domingo, 24 de março de 2013

Você tem nome de quê? - HUMBERTO WERNECK

Rendeu marola a conversa da semana passada, em torno de nomes de gente que são também nomes de coisa, bicho ou vegetal. Como o guilherme que o Guilherme usa na carpintaria. Poucas reclamações: um Bernardo não gostou de se saber xará daquele berloque da anatomia masculina, e uma Cecília, ao ver-se no balaio das serpentes, só faltou me picar. Duas Betes perguntaram que jogo é esse originado do beisebol. Talvez o "bete (ou bente) altas" da minha infância, em que o desafio era derrubar com a bolinha a base adversária, tripé armado com gravetos. Não tem no Houaiss, mas eu estive nos anos 50 e dou fé.

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O Plano Borges - João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo
 
Pouco mais de meio-dia, no aclamado boteco Tio Sam, tudo parece estar de acordo com a filosofia do proprietário do estabelecimento, ou seja, a normalidade. O domingo não se apresenta dos mais gloriosos, mas não chove e, a cada trinta segundos, passa uma bela moça ou formosa senhora, a caminho da praia. Às mesas do Tio Sam e do boteco que lhe é vizinho, os coroas de sempre - nenhum dos quais jamais precisou de Viagra ou semelhante, mas sempre tem um amigo que precisa - se postam tão perto quanto possível da calçada, para desfrutar da paisagem e comentar as qualidades organolépticas das desfilantes. Amavelmente cafajestes, denominam isso "apreciar o cânter" - e o cânter aqui desta calçada leblonina nunca decepciona os aficionados.

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Baboseiras - Luis Fernando Verissimo

O Estado de S.Paulo

O motoboy entregou o pacote de cartas e disse:
- Ele falou que tinha resposta.
- Espera - disse ela. E pôs-se a examinar as cartas. Procurava uma em especial, que não encontrou. Fez um sinal para o motoboy aguardar enquanto telefonava.
- Alô...
- Amauri, cadê a carta do ursinho?
Era uma das primeiras cartas que ela tinha lhe mandado. Ainda eram namorados. Uma carta toda escrita como se fosse de uma criança para o seu ursinho de pelúcia.
- Eu mandei. Não mandei?
- Não. E se você não mandar a carta do ursinho eu não mando as suas.
- Heleninha...
- Não tem "Heleninha", Amauri. Ou você manda todas as minhas cartas ou eu começo a mostrar as suas. Sou capaz até de publicá-las. Quero ver como fica a sua reputação no meio.
- Eu pensei em guardar pelo menos uma carta sua, Heleninha.
- Logo a mais ridícula? Devolve a minha carta, Amauri. Nosso trato foi esse.
Todas as cartas.
- Deixa eu ficar só com esta. É a minha favorita.
- Eu sei o que você está pensando, Amauri. Quer ficar com a carta para me chantagear depois.
- Chantagear, Heleninha?!
- Chantagear. Eu conheço você.
- Heleninha! Eu acho esta carta linda. Uma lembrança do tempo em que a gente se amava.
- Não banca o sentimental comigo, Amauri. Essa carta é só um exemplo das baboseiras que e gente diz e escreve quando acha que o amor nunca vai acabar. Mas o amor acaba e fica a baboseira. Me devolve essa carta, Amauri!
- Heleninha, você lembra de como eu chamava você? Na cama?
- Eu não quero ouvir!
- Lembra? Está certo, era baboseira. Mas era bonito. Era carinhoso. Eu era o seu ursinho e você era a minha...
- Amauri, manda essa carta ou eu publico as suas. Já sei exatamente para quem mandar a primeira.
- Está bem, Heleninha. Manda o motoboy de volta.

Zuneide pensou: não dá mais. Morar nesta cidade, não dá mais. Não vejo mais o Ique, não sei nada da vida dele. E todas as noites é este suplício, nunca sei se ele vai voltar pra casa ou não, se está vivo ou morto. Dizem que morre um motoboy por dia na cidade. Todos os dias uma mãe perde um filho nesta cidade. Se o Ique ainda fosse procurar outra coisa pra fazer. Mas não. Trata aquela moto como se fosse um bicho de estimação. À noite, a moto fica ao lado da cama dele. Dorme com ele. Vou tentar convencer o Ique a voltar para São Carlos. Respirar outros ares. Antes que ele morra e me deixe.

- Não dá mais, doutor Amauri. Esta cidade está me deixando maluco. Sabe que no outro dia, quando me dei conta, estava correndo pela calçada e buzinando? A pé, na calçada, e buzinando para os outros pedestres saírem da frente. Bi, bi, bi. Olha que loucura.
- Você acha que isso pode ter alguma coisa a ver com os problemas em casa. Com a Mercedes?
- Não sei. Nosso amor acabou, doutor. Não tem mais sexo, não tem mais nada. Na outra noite eu chamei ela por um apelido que a gente usava quando era recém-casados, eu era Pimpão e ela era Pimpinha, e ela deu uma gargalhada. Não se lembrava mais. E ela também está enlouquecendo, doutor. Agora deu para dizer que se eu não comprar uma TV digital ela se mata. Vou dizer para ela vir consultar com o senhor tam...
Tocou o telefone e Amauri pediu licença para atender.
- Alô? Sim, Helena. Não chegou? Eu mandei pelo motoboy perto do meio-dia. Mandei, Helena. Por que eu iria mentir? Deve ter acontecido alguma coisa com o motoboy.

Só em casa, depois de deixar o Ique no hospital, Zuneide descobriu a carta no bolso do blusão do filho. Uma carta carinhosa, que começava assim: "Querido Ursinho". Ele tinha uma namorada e ela não sabia! O nome dela era Heleninha. Uma boa menina, ingênua, pura, que obviamente o amava muito, a julgar pela carta. Preciso encontrar um jeito de avisá-la de que o Ique teve um acidente, pensou Zuleide. Será uma maneira de conhecê-la, também. De conversarmos, de combinarmos a ida deles para São Carlos, para outros ares, depois do casamento. Zuneide leu e releu a carta várias vezes. Que coisa bonita. Que coisa carinhosa. No dia seguinte ela diria ao Ique que ainda não conhecia a Heleninha mas já gostava dela.

- Amauri, você pediu. Vou começar a distribuir as suas cartas.
- Heleninha...
- Você mentiu. O tal motoboy não apareceu com a minha carta.
- Heleninha...
- Prepare-se para o pior, Amauri.

Dolores e Eric - Caetano Veloso


Publicado em:

FALA CAETANO

O GLOBO

 

Colunista responde autora que escreve biografia da cantora sobre artigo publicado esta semana no Segundo Caderno

Fiquei surpreso com o artigo de Angela de Almeida publicado aqui ao lado na quarta-feira. O título era “Em defesa de Dolores Duran” mas, apesar da redação sóbria, não se entende de que a articulista está defendendo a cantora. Pela citação direta de comentário feito aqui nesta coluna, pareceria que ela quer defender Dolores de mim. Ela acha mesmo que diminuí Dolores ao reconhecer que “Por causa de você” é uma canção de amor afirmativa e que “Estrada do sol” resplandece de contraste com o pessimismo amoroso dos sambas-canções dos anos 1950? Angela reclama de eu ter dito que a figura vital e engraçada que aparece na biografia escrita por Rodrigo Faour não me surpreende. Mas por que diabos isso estaria na contramão da admiração pela personalidade artística da compositora que exponho no parágrafo precedente? Na verdade, toda a angustiante história da cardiopatia que acabou matando nossa adorada artista está narrada no livro de Faour. Se Angela tem críticas a fazer ao livro desse autor, que as faça. Mas essa velada acusação não procede: Faour não omite, nega ou desmente a tensão que acompanhou Dolores por toda a sua curta vida.

De minha parte, sempre tive e tenho a sensação nítida de que Dolores não era uma moça triste, nem mesmo uma autora especialmente pra baixo dentre os fazedores de baladas brasileiras daqueles tempos. Eu a vi de perto no auditório da Rádio Nacional e senti uma simpatia imediata, passando a achar que a conhecia. Deplorarei sempre não ter podido encontrá-la quando finalmente vim para o Rio. Lendo o livro de Faour, eu me encontrei com a pessoa que intuía a partir da aparência, da voz e das músicas. As canções de Dolores são as mais convincentes, sinceras e diretas que se podem escrever. Todas as referências ao “tempo passando” e à certeza terrível da mortalidade entrelaçada com a sede sem fim de ser amada que aparecem em suas composições são registradas por Faour. Pode-se não gostar (eu não gosto) do tom demasiado jocoso e do coloquialismo extravagante do autor, mas a pesquisa sobre quem foi a mulher que ganhou o nome Dolores Duran é abrangente e honesta. Dolores aparece como uma menina excepcionalmente inteligente, que gostava de curtir a vida e que sentia alegria com a própria inteligência. O jeito de ela cantar os baiões engraçados de Chico Anysio e os não menos engraçados sambas de Billy Blanco mostra bem que tipo de piadista ela era. As lembranças dos seus ex-amantes coincidem em descrever uma mulher apaixonada e sensual, com grande culto do amor físico. A irmã e as amigas descrevem uma pessoa reconhecível. Uma personagem vívida sai das páginas do livro. Nenhum dos seus próximos desmente as características da personalidade brincalhona. Faour sempre parece perfeitamente honesto na transcrição dos depoimentos. Se Angela está escrevendo uma biografia mais aprofundada da compositora, ótimo. Que ela a publique o quanto antes. Mas não venha ralhar comigo pelo que eu não fiz.

.Dolores é o máximo. Sem ela eu não estaria tão firme contra Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos; eu não teria entendido nem um décimo do que entendo da linguagem da canção popular; o Brasil não seria o que, a duras penas, consegue ser. Dolores é uma glória da língua portuguesa, sem a qual o samba não existiria.

Estou escrevendo quase sem usar a cabeça. Em meio aos preparativos para a estreia do show “Abraçaço” (quando este artigo sair, já terei feito três dos quatro shows que anunciei fazer no Circo Voador), só tenho na mente as palavras e as notas embaralhadas de “Um comunista”, “Alexandre” (que vou ler, pois nunca a cantei em público, já que não decorei a letra) e “Funk melódico” (que gravei lendo e nunca mais cantei). Gosto de música popular. Sempre gostei. Há algo aí. Quando, em suas análises da formação social do jazz, Eric Hobsbawm fala com desprezo de Tin Pan Alley (a rua que deu nome à produção de canções americanas nos anos 1920, 30 e 40), ou seja, de Irvin Berlin, George Gershwin e Cole Porter, eu me sinto mal. Não é que eu queira a aprovação dele para a canção pop (como ele já chama o tipo de música feita por essa gente): é que eu acho que há algo errado em não se captar a grandeza desse gênero. Hobsbawm é que fica sem minha aprovação. Sou mais Dolores.

É simpático que Hobsbawm não embarque no ódio ao jazz que Adorno nutria. Apesar da crítica do capitalismo (Hobsbawm também era marxista), ele não desqualifica uma forma de expressão complexa como o jazz. (Embora eu ache que têm graça algumas arengas de Adorno: ele entendia mais de música do que Hobsbawm.) Mas nada de “Night and day”, “The man I love” ou “Por causa de você” com ele

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Para ler o artigo de Angela de Almeida :



Em defesa de Dolores Duran - ANGELA DE ALMEIDA