quinta-feira, 7 de março de 2013

O PT não está de todo errado - EUGÊNIO BUCCI

 
 
O Diretório Nacional do PT, reunido em Fortaleza durante o final de semana (dias 1 e 2 de março), divulgou uma nota oficial para "conclamar o governo a reconsiderar a atitude do Ministério das Comunicações, dando início à reforma do marco regulatório das comunicações". O partido do governo explicita a sua divergência com o governo. Ou, mais precisamente, com o Ministério das Comunicações, que preferiu deixar o assunto para depois.

Com sotaque portenho, o Diretório Nacional proclama: "O oligopólio que controla o sistema de mídia no Brasil é um dos mais fortes obstáculos à transformação da realidade do nosso país". O Brasil não é a Argentina, Dilma Rousseff não é Cristina Kirchner, mas talvez a turma que redigiu o comunicado quisesse mudar também esses detalhes da "realidade do nosso país". O texto promete convocar uma "Conferência Nacional Extraordinária de Comunicação do PT, a ser realizada ainda em 2013, com o tema Democratizar a Mídia e ampliar a liberdade de expressão, para Democratizar o Brasil".

Até aí não há novidade nenhuma no flamejante palavreado do PT. Desde 2005, pelo menos, dirigentes da sigla fustigam empresas jornalísticas, numa escalada que não cessa. Afirmam que o julgamento do mensalão resultou de um complô urdido pelos donos de jornal em conluio com ministros do STF. Agora, a ameaça de convocar manifestações e forçar o governo a enquadrar órgãos de imprensa parece ser mais um capítulo de uma novela já conhecida, um tanto gasta, cujo objetivo é radicalizar o debate eleitoral que se avizinha. Num ambiente polarizado, será mais fácil jogar a culpa de todos os males do PT nas costas dos repórteres - e transformar "o oligopólio que controla o sistema de mídia no Brasil" no vilão do continente. A campanha de 2014 seria, então, uma campanha contra a "mídia oligopolizada", o dragão da maldade. O PT entraria na sua própria novela como o santo guerreiro. Salve, Jorge.

Mas a história não acaba aí. A questão é menos óbvia e mais complexa do que parece. Fora o panfletarismo e o tom inflamado, quase raivoso, há um ponto no qual o PT está com a razão. Ao menos em parte, está certo: o marco regulatório está na ordem do dia. Com ou sem disputa eleitoral, com ou sem maniqueísmos melodramáticos, o Brasil precisa de um novo marco regulatório da radiodifusão (e dos mercados conexos). Isso não tem nada que ver com cercear o conteúdo ou censurar o noticiário (como talvez queiram uns ou outros, petistas ou não), mas o contrário: a boa regulamentação só aumenta o grau de liberdade, como vemos hoje nos Estados Unidos, no Canadá e em vários países da Europa. Ela não é sinônimo de censura. A má regulamentação, ou a ausência dela, é que traz prejuízos maiores, inclusive para a liberdade.

Como afirmou o Estado em editorial de dois dias atrás, "um novo marco regulatório das comunicações é necessário e urgente, principalmente porque o marco em vigor, anterior ao advento da internet, está há muito tempo defasado". A nova legislação, sem ideologismos, deveria organizar a matéria (hoje dispersa um espinheiro normativo confuso e obsoleto), promover as atualizações que as tecnologias digitais exigem, destravar o crescimento do mercado (aprimorando as condições de concorrência) e arejar ainda mais a democracia (assegurando mais diversidade ao debate público e à cena cultural).

O PT fala de oligopólios e monopólios. Sem dúvida, precisamos de uma lei que dê os critérios (numéricos, de preferência) pelos quais se possa definir o que é monopólio ou oligopólio numa dada região (critérios que hoje não existem), mas esse está longe de ser nosso único entrave. Mais sério, hoje, é o problema da fusão indiscriminada de igrejas, partidos políticos e emissoras (ou redes inteiras) de rádio e televisão, o que tende a ferir a laicidade do Estado (e a radiodifusão, sendo serviço público, deve primar pela observância da mesma laicidade que vale para o Estado), o fisco e a concorrência leal entre as empresas (pois as igrejas gozam de benefícios tributários que as emissoras não têm e, se a separação entre as duas esferas não for rígida, as emissoras podem encontrar reforços financeiros impróprios quando se associam a igrejas). Sobre esse assunto a nota do PT não fala nada.

A influência crescente de políticos sobre empresas de comunicação é outro vício grave. Há parlamentares que são acionistas, parentes de acionistas ou mesmo dirigentes de emissoras, o que gera um flagrante conflito de interesses: como o Congresso Nacional é chamado a falar na concessão de canais de rádio e TV, seus integrantes não deveriam ter parte com esses negócios. Também por isso um novo marco regulatório é urgentemente necessário.

Há mais. O uso abusivo da propaganda de governo tem permitido ao poder uma interferência crescente sobre os meios de comunicação. Embora o governo federal mantenha esses gastos em patamares relativamente estáveis há anos, os governos de Estados e municípios vêm expandindo sem limites a sua publicidade. A ocasião de rever o marco regulatório seria uma oportunidade para disciplinar também essa matéria. Sem restrições, a verba de publicidade governamental concorre para desequilibrar e desvirtuar o mercado, arranhando o ambiente de liberdade de imprensa. Lembremos que na Argentina, onde há uma conflagração entre órgãos de imprensa e governo, o kirchnerismo elevou os gastos de publicidade oficial de 46 milhões de pesos em 2003 para 1,5 bilhão em 2011 (cerca de US$ 300 milhões).

Recusar o debate sobre um novo marco regulatório só porque a ideia foi abraçada pelo PT é um erro primário. Estamos falando aqui de uma necessidade estrutural do mercado e da democracia, não de uma bandeira de esquerda. Se alguns se aproveitam dessa necessidade para pedir censura, cabe aos democratas de qualquer partido esclarecer, limpar o terreno e propor a modernização necessária. Que já tarda.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM.

A fome e a memória - Fernando Reinach

 
 
Armazenar memórias exige do cérebro um grande gasto de energia. Um mecanismo recém-descoberto ajuda o cérebro a economizar energia. Quando falta energia porque o animal passa fome, o cérebro deixa de armazenar memórias desagradáveis. Faz muitos anos que os cientistas estudam a formação de memórias de longa duração, aquelas que persistem por anos a fio.

A formação desse tipo de memória exige a produção de novas moléculas e o rearranjo dos circuitos que interligam neurônios, o que consome muita energia. Geralmente isso não é um problema, pois o cérebro não somente regula o gasto de energia das diferentes partes do corpo, mas também garante que, na falta de alimentos, o suprimento energético do próprio cérebro seja priorizado.

Em 1983, estudando a formação de memórias em drosófilas (a famosa mosca de fruta), os cientistas descobriram que era mais fácil "ensinar" uma mosca a associar um odor a um alimento apetitoso se a mosca estivesse passando fome. O experimento é simples. As moscas são deixadas sem alimento por 20 horas e depois, submetidas a um odor típico ao mesmo tempo em que recebem um pouco de açúcar para comer.

Nesse caso, basta um ciclo de treinamento para as moscas aprenderem a associar o odor ao açúcar. E essa memória dura dias (o que é bastante na vida de uma mosca). Se as moscas não estiverem com fome, elas também aprendem a associar o cheiro ao açúcar, mas necessitam de vários ciclos de treinamento. O aprendizado acelerado em situações de fome faz sentido, afinal saber que um cheiro está presente porque existe açúcar por perto aumenta as chances de sobreviver.

Foi nessa época que os cientistas descobriram que a formação de outros tipos de memórias não eram estimuladas pela fome. Por exemplo, se você quer "ensinar" uma mosca que um odor é desagradável, basta submetê-las à presença do odor e, ao mesmo tempo, dar um pequeno choque na mosca. Ela logo aprende a fugir do odor.

Agora a novidade: os cientistas resolveram investigar o que ocorria quando se tentava "ensinar" moscas famintas a ter aversão a um odor. O método é o mesmo: você submete a mosca a choques elétricos e libera o odor.

A primeira observação foi que tanto as moscas famintas quanto as bem alimentadas são capazes de aprender a ter medo de um odor associado ao choque elétrico, mas nas moscas famintas esta memória durava pouco. Os cientistas suspeitaram que as moscas famintas não estavam formando memórias de longo prazo (aquelas que exigem gasto de energia). Para confirmar essa hipótese, foram realizados diversos experimentos engenhosos. Os cientistas usaram moscas mutantes, incapazes de formar memórias de curto prazo, e observaram que, quando famintas, elas não aprendem a associar o cheiro ao choque elétrico. Depois demonstraram que os neurônios envolvidos na formação de memórias de longo prazo associadas a sensações desagradáveis são inativados quando a mosca passa fome.

Por fim, os cientistas utilizaram um truque genético que força esses neurônios a permanecerem ativos mesmo nas moscas famintas. Repetindo o experimento, comprovaram que nessa situação totalmente artificial, a memória de longo prazo de experiências desagradáveis é formada, mas, como essa formação provoca um alto gasto de energia, a sobrevida dessas moscas era menor.

Os cientistas concluíram que, nas drosófilas, a falta de alimento bloqueia a formação de memórias de longo prazo de experiências desagradáveis e estimula a formação de memórias de longo prazo associadas a sensações positivas, como a presença de alimento. Em outras palavras, as memórias armazenadas dependem do estado nutricional das moscas.

É claro que o experimento precisa ser repetido em mamíferos e em outras espécies de animais para podermos afirmar que essa é uma característica do cérebro de animais. Mas esse estudo abre uma nova perspectiva no estudo da formação de memórias: a possibilidade de que o tipo de memória formado em nossos cérebros depende de nosso estado nutricional.

Imagine se isso for verdade para seres humanos. Pense que você tenha de comunicar uma notícia traumática, por telefone, a um ente querido. Em vez de perguntar se ele está sentado antes de dar a notícia, o melhor é garantir que ele vai receber a notícia com fome. O trauma não será registrado na memória de longo prazo e ele logo se recuperará do trauma.

* Fernando Reinach é biólogo. Mais informações: 'To Favor Survival Under Food Shortage, the Brain Disables Costly Memories'. Science, vol 339, pg 440, 2013.

Elefante na sala - Luis Fernando Veríssimo

 
 
A única maneira de conviver com um elefante na sala é fingir que ele não está ali. Ignorá-lo. Se algum visitante desavisado perguntar o que um elefante está fazendo na sua sala, a resposta padrão deve ser "Que elefante?". No Brasil nos acostumamos a conviver com elefantes na sala. Exemplo: só quase 30 anos depois do fim do período de exceção inaugurado em 1964 uma comissão começa a procurar a verdade sobre o que realmente aconteceu durante o período. Por quase 30 anos este elefante específico não mereceu atenção e viveu entre nós como um parente apenas vagamente incômodo. A tal comissão não vai punir, antes tarde do que nunca, os desmandos da época. Os criminosos de então estão anistiados, mesmo identificados não sofrerão castigo ou sequer reprimendas da sua própria corporação. Mas pelo menos o elefante está sendo reconhecido. E citado.

Outros elefantes continuam ignorados, e continuam na sala. Hoje não há nenhuma dúvida de que o cigarro mata e o fumo é a principal causa do câncer no Brasil e no mundo. No caso do Brasil só o volume de impostos que a indústria do fumo paga ao governo explica que não haja um combate mais aberto e decisivo ao vício assassino. Em alguns casos a indústria tem até vantagens fiscais. Já o volume de impostos não pagos pelas religiões organizadas explica a proliferação de Igrejas e seitas no País e a presença de pastores evangélicos brasileiros nas listas dos mais ricos do mundo. Mas a isenção dada ao negócio da religião é um dos assuntos intocáveis do País, um elefante enorme cuja presença na sala nem a imprensa nem ninguém se anima a reconhecer.

Potência. Contam que o Stalin, avisado de que determinada decisão iria desagradar ao Vaticano, teria perguntado "E quantas divisões tem o papa?". Descontando-se a Guarda Suíça, que só existe para fins decorativos, o papa, como se sabe, não tem tropas. Mas o Stalin se espantaria com a demonstração de poder do Vaticano dada pela cobertura da renúncia do papa e das especulações sobre o seu sucessor. Páginas e páginas de jornal, horas e horas de televisão - um triunfo de potência desarmada. A União Soviética tinha as divisões. Não tinha as relações públicas da Igreja.