sábado, 11 de janeiro de 2014

A inconstância do mundo - José Castello

O Globo 11/01/2014

NAS HISTÓRIAS DE LUIZ VILELA A REALIDADE SURGE CHEIA DE INVERSÕES BRUSCAS E DE DESTINOS INESPERADOS

O mundo humano é maleável e cheio de surpresas. Muitos golpes são desferidos em suas brechas. Muito do que parece ser não é. A duplicidade traiçoeira da existência — que é cheia de sustos e de bruscas revelações — é o tema central de “Você verá”, novo livro de contos do mineiro Luiz Vilela (Record). Assim é a vida, por exemplo, de Astrogildo — o Bem, como é mais conhecido —, um desentupidor de privadas que, como todos nós, vive às turras com as reviravoltas do real. Que fazer! Resta a Bem, como se boiasse em um imenso mar negro, se deixar levar. Ser arrastado pelas rasteiras injustas do mundo. Aceitá-las não só como parte essencial, mas até como um benefício da existência. Ele é o protagonista do conto “O Bem”, um dos mais inspirados do livro.

Sua história é narrada por Lauro, que na verdade não se chama Lauro, mas Stanislaw. Simplificaram seu nome para “Lau”. Daí para Lauro foi só um pulo na vida do advogado. Bem lhe presta um serviço, é competente e cobra barato. A amizade surge. Bem tem um terceiro nome, Astro, como a mulher o chama. Nomes deslizam de um lado para outro do relato, indicando a fragilidade do Eu. Ele e Lauro passam a conversar com frequência por telefone. Nesses longos diálogos, cheios de quebras e desvios, Bem está sempre a chorar suas mágoas. Lauro não apenas o suporta: por contraste, sente-se melhor quando fala com o amigo. Envergonha-se do que sente e promete a si mesmo que nunca mais ligará para Bem. Mas, dando uma rasteira em si mesmo, duas semanas depois volta a fazê-lo.

Lauro — que tem um terceiro nome, Stan, tirado de Stanislaw; nomes sob nomes, identidades empilhadas — ouve um dia as agruras de Bem com seu vizinho, Tonhão, um sujeito violento, que anda armado e o enche de ameaças. Pensa até em se mudar para fugir de Tonhão, mas não consegue fazer isso. Um dia, acha que ganhou na Mega-Sena, mas não ganhou — ouviu errado os números no rádio. Já havia até comemorado com a mulher que, ao descobrir a verdade, lhe dá uma vassourada. Cai, bate com a cabeça, tem um sangramento forte, e é Tonhão quem o salva, levando- o a um pronto-socorro. De onde menos poderia esperar que viesse sua sorte grande, é de lá que ela vem. O melhor, muitas vezes, se revela o pior. O melhor sai do pior. Vá se entender o mundo em que vivemos.

A realidade, nas mãos hábeis de Luiz Vilela, é feita de uma matéria inconstante, que está sempre a se transfigurar e a tomar formas surpreendentes. Seus contos são escritos em diálogos secos, substantivos, que quase chegamos a ouvir em voz alta, tal a nitidez e a vivacidade das frases. Vilela é um mestre na arte do diálogo. Em “O que cada um disse”, um homem de bem comete um crime monstruoso. Sua história é narrada por uma série caótica de rápidos depoimentos dados por testemunhas, vizinhos, amigos, a um repórter. “A gente não conhece ninguém: essa é a conclusão que eu tiro”, uma das entrevistadas conclui. “Às vezes, nem a própria pessoa se conhece. Somos um bando de desconhecidos — uns para os outros e cada um para si mesmo”. As surpresas que o mundo nos apronta não vêm apenas de fora, mas de dentro de nós mesmos. Nós somos essas surpresas.

“O ser humano é como uma floresta: você olha de fora, e a floresta é aquela maravilha; mas você entra, e lá dentro você dá com onças, cobras, escorpiões”. Um dos temas prediletos de Vilela é, assim, a ilusão. A ilusão e seu desmascaramento, que é sempre doloroso. A mesma depoente continua: “Por fora uma coisa amável, por dentro uma coisa temível. Ou, como dizia a cartilha na escola, nos meus tempos de menina: por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento”. Existir é decifrar a existência. Nunca se chega a uma conclusão final, as surpresas saem umas de dentro das outras, em uma série interminável. E isso é viver.

É o que acontece no imprevisível “Noite feliz”. Nada mais previsível, em geral, que as grandes datas. O Natal, por exemplo. Mas Vilela consegue transformar a santa data em um inferno. Aristotelina — segundo nome: Lina — recebe os parentes mais próximos para uma ceia de Natal. Eles chegam desconfiados: sabem que algo estranho os espera nas próximas horas, embora não possam imaginar o que será. “Há meses que eu venho planejando esta noite; pensam que eu vou desistir agora? Nunca.” Durante longo tempo, em uma peregrinação paciente de posto a posto de gasolina, Lina armazenou combustível em garrafas. “Chega. É hora. A meianoite se aproxima. Vamos. Noite feliz, noite feliz, Senhor...” A estranha ceia é armada: “Uma garrafa aqui: assim. Outra aqui... Agora esta... Mais esta... E esta... Pronto”. A tragédia se consuma na noite
em que parece menos provável.

Um dos principais elementos da escrita de Vilela é o pessimismo — e isso se expressa com força no relato que empresta seu título ao livro. Não é preciso dizer muito — o que se esconde não está no conto, mas fora dele. Um jovem chega à rodoviária de Brasília. Estamos em abril de 1963, a um ano do golpe militar. Ainda falta um longo tempo para a partida de seu ônibus e ele decide tomar um café. O dono do bar, um nortista sessentão, é um homem deslumbrado com a cidade em que escolheu viver. “O futuro está aqui”, ele diz. “Um novo país está nascendo nesta cidade”. Mas Vilela sabe o que se esconde sob seu entusiasmo. “Eu talvez não verei; mas você, você, que é muito mais novo do que eu, você verá”. Na esperança do homem aparece, de ponta cabeça, a grande noite política que se aproxima. Dizendo de outra maneira: a esperança é o próprio arauto da desesperança.

Nas histórias de Vilela a realidade surge cheia de inversões bruscas e de destinos inesperados. É preciso estar atento para ler a realidade nas entrelinhas, ou a verdade nos escapa. Função da literatura: desmascarar a dupla condição do real, o paradoxo contínuo que o faz andar. Como observou Walnice Galvão, Vilela nos fala “da ilusão de que tudo poderia ser de outra maneira”. Um mundo duplicado, em que esperança e realidade se entrelaçam em uma espécie de dança fatal. Narrativas secas, diretas, sem adjetivos, sem descrições inúteis, sem divagações prolixas, que remexem diretamente no estranho e inconstante coração do homem.

Obama contraria Utah e defende gays

 O Globo 11/01/2014


Governo federal vai reconhecer união do mesmo sexo apesar de veto estadual

-WASHINGTON- Depois de a Justiça americana ter autorizado e depois proibido novamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo no estado de Utah, o governo federal decidiu comprar publicamente uma briga com o poder estadual na questão. O Departamento de Justiça anunciou ontem que os 1.400 casais que tiveram tempo de se unir formalmente terão seus direitos federais garantidos, indo de encontro à vontade do estado, que conseguiu barrar o casamento gay na Suprema Corte na segunda-feira.

Na quarta, o governador de Utah, o republicano Gary Herbert, declarou que o estado não reconheceria por enquanto os casamentos homossexuais celebrados depois que um juiz de uma corte federal no estado declarou como inconstitucional a proibição da união gay, no dia 20 de dezembro. A decisão da Suprema Corte “congelou” a decisão da instância inferior, e agora a questão passará por uma corte federal de apelações no Colorado. Em Washington, o procurador-geral americano, Eric Holder, garantiu o respaldo do Executivo federal aos casais.

— Estes casamentos serão reconhecidos como legítimos para todos os benefícios federais nos mesmos termos que outros casamentos do mesmo sexo — declarou. — Estas famílias não devem ser confrontadas com a incerteza enquanto seu status continua pendente.

O governo de Utah não havia comentado a decisão federal até ontem à noite. A Organização Nacional pelo Casamento, ONG contrária ao casamento gay, condenou a atitude de Holder e considerou- a uma intromissão em assuntos estaduais. Para o presidente da entidade, Brian Brown, a atuação federal foi “ultrajante”.

— É direito dos estados determinar o que é um casamento, e os eleitores de Utah o fizeram — argumentou Brown.


CASAIS COMEMORAM

O Utah seria o 18º dos 50 estados americanos a aprovar o casamento gay caso a Suprema Corte não desse a vitória ao governo local. Por outro lado, a mesma Suprema Corte decidiu em junho passado que casais do mesmo sexo têm direito a serem tratados da mesma forma que os casais heterossexuais sob a lei federal.

Apesar de ainda não terem o reconhecimento estadual, casais gays de Utah celebraram a posição do governo federal.

— É uma validação — disse Angela Hinton, que se casou com Michele Poast em 23 de dezembro. — Temos o reconhecimento oficial de que somos pais, esposas, cônjuges.

Na capital americana, o grupo de defesa dos direitos dos gays Human Rights Campaign elogiou a atuação de Holder.
— Este é só o começo da luta, e o trabalho continua até que haja igualdade de casamento no Utah e em todos os 50 estados americanos — disse o presidente do grupo, Chad Griffin.

Tem aquele livro com a capa verde? - MARCOS DIAS

A Tarde /BA 11/01/2014

Porque não há mais livrarias no Centro, porque não há como andar em calçadas esburacadas, porque a insegurança não está nas entrelinhas e porque um centro de cultura é apenas promessa de gestores públicos, as lojas de redes de livrarias acabam sendo, para muitos, referências de espaços culturais.

Localizadas em shopping centers, templos de consumo para o movediço vazio da subjetividade contemporânea, muitas delas têm se tornado pontos de encontro.

Mas nada que se compare ao que foram casas como a Civilização Brasileira da rua Chile, ou a Livraria Progresso,na Praça da Sé, em meados do século passado. Eram ali que literatos, intelectuais, jornalistas e estudantes se encontravam, sem precisar marcar encontros.

E há pouco mais de uma década, ainda respiravam a Grandes Autores, no Itaigara, e a Sabor dos Saberes, no Pelourinho. Por esses locais, muitos tiveram acesso ao melhor da literatura brasileira e estrangeira— numa época em que e-books seriam como alucinações.

Mas hoje é possível, para quem quiser, passar o dia nas lojas das grandes redes, que também vendem CDs, blue-ray, e-readers e têm espaços para eventos e espetáculos. Ar-condicionado, cafés e ambientação aconchegante podem fidelizar leitores de todos os gêneros.

As lojas costumam ter, logo à entrada, os livros mais vendidos e os lançamentos. Os mais criativos, de vez em quando colocam produtos baianos ou sobre a Bahia separados.

A foto de acarajés na capa do livro mais recente de Raul Lody, Bahia Bem Temperada, por exemplo, faz um pai dizer ao seu filho de 2 anos: “Quer um livro de acarajé? Hein? Você pode comer esse livrinho”. E ele mesmo ri da brincadeira. A criança parece mais preocupada em acompanhar os passos largos do seu herói.

Mas as seções infantis, que expressam a crescente demanda para o segmento, é que sabem o que essa piadinha pode surtir – ou fazer surtar.

Mostruário

Não raro as crianças rasgam ou quebram brinquedos e aí ... pai, mãe, onde estão vocês?Muitos não pagam pelos danos. Alegam que aquilo é um mostruário. Mas ainda há vovós ou pais que levam seus pimpolhos paraler histórias.

As adolescentes, por sua vez, parecem que estão cansadas com essas histórias de vampiros. Vão ali mesmo para azarar seus pares, alimentadas por leituras, como a regurgitante série de Bella Andre, Se Você Fosse Minha, entre outras, com a chancela de ser Best Seller do New York Times.

A verdade é que o amor (chamemos assim) já os espreita, como acontece a todos, mais cedo ou mais tarde. Adultos, lerão algo para tentar resolver suas crises conjugais.

Mas, por enquanto, podem ter que lidar apenas com os limites sinalizados pelos vendedores para que não mostrem tanto, ou tão explicitamente, como se gostam.

Aquela jovem ali, com dois livros na mão, por exemplo, vive o dilema entre escolher o marketizado Eu Me Chamo Antonio (“Uns plantam, outros colhem, mas onde estão os que cultuam o amor?”), do publicitário Pedro Gabriel, ou o detonante A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. “É o mais romântico dela”, diz a jovem para uma amiga.

Sim, quem quer que tenha dado essa informação a ela deveria ser processado.Mas quem sabe não pode ser um bom desvio e daí ela vai entender, como a própria Clarice já disse, que “a vida dos sentimentos é extremamente burguesa”.

Na seção de música, jovens podem tanto ouvir o que gostam ou, se forem mais relax, tocar o violão que um deles levou. E é aquilo: se deixarem, gravam o clipe da própria banda ali mesmo.Os CDs,DVDs etc. da prateleira simplesmente dizem: é possível, siga o seu sonho.


Para muitos adultos, aliás, o grande sonho é que tudo ali fosse de graça. Há os que ficam por lá lendo horas a fio. Assim como há os que não devolvem os livros às respectivas prateleiras. Outros gostam tanto da leitura que escondem o título numa seção improvável. No dia seguinte, continuam.

Um livreiro, a propósito, me recomenda uma checagem no blog manual pratico de bons modos em livrarias. blogspot.com cheio de histórias, ou melhor, “delírios da freguesia”.

E se alguns reclamam que antes as livrarias havia vendedores mais informados, talvez relativize a opinião se souber que há quem procure títulos como “O Último Voo do Flamengo” (e não O Último Voo do Flamingo, de Mia Couto), ou por “aquele livro com a capa verde”.

Best-sellers

Leitores mais exigentes queixam-se que as tais redes só têm pilhas de best-sellers. Será preciso encomendar o que você quer, dirá um dos atendentes. Um professor ficou irritado nesta semana por que numa delas não encontrou Assassinato de Reputações – Um Crime de Estado, de Romeu Tuma Jr.

A lacuna o fez lembrar que,há não muito, tinha que viajar para o Rio de Janeiro ou São Paulo para comprar livros. “Aqui só colocam livros que vendem rápido”, argumenta.

E pode ter razão: nas redes, como numa sapataria ou centro de telemarketing, também é preciso bater metas.

Mas mesmo nas redes, e com os livros físicos sobretudo, está preservada aquela magia de caminhar entre as estantes e ser surpreendido. Independentemente do gosto do freguês, o design,o texto e uma espécie de radiação emanam daqueles objetos cheios de páginas e fazem crer que aquele livro tem algo a lhe dizer. E eis a felicidade.

Pode ser um livro de um colecionador apaixonado com capas de disco de soul e funk, ou um já muito manuseado livro do pintor George Quaintance. Ou um tesouro numa edição de bolso como O Mal Estar na Civilização, de Freud. É de 1930 e ainda parece uma novidade.

O ideal é que essas redes de livrarias tivessem, realmente, redes. Mas os cafés instalados nesses espaços ajudam a relaxar, a repor as energias e,quem sabe, a trocar uma ideia com amantes de livros. Mas, ora, estão quase todos ligados em seus tablets e smartphones. Então é isto: ali é como um escritório. E os profissionais jogam duro— coma conexão sem fio gratuita da livraria, claro.

Córdoba, Argentina - Luiz Mott

A Tarde/BA 11/01/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Fundada em 1573, a Córdoba argentina
situa-se entre os Andes e o Pampa, 1,3
milhão de habitantes, 700 quilômetros
de Buenos Aires, 350 metros de altitude. Peguei
37 graus neste último dezembro, oscilando
sua temperatura entre menos 7 a 42
graus! É a segunda mais importante cidade
depois de Buenos Aires. Tem voo direto de
São Paulo, três horas de viagem.

A história de Córdoba foi profundamente
marcada pela Companhia de Jesus, que já em
1613 funda sua primeira universidade, dois
séculos antes de nossa pioneira escola de
medicina! O quarteirão jesuíta é Patrimônio
Mundial pela Unesco. Belíssimas igrejas barrocas:
a majestosa Catedral, Santo Domingo,
Merced, San Francisco, museus ricos e interessantíssimos.
Incontáveis galerias de arte
ambientadas em mansões da belle époque.
Serviço de transporte urbano eficiente e barato,
praças ultraacolhedoras, traçado das
ruas em formato de tabuleiro de xadrez com
numeração padronizada. Um belo riozinho
de águas transparentes corta o centro urbano,
todo ele canalizado combelas muretas e pontes
de pedra. A população cordobesa descende
notadamente de espanhóis e italianos,
sendo perceptível, contudo, nos bairros mais
humildes, a presença de muitos “criollos” e
mestiços indígenas, seja remanescentes dos
autóctones mechingones e mapuches, seja de
andinos dos países vizinhos.

Córdoba temcomo antonomásia “la docta”,
a douta, “a que ensina”, abrigando sete universidades,
12 campi, 130 mil acadêmicos, 8
mil docentes, 250 cursos de graduação, 100
institutos de investigação, 25 bibliotecas, 16
museus e observatórios astronômicos. Em
1918 ocorreu aí sua modelar reforma universitária
e a primeira greve estudantil. A
taxa de analfabetismo em maiores de 10 anos
é de 0,8%, (contra 8,7% no Brasil), e 33% dos
cordobeses têm nível secundário completo,
11% a mais que os brasileiros.

Detalhe interessante: só mulheres são aceitas
como motoristas de trólebus em Córdoba.
Uma justa reserva de mercado a ser pleiteada
pelas baianas: condutoras do nosso metrô...

O curral do capeta ou o enigma baiano - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA 11/01/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da
Academia de Letras da Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

 A Bahia cedeu a liderança nordestina para Pernambuco e Salvador entrou em crescente declínio, sendo superada em organização e qualidade de vida pela pequenina Aracaju



A partir dos anos 50, tornou-se usual a expressão “enigma baiano” para definir curioso fenômeno: era preciso saber por que uma terra que tinha petróleo, Paulo Afonso e cacau ostentava índices tão alarmantes de atraso econômico. Pinto de Aguiar chegou a escrever um livro, Notas sobre o Enigma Baiano (Salvador, Progresso, 1958), para tentar entender o problema. Assinalou que a Bahia tinha uma economia parasitária, com lideranças empresariais sem iniciativa, mais preocupadas com comércio do que comindustrialização. Esse panorama alterou-se em parte, pois a Bahia continua apresentando alguns dos índices mais desfavoráveis do atraso brasileiro.

Progressivamente, o estado cedeu a liderança nordestina para Pernambuco, isto desde o tempo do domínio espalhafatoso de Antonio Carlos Magalhães. Instituições econômicas fundamentais deixaram terras baianas.

Salvador entrou em crescente declínio, sendo superada em organização e qualidade de vida pela pequenina Aracaju. Foi perdendo toda a riqueza do seu passado histórico. Não soube preservar sequer a reverência a suas datas magnas: o aeroporto da cidade deixou de honrar os heróis do Dois de Julho para homenagear um deputado que nem chegou a governar o estado e tampouco gostava de residir na capital. Essa anômala usurpação permanece intocada.

Recente reportagem de TV mostrou a extensão do atraso do nosso interior, exibindo as carências das populações por causa da falta de água. A calamidade agravou-se pela precariedade do abastecimento com caminhões-tanques, sujos, infectos, disseminando disenteria, vômitos, doenças várias.

Na capital, o último decênio foi de degradação absoluta. A política de liberação dos gabaritos pelo ex-prefeito João Henrique inchou a cidade, enchendo-a de espigões, e ajudando a fazer do trânsito a reedição baiana do inferno. As pessoas chegam hoje a seus locais de trabalho deprimidas e exaustas. O mal permanece inalterado pela ausência de obras.

Gostaria de convidar o prefeito e o governador para um passeio de carro pelas ruas de Salvador, notadamente, nas horas do rush, pelo Iguatemi, Pituba, rua Oswaldo Cruz, na Mariquita, avenida Tancredo Neves, Paralela, tantos outros lugares. Deixe Wagner o seu helicóptero e ACM Neto o seu transporte especial. Vamos de carro, saindo das 16h30 em diante do Salvador Shopping para, através das ruas Amoroso Lima e Almerindo Rehen, alcançarmos a rampa – eu disse rampa, a estreita e precária rampa (para um só automóvel de cada vez) que desemboca na congestionada Tancredo Neves.

Estava eu outro dia naquele local, amargurando uma enorme fila que não se movia, cerca das 18 horas, quando o taxista, irritado e suarento, virou-se para mim e exclamou: “Doutor, isto aqui é o curral do capeta! Todos os dias é este suplício, não consigo sair do lugar, a prefeitura não se mexe, não sei por que não abrem uma alternativa pela rua Frederico Simões, façam algumas coisa, construam um túnel, um elevado!”, vociferou. Concordei, arrasado pelo imobilismo.

Há um slogan oficial muito usado pelo poder em Salvador que diz: “Sorria, você está na Bahia!”. Lembrei-me então do que podem pensar dessas palavras os moradores dos guetos do Nordeste de Amaralina, Curuzu, Pernambués, Pau Miúdo, Calabar, Vale das Muriçocas, San Martin, Calabetão, Iapi, Baixa de Quintas, Nova Brasília, Beiru, Boca do Rio, Mata Escura, Saramandaia, Boiadeiro, Lobato, Massaranduba e tantos outros bolsões de pobreza e miséria, todos residentes em becos e ruas esburacadas, usando os piores ônibus do Brasil, amontoados e sem ar-condicionado. É claro que só podem achar que tal slogan foi criado por um publicitário ou marqueteiro debochado.

Enquanto isto, faltando pão, vamos ao circo! No cenário arrasado da praça Cayru e seu entorno sustentado por vigas de ferro, a prefeitura ampliou o ciclo das festas para quatro dias de Réveillon! Mas, enfim, o mal é nacional. O Brasil é o país do carnaval e este ano será o da copa. Resta saber quando será o da saúde, da educação e da segurança dos cidadãos. E, sobretudo, quando será também o país da decência política.