domingo, 20 de outubro de 2013

Colunista Convidado: LUIZ RUFFATO - Agruras e prazeres


Falso dilema - Gustavo Binenbojm

O Globo - 20/10/2013

O debate que se instaurou no Brasil sobre a possibilidade de publicação de  obras biográficas sem o consenti- mento dos personagens biografados  tem sido pautado por uma falsa dicotomia entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Não é disso que se trata. A questão é mais singela do que um suposto dilema filosófico entre a livre circulação de ideias e informações e a soberania do individuo sobre sua vida privada.

O problema em discussão é o seguinte: tem o indivíduo o monopólio sobre a narrativa da sua trajetória de vida? Ao exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus herdeiros) para a divulgação de escritos a seu respeito, o art. 20 do Código Civil responde que sim. Note-se que não se está aqui a cogitar do conteúdo da obra; a autorização pode ou não ser concedida ao inteiro alvedrio do personagem retratado, sem relação necessária com a proteção de sua intimidade.

Cuida-se apenas do agrado ou desagrado do protagonista dos fatos com a versão do biógrafo. Embora editado já na plena vigência da Constituição democrática de 1988, o Código Civil (que é uma lei ordinária) criou um monopólio das autobiografias no país. Salvo com o beneplácito, quase sempre oneroso e parcial do biografado, as heterobiografias são um gênero virtualmente banido entre nós.

Além das cifras vultosas negociadas muitas vezes por puro interesse argentário, a lei em vigor gera ao menos dois outros efeitos nocivos ao chamado livre mercado de ideias:  ( 1) um efeito silenciador, que condena anos e anos de pesquisas sérias e responsáveis dos autores aos escaninhos das editoras;  (II) um efeito distorsivo, resultante da filtragem de documentos e depoimentos pelo crivo do biografado.  Surge então o argumento da preservação da vida privada dos biografados. Trata-se de um falso argumento.

Ninguém está a defender a prática de atos ilícitos por parte de pesquisadores, historiadores ou escritores. Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo.

O trabalho de pesquisa histórica se realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados.  Um jurista português me disse certa vez, com aquele raciocínio literal e cortante que é próprio da cultura lusitana: “O anonimato é para os anônimos!”. O raciocínio inverso, no entanto, não pode ser levado ao extremo.

É claro que pessoas públicas não têm a sua esfera de privacidade e intimidade reduzida a zero. Como todos nós, elas tomam decisões soberanas sobre as informações de sua vida privada que desejam tornar públicas ou manter sob reserva. Mas, como todos nós, elas não detêm controle absoluto sobre as informações que possam ser legalmente apuradas ou voluntariamente reveladas pelos seus detentores.  A vida de figuras públicas é parte integrante da historiografia social.

Contá-la é um direito de todos, independentemente de censura ou licença, como assegura a Constituição. Conhecê-la é uma forma de controle social sobre o poder e a influência que tais figuras exercem sobre todos os cidadãos. O mecanismo da autorização prévia, forma velada de censura privada, é simplesmente inconstitucional.

 Gustavo Binenbojm é professor da Faculdade dDireito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro  e advogado da Associação Nacional dos Editores de  Livros

Nos passos dos ‘lekes’, a transformação do Rio - RENÉE CASTELO BRANCO

O Globo 20/10/2013

Eles inventaram uma dança, criaram
uma nova noção de beleza e de amizade,
borraram as fronteiras entre o masculino
e o feminino. Estão por toda parte,
conectados através do Youtube e do Facebook;
não usam drogas e respeitam os pais. São os
“mulekes” do Passinho.

Moram em favelas e bairros populares do Rio
de Janeiro; formam uma rede que se estende
pelos municípios vizinhos. Criaram um modelo
alternativo para os jovens dos morros cariocas,
ainda atraídos pelo poder, glamour e dinheiro
aparentemente fácil dos traficantes.

Esguios e atléticos, estes filhos do funk riscam
o chão com passos que lembram os do samba,
frevo, charme, break, street dance, hip hop ou
até yoga e dribles de futebol. Gostam de imitar
gay. Uma homenagem ao estilo do precursor
morto a pancadas de madrugada na rua no Rio;
um episódio até hoje pouco esclarecido. Gambá
trabalhava como gesseiro. Era talentosíssimo e
abusava de uma estética invejada pelos dançarinos.
A partir daí o passinho cresceu. Como se
todo movimento precisasse de um mártir.

Poucas meninas “mandam” passinho. É um
mundo masculino. Elas torcem por eles, ajudam
a enfeitá-los e até pagam para que estejam
bem arrumados. O cabeleireiro
é ponto de encontro,
onde experimentam variantes
do corte do Jaca, com
desenhos riscados a gilete
rente ao couro cabeludo.
Fazem unhas, tiram sobrancelhas,
depilam-se,
usam brincos brilhantes,
aparelho colorido nos dentes
e trocam a cor dos cabelos
com uma frequência impressionante. As novas
tendências espalham-se pelo Youtube.

A escola, como sempre, não abraça este processo.
Os que não abandonaram os estudos só a frequentam
porque a família insiste. Nada a ver com
preguiça; passam o dia pesquisando novos passos,
gravando vídeos, conectados pela internet.

Têm uma legião de fãs. Cada vídeo ou comentário
postado é curtido por centenas, até milhares de
pessoas. Um deles tem mil perfis falsos no Face.
Jeffinho sequer dança tão bem quanto feras como
Breguete, Iltinho, Pablinho, Sheick ou Pelúcia;
nem é tão bonito assim.
Mas é um mestre intuitivo
da manipulação da imagem
e do uso das novas
mídias. Verdade que já
tem empresário, que leva
porcentagem alta dos cachês
dos shows em que se
apresenta .

O Passinho está criando
um mercado. Além dos
shows convocados por MCs, alimenta web-rádios
e pequenos fabricantes de camisetas. Está na moda.
Teve “flashmob” na estação do metrô, a Coca-
Cola patrocinou campeonatos entre dançarinos,
produziu um vídeo que está no Youtube e já é viral.
A final da Batalha do Passinho deste ano foi
disputada no estúdio do “Caldeirão do Huck”. Alguns
participaram na abertura dos Jogos Paraolímpicos
em Londres em 2012 e do Criança Esperança
este ano. O Theatro Municipal do Rio de Janeiro
organizou um curso de férias onde a molecada
do Passinho trocou experiências com alunas
da Escola de Ballet Maria Oleneva.

Poucos poderão ganhar a vida como bailarinos,
assim como nem todos os artistas sobrevivem
do palco. Escritores sempre dependeram
de algum emprego fixo. Uma minoria dos milhares
de jornalistas formados a cada ano chega
a uma redação de jornal ou de televisão. Nem
por isto são vítimas. Os “lekes” são exemplos de
talento, força de vontade e honradez. A história
deles inclui ingredientes que nos alegram e nos
perturbam. Mas é certo que aponta uma sociedade
em transformação.

Notícias de um ofício indigesto - Dorrit Harazim