financeiramente a editora que, ao enveredar por outras áreas – literatura, antropologia, filosofia, arquitetura, moda, cinema –, obteve melhores resultados financeiros. Isso permitiu a expansão do catálogo e a publicação de livros infantojuvenis de temas complexos – foi a primeira editora a lançar um livro gay para crianças, Meu Amigo Jim. Caracterizada pela ousadia de seus projetos gráficos, a Cosac Naify já recebeu mais de 50 prêmios nacionais e internacionais, tendo no catálogo ficcionistas como Enrique Vila-Matas e ensaístas como Arthur Danto. Charles Cosac recebeu a reportagem do Sabático para conversar sobre o passado e os planos da editora.

Por que Tunga foi escolhido o primeiro autor da editora e como era manter um negócio então voltado exclusivamente para a edição de livros de arte?

Voltei da Inglaterra com a ideia de abrir uma editora e sabia que ela só iria crescer no momento em que eu sentisse alguma segurança. Estava havia muitos anos fora, tive de reaprender o Brasil. Não conhecia São Paulo, não conhecia ninguém aqui. Existia também o entusiasmo do início, eu tinha 32, 33 anos. Tunga e sua obra são muito importantes para mim, pautando, de certa forma, o início e o aniversário de 10 anos da editora – quando fizemos a caixa Tunga. Ele é da casa. Consegui ao longo desses anos reunir um grupo fiel de artistas. Já vamos para o quarto livro do Tunga e do Arthur Omar, o quinto do Miguel Rio Branco e do Waltercio Caldas. É como se fosse uma galeria com a qual você tem uma relação não tão pontual. Apesar das dificuldades, é muito gratificante saber que vivo agora o terceiro ciclo da editora com os mesmos artistas com os quais comecei 15, 16 anos atrás.

No início sua ideia era publicar monografias de artistas ou foi uma consequência? 

Eu tinha muito contato com a Yale University Press, e ela abriu portas para mim. Licenciei vários livros da Yale quando John Nicoll estava lá. Como minha editora era pequenininha, era difícil quebrar nichos – e eu precisava de muitas cartas de referência e de crédito. Nicoll me ajudou muito, abrindo portas, inclusive em gráficas no exterior, mas sobretudo na relação com outras editoras. Depois vieram os livros da Tate Publishing. O primeiro livro que comprei de Nicoll foi Arte na América Latina, de Dawn Ades. Ao voltar ao Brasil, conheci Arthur Omar e fiz Antropologia da Face Gloriosa, depois do livro do Tunga. Enfim, ela começou como uma editora de história e teoria da arte. Começou assim porque eu me sentia seguro nesse campo. E, depois, não havia editora disposta a fazer os livros deles.

Antes de abrir a editora, você criou uma coleção de arte latina na Universidade de Essex, que depois virou um museu. Você tinha planos de trabalhar com museus antes de chegar ao Brasil?

Não. No momento em que saí da Inglaterra, eu já tinha aberto mão de todos os meus sonhos. Já sabia que não seria acadêmico, porque não tinha disciplina e temperamento para aquilo, e que não conseguiria trabalho em museu, porque sou brasileiro e não tinha visto de trabalho. Mas eu também queria muito desenvolver um projeto no Brasil.

Quando a Cosac Naify foi inaugurada, já existiam incentivos fiscais para publicação de livros, mas você se recusava a publicar um livro pela Lei Rouanet. Qual a razão?

Eu não diria que me nego, masmantenho o mesmo ponto de vista. Consegui estudar sem o CNPQ ou a Capes e não queria ficar dependente da Lei Rouanet, que é linda e maravilhosa, mas pode arquivar muitos projetos, como a Lei Sarney o fez. Eu não podia abrir uma editora alicerçada numa lei de incentivo à cultura. Tínhamos um capital para investir em livro. Nos casos dos livros da editora que foram patrocinados, eu fui procurado. Eu não procurei. São sempre as mesmas pessoas que ganham. E é um nicho que contamina. São duas tabelas – a do design para o livro patrocinado e a do livro não patrocinado. É uma coisa meio engessada: eles dão o dinheiro e impõem o título. E é muito difícil que combine, ou seja, que eu também queira fazer o livro. Eu não teria paciência de me aproximar de gerentes de marketing e donos de banco para conseguir patrocínio. Mas, paralelas às leis de incentivo à cultura, existem parcerias, as coedições, mais frutíferas.



● Saindo do apoio à edição e indo para a compra de livro. As compras governamentais são importantes no faturamento da editora?

Muito. Não saberia dizer em porcentual, mas o Brasil é o país que mais compra livros e isso tem atraído várias editoras estrangeiras. Essa é uma atividade que me incomoda menos porque existe a licitação. Mandamos o livro e eles escolhem, se gostarem. Você não se sente envolvido pessoalmente. É dinheiro público. Se eu perder dinheiro meu, perdi. Mas, se perder um que não é meu, é mais delicado.

● Quem era seu modelo de editor quando abriu a editora? Como convenceu seu cunhado Michael Naify a entrar na sociedade?

Meu ídolo é o inglês George Braziller, o editor que eu queria ter sido. Ele tinha uma visão extraordinária, competente, ousada e particular. Michael era um grande amigo que conheci em Londres. Só depois ele se casou com a minha irmã. Ele me ajudou muito financeiramente – agora não precisa mais. No início houve um envolvimento dos três: meu, do Michael e da Simone. Eles moravam em Florença e Simone participou dos primeiros anos, acompanhando a impressão, que era feita na Itália. No começo, teve um sabor familiar. Michael e Simone sugeriam livros infantis. A Árvore Generosa, de Shel Silverstein, era o livro favorito dele. Mas era uma coisa muito voltada para o nosso conhecimento pessoal, sem ter uma visão panorâmica e mais organizada do que seria o prelo editorial. Depois do quarto ano minha irmã começou a perder o interesse e eles foram se afastando.

● E como está a situação hoje?

As coisas não estão maravilhosas, mas estão bem. Depois de quatro, cinco anos, me vi sozinho com a editora. Nesses anos todos, quando precisei principalmente de ajuda monetária, foi a Michael a quem recorri. Ele sempre foi solícito em nos atender.

● Michael e Simone ainda são seus sócios?

Sim. A Cosac Naify pertence, desde o início, a uma editora americana. Quando se faz aporte de capital, ele vem oficialmente pelo Banco Central. O fato de ela não gerar lucro e não ter um fim lucrativo não muda o status dela: é capital estrangeiro. O papel dessa editora é, simplesmente, emitir verba. A questão é que você deve satisfação ao governo americano e no 15.º ano deficitário fomos auditados. Queriam saber para onde tinha ido todo aquele dinheiro que não gerou lucro nenhum em tantos anos. Suspeitas foram levantadas. Não fiquei mal porque sabia a verdade, mas foi um trabalho burocrático enorme provar que não éramos lucrativos e não estávamos escondendo lucro nenhum. A boa vontade do Michael e a minha de ter mantido a editora deficitária por 15 anos nem eu nem Michael sabemos explicar.

A editora, hoje, é autossustentável?

O ano de 2012 foi o primeiro que não fizemos nenhum aporte e que a editora terminou no azul. Claro que isso não contempla o passado, mas olhar o passado não é a solução. A partir de um certo momento tive de começar a pensar o futuro da editora. Foi quando a diretoria se uniu para que a editora se tornasse autossustentável.

● A entrada de livros de literatura no catálogo da editora foi uma tentativa de sanear a saúde econômica?

A Cosac Naify começou como uma editora de arte por eu ter essa limitação. Mesmo antes da era Augusto Massi, que começou em 2001, eu já tinha convidado Ismail Xavier para desenvolver uma série de cinema e teatro no fim dos anos 1990. Nessa ocasião, Rodrigo Lacerda desenvolveu a série de João Antonio. Mas a mudança determinante foi a chegada de Augusto – ele ficou na editora por dez anos.

● Qual é o livro mais vendido da editora?

Do catálogo adulto é Clarice, de Benjamin Moser. O segundo, vocês vão desmaiar: é o Histórias Fantásticas, de Bioy Casares. Eu nunca diria que esse é o segundo livro que mais vende – e olha que eu fundei a editora. Entre os infantis, de um a dez é o Capitão Cueca. E A Árvore Generosa é um livro que é sempre, sempre reimpresso.

Você já disse que tem vergonha do Capitão Cueca. Por que, se as crianças gostam tanto?

Porque não gosto. Eu não teria feito esse livro. Quem indicou o Capitão Cueca foi a minha irmã. Tenho de dizer que a série ajudou muito monetariamente nestes anos todos, mas foi uma coisa entre irmãos. Se eu dissesse não, estaria dizendo não para ela e não para o livro. O Capitão Cueca entrou de gaiato na editora. Nessa ocasião, estávamos negociando esse, a série Clifford e Harry Potter. Não saberia dizer qual é pior.

● Você tem algum arrependimento editorial?

Choro lágrimas de crocodilo por não ter comprado a obra do Lezama Lima. Ele esteve aí o tempo todo e ninguém olhava. Mas insisto que não há nenhuma perda significativa, porque a bibliografia ainda é deficiente.
É difícil chorar o leite derramado de um leite que não existiu. Não somos uma editora best-seller. Nunca vamos dizer que, se tivéssemos escolhido determinado título, teríamos feito bastante dinheiro. Ocorre um movimento contrário. Quando voltei ao Brasil, conheci a obra do arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Três editoras tentaram tirar o livro de mim e eu falei: vocês estão aqui há milhões de anos e não viram. Foi meu olhar estrangeiro que me permitiu ver aquilo que quem estava aqui não via. E este foi também o primeiro título que vendi. Uma editora estrangeira vir e comprar um livro nosso é melhor do que qualquer prêmio. É aí que acontece o intercâmbio cultural que eu busco.

● A Cosac Naify também faz livros bilíngues.

Isso é um problema, pois não conseguimos distribuir. No início eu vendia para uma distribuidora que ficava em Nova York, mas não estava feliz. Nunca pensei no mercado fora do País. Já é complicado vender para a Bahia, por que vou tentar a Espanha? Eu preferiria vender no Brasil inteiro. Já fiz milhões de livros bilíngues e isso não gerou fruto positivo nenhum.

Com o custo dos direitos das fotografias e os livros de arte dependendo às vezes da boa vontade dos herdeiros de artistas, deve ser difícil publicar uma obra desse segmento no Brasil. Como a Cosac Naify tem conseguido editar esses livros? 

Nestes 15 anos, o que mais cresceu foram os bancos de imagem. Para fazer um livro de moda, você precisa da autorização da modelo, que já perdeu a silhueta, do fotógrafo, dos mil fotógrafos que estavam no desfile. Isso criou um novo departamento de direitos autorais, que gera muito papel. Em contrapartida, também fomos testemunhas de uma evolução tecnológica impressionante. As gráficas evoluíram muito, o livro ficou mais barato e espero acreditar que uma coisa compensou a outra. Hoje, fazer um livro não é tão caro como era há 10, 20 anos, graças aos recursos tecnológicos.

● Você ainda imprime na Itália? Imprime também na China e na Índia?

Imprimimos aqui, em vários polos gráficos de São Paulo, que sempre foram bons, mas que têm um velho problema: são muito mais caros. A segunda opção é Singapura ou China. Como estamos trabalhando com um prelo mais adiantado, podemos fazer isso. Não somos os únicos. E é claro que isso afeta o mercado gráfico local. Existe o temor de que um dia façam sanções que não nos permitam mais imprimir na China.

Algumas editoras estão criando selos para diversificar o catálogo com obras comerciais e disputar as listas de mais vendidos. A Cosac Naify tem planos nessa direção?

Coincidentemente, abrimos uma nova razão social com uma ideia contrária a isso. Com essa questão do livro eletrônico, tenho de encontrar um nicho para mim e minhas atividades. Não que eu ache que o livro de arte vá morrer, mas queria fazer edições ex-libris sem o compromisso de publicar uma quantidade determinada por ano.

Com o e-book ganhando importância no mercado de literatura comercial, as edições mais caprichadas podem ser um futuro para o livro impresso? O que pensa sobre o e-book?

Essas edições caprichadas sempre existiram, mas é indiscutível que com a digitalização o livro está se coisificando. As editoras têm de se esmerar – não para vender mais, mas para que o livro não morra. Quanto ao e-book, eu não tenho interesse nenhum no assunto, mas a editora está pensando nisso.

Você é mais ligado em artes visuais do que em literatura. Mas a Cosac Naify tem lançado bons jovens autores. O que você leu recentemente que mais chamou sua atenção?

O Valter Hugo Mãe é um amor de pessoa, mas acho que gostei mais dele do que dos seus livros. Adorei José Donoso. Tive muita dificuldade com a leitura de Angélica Freitas. Não sei se é antiético falar a verdade sobre os livros de minha editora, mas quero dizer que nem tudo o que é feito nela eu amo. A vinda da Heloísa Jahn e da Marta Garcia, editoras seniores com contatos, pode ajudar. Heloísa vai cuidar da nova série de poesia brasileira contemporânea, uma iniciativa dela. Marta vai trazer novos autores. E tem o lado que me interessa mais que são os livros paradidáticos. Fizemos Luto e Melancolia do Freud e fiquei fascinado. Por causa dele estamos publicando O Avesso do Imaginário – Arte e Psicanálise, de Tania Rivera, do qual gostei muito.

● A editora publicou alguns livros de artista,entre eles Ethers, de Tunga, e algumas edições especiais para colecionadores. Esse é um segmento que poderá ser ampliado? 

Sim. Para isso estamos criando um novo selo que ainda não tem nome. Gostaria que fosse um nome russo, algo como Dom Knigi (Casa dos Livros), que é uma livraria que eu adoro em São Petersburgo, na Nevsky Prospekt. Vivi lá e gostaria de carregar algo da Rússia comigo. Além disso, sempre achei que uma editora tem de ter “casa” no nome. Acho lindo “casa editorial”. Também pensei em colocar o nome de meu bisavô, Felipe Salomão.

● Como é que você decide que um livro tem vocação para ser publicado em edição normal ou de colecionador?

O pessoal da produção na editora fica louco comigo quando chego lá com alguma ideia de livro especial, como o de Sérvulo Esmeraldo, que tinha ampolas de água, terra. Depois, eles acabam se entusiasmando. Há cinco anos descobri por meio de um amigo a obra da pintora Eleonore Koch, cujo livro sai agora em maio. Quando vi pela primeira vez uma tela sua, me deu um frio na espinha. O livro de Lore Koch estava com outra editora e não entraria jamais em concorrência para ter o direito de publicá-lo. Felizmente, o advogado da artista me procurou oferecendo o título.

● Como imagina a Cosac Naify em 10 anos?

Quando abri, meu cunhado irmão me falava que eu devia saber onde iria querer estar em 2, 4, 5 anos e eu falava “Nossa Senhora!”. Quando eu tinha 5 anos, pensava 30 anos à frente. Aos 50, que é quase a minha idade, você pensa 10 minutos adiante. Mas como a editora não sou eu – são 80 pessoas comigo e um público leitor crescente –, tenho criado dispositivos para que ela coexista. Tenho uma mentalidade parlamentarista. A editora tem hoje uma diretoria, que se reúne a cada 15 dias. Os assuntos são discutidos, a ata é feita, metas são atribuídas e depois de 15 dias conversamos de novo. Esse método tem funcionado muito bem, mas não porque tira a responsabilidade das minhas mãos – a responsabilidade legal é só minha. É um trabalho de equipe. Neste momento da editora, o que é muito gratificante para mim é ver meninos e meninas de 20, 25 anos bem mais preparados do que eu era. Sempre achei que os jovem tivessem razão – essa frase é da Maria Martins e ela estava certa. Um dia vou morrer e não quero que ela seja enterrada comigo. A editora foi repensada e enxugada. Havia mais de 400 títulos comprados. Muitos deles foram reciclados; outros, vendidos ou devolvidos. A gente não apagou o passado. Tentamos reciclar o melhor dele para tentar ter uma frequência em arquitetura, literatura internacional, literatura contemporânea brasileira e estrangeira, artes visuais, ensaios.

● Qual foi o momento mais crítico da editora?

Abri a editora porque eu quis, ninguém me pediu, minha família não tem tradição editorial. Me sinto um homem realizado. Dos meus colegas de escola, fui um dos poucos que fazem o que gosta de fazer. Sou feliz, faria tudo de novo. Os momentos mais críticos foram quando Rodrigo Lacerda e Augusto Massi saíram da editora. Eram pessoas com uma visão muito paternalista. Eu não os via só como uma pessoa indo embora. Via como uma separação, uma ruptura. E isso machuca.Osilêncio também machuca. É como fim de ano na escola: todo mundo chora.

Como foi voltar para o dia a dia da editora?

Quando o Augusto entrou, fiquei dois anos trabalhando de casa. Vou à editora porque me faz bem. Gosto de ficar em casa, de solidão, mas gosto de ir lá, conversar com as pessoas. Saio de lá revitalizado, feliz. Saio xingando às vezes, também. Ela é um remédio e me faz muito bem.

Quando você vai publicar o seu livro?

Já fiz mil documentos proibindo essa publicação. O meu Confesso Que Vivi nunca vai sair. Tenho consciência de não ser ninguém. Graças a Deus tenho essa consciência. Temos de construir como as cidades que são soterradas. Não posso ter essa vaidade.




Da favela para Boston - ZUENIR VENTURA

O GLOBO - 

20/04/2013

Logo que soube dos atentados de Boston, meu primeiro pensamento foi para o sociólogo Caio Ferraz, personagem de meu livro "Cidade partida", que em 1996 foi levado pela Anistia Internacional para os EUA por estar ameaçado de morte pelos policiais da banda podre que executaram 21 inocentes na tristemente famosa "chacina de Vigário Geral". A foto dos caixões alinhados na entrada da favela correu o mundo como um anticartão-postal, e Caio, que liderou a reação da comunidade, foi considerado o primeiro exilado político da redemocratização. Partiu com a mulher e duas filhas pequenas, estudou, trabalhou como entregador de pizza e acabou se dando bem com uma empresa especializada em reforma de casas e apartamentos.

Testemunha de batalhas entre traficantes, Caio escapou por pouco dos atentados de agora, pois estava no lugar onde 15 minutos depois explodiu a primeira bomba. Só se salvou porque resolveu avançar 100 metros para ter uma visão melhor da chegada da maratona. Houve o estrondo e, em meio à fumaça, à correria e ao caos, ninguém entendia direito o que estava ocorrendo. "Tarimbado com as guerras insanas que vivi na minha infância na favela, não tive dúvidas de que a explosão era de bomba. O barulho parecia o de granada que eu ouvira várias vezes nos confrontos entre bandidos de Vigário Geral e Parada de Lucas pelo controle do tráfico local."

Caio confessa que o momento de maior desespero foi quando se lembrou que a filha mais velha, Maíra, trabalha numa cafeteria a cerca de 300 metros das explosões. "Tentei ligar, mas nenhum telefone funcionava. Até que ela respondeu por SMS informando que estava bem. Pedi que não saísse de lá, que eu furaria o bloqueio da polícia e iria buscá-la pra irmos juntos e em segurança para casa."

Embora acostumado a situações que o "deixaram sem chão" - tiroteios, invasão policial, chacina, ameaças de morte -, Caio continua traumatizado com o que presenciou: "Que sofrimento ver uma senhora ensanguentada abraçada ao filho adolescente sem saber o que fazer. Que estranho não poder ser útil numa hora dessas. Nunca havia me sentido assim em toda minha vida e essa experiência espero não repetir."

Para agravar, tudo isso aconteceu quando ele se prepara para voltar ao Brasil. "Não sei o que fazer, porque minhas filhas continuarão aqui com a mãe. Logo eu, que tive que sair do Brasil por motivo de segurança pessoal, encontro-me agora numa enorme insegurança existencial."

Pontos - José Miguel Wisnik


O Globo 

20/04/2013

Faltam nexos compreensivos capazes de dar conta dos acontecimentos culturais no Brasil

Se não me engano em fevereiro, há cerca de dois meses, travou-se uma polêmica sobre o “vazio cultural” brasileiro, lançada por um número da revista “Carta capital” que discutia o assunto. Por algum motivo circunstancial (acho que eu estava em viagem) só me dei conta da discussão posteriormente, através de seus ecos. Não tenho condições de recuperá-la agora, mas o meu “vazio cultural” particular de hoje, em que a coluna gira em falso à procura de seu ponto de apoio, me impele de volta à questão. Considerar o tema como “ultrapassado” seria prender-se a uma lógica imediatista. A redução, aliás, de toda cultura a pautas, ganchos jornalísticos e mercadológicos, efemérides e fenômenos virais, é uma das partes do problema.

Vou tentar expor a minha posição, mesmo sabendo que o assunto não cabe aqui. Acho o Brasil um país de grande vitalidade cultural. Essa vitalidade está na diversidade das práticas, no modo como elas se permeiam, nas soluções incomuns que resultam disso, em muitos níveis. Confesso que é difícil descrevê-la, porque ela se apresenta de maneira não usual, múltipla e heterogênea, extraindo a sua força exatamente disso. Ao mesmo tempo, essa vitalidade contracena com o baixo letramento médio brasileiro, que compromete sob muitos aspectos a sua organicidade e a sua capacidade de articulação. Apesar desse baixo letramento, no entanto, fomos capazes de reconhecer uma literatura na qual conviviam, a certo momento, Drummond, Rosa, Bandeira, Clarice, João Cabral e a poesia concreta, junto com teatro, música e cinema incandescentes. Isso não teria acontecido se não houvesse por sua vez uma atividade crítica de peso reconhecível, um campo crítico mapeado e exposto ao debate, um conjunto de publicações acompanhando a vida contemporânea.

As instituições da chamada alta cultura, ou das instituições letradas, sofreram abalos e deslocamentos em todo o mundo, nas últimas décadas, sob a pressão dos meios de massa articulados com a onipresença da publicidade e com uma considerável corrosão da escola tradicional frente a essas novas realidades. Mesmo assim, a literatura, os escritores, a crítica, tiveram ainda um papel determinante no acompanhamento de todas as transformações que se deram na Rússia ao longo do século XX, por exemplo, ou na Argentina ou em Portugal. O lugar do escritor, garantido por um certo lastro letrado, não se evaporou completamente no processo. Certamente não se pode dizer o mesmo do século XXI, mesmo lá.

No Brasil, a tendência a deslocar as pautas culturais do campo das ideias para o das vendagens, comportamento, moda e polêmica de superfície lavou o lastro frágil da vida literária acumulada, e acuou a atividade crítica num papel incômodo, impertinente e estigmatizado, substituído pela atividade dos agentes e assessores de imprensa, dos releases, das entrevistas e notas em colunas sociais, pela participação em eventos, num ambiente de coquetelização da cultura (estou lembrando de um artigo contundente de Flora Sussekind, “A crítica como papel de bala”, publicado no Prosa em 2010, algumas balas do qual sobram para mim, se não estou enganado).

É certamente a essa perda de articulação e a esse rebaixamento do papel crítico na esfera pública que Vladimir Safatle se referia, ao intervir no debate caucionando o mote do “vazio cultural”. Vazio cultural, nesse caso, significa a falta de um senso totalizante e de um tensionamento da linguagem que comprometa as produções com algo mais do que sua inserção num mercado ou o seu reconhecimento por um grupo de participantes consumidores. É exatamente o contrário do que pensa Hermano Vianna, para quem a cultura vive da força empenhada nela por seus agentes, que dão a cada cena cultural um sentido total auto-bastante. Onde para um há o vazio para outro sobra excedente. Os pressupostos são tão opostos que não dão lugar a uma conversa possível nem ao entendimento da impossibilidade disso.

Para mim este é o ponto. Não falta acontecimento cultural no Brasil, das mais complexas aventuras intelectuais às mais saudavelmente elementares manifestações do apetite de viver. Faltam, quando faltam, e como faltam, nexos compreensivos capazes de dar conta dessa complexidade, em meio à entropia de um mercado voraz e de um debate reduzido muitas vezes ao quiproquó, à faccionalização dos discursos e à simplificação jornalística.

Em muitos sentidos, “vazio cultural” é um estado do mundo, hoje. Em cada caso, a questão é saber onde estão os “pontos luminosos”, e o Brasil é um vazio cheio deles.