domingo, 2 de junho de 2013

Touradas - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

O GLOBO - 02/06/2013

A alma ibérica se divide em duas, uma mais caliente e a outra menos. Portugal é uma Espanha ponderada. A divisão está evidente na tourada, essa metáfora para todas as dicotomias humanas. Na Espanha matam o touro, em Portugal apenas o irritam. Ainda não se chegou a um acordo sobre o quê, exatamente, toureiro e touro simbolizam. A metáfora não é clara. Razão x instinto? Cultura x natureza? Civilização x força bruta? Ou – como li em algum lugar – tudo não passa de um ritual de sedução, com o Homem subjugando a Mulher, a Besta Primeva e todos os seus terrores, numa espécie de tango sangrento em que não falta uma penetração no fim? Ou o toureiro gracioso é a mulher estilizada e o touro resfolegante uma paródia de homem? Enfim, seja o que for que se decide numa arena de touros, os espanhóis terminam o ritual, os portugueses deixam pra lá.

Na Argentina, os líderes militares da época da repressão foram processados e as atrocidades cometidas pela ditadura punidas, ou pelo menos amplamente discutidas. No Chile, aos poucos a história ainda mal contada do governo Pinochet se incorpora à história oficial do país – para ser reconhecida e expiada, para que reconciliação não signifique absolvição e para que nunca mais se repita. No Brasil, a repressão foi menos assassina do que na Argentina e no Chile – se é que se pode falar em graduações de barbaridade – e ninguém ainda teve que dar muitas explicações. No caso, a simpática irresolução portuguesa desserve a História. Pois, se o touro continua vivo, o que há para expiar? Aqui, até agora, venceu o deixa-pra-lá-ismo.

Já que temos que ser ibéricos, o que é melhor, ser português ou espanhol? Os espanhóis parecem viver mais perto do coração selvagem da vida. Os portugueses preferem menos drama e menos sangue. Voltando ao touro: uma tourada espanhola sempre acaba com o animal morto, com uma resolução. Uma tourada portuguesa pode ser um espetáculo emocionante, mas o touro sobrevive e nada se resolve. E ainda se discute se convém irritar o touro.

O centro - Caetano Veloso


 O GLOBO - 02/06/2013

Uberlândia, palavra inventada a partir do começo do nome da outra, juntou “uber” a “lândia”, ecoando uma inexistente (mas não impossível) palavra inglesa “uberland”

De repente me vi no centro do Brasil. Vim fazer uma apresentação em Uberlândia e, misteriosamente, entre cidades brilhando na noite de céu claro, apenas Uberlândia estava sob neblina tão densa que o aeroporto estava fechado. Tivemos de aterrissar em Uberaba. As cidades trazem à cabeça o prefixo “uber”, com o qual, é claro, seus nomes nada têm a ver, sendo Uberaba palavra indígena que, vejo no Google, significa “água cristalina”. Em outra busca, “água brilhante”. Lembrei-me logo de um amigo paraguaio que vive na Bahia e está sempre nas festas de Santo Amaro. Ele me corrige a pronúncia de Ypacaraí na gravação que fiz dos “Recuerdos” para o disco “Fina estampa”: o Y guarani é pronunciado como um U francês, só que com os lábios menos arredondados. É um U francês com menos bico. Esse U é a água, “beraba” é que é “brilhante”. No lugar onde achei “água brilhante”, o nome da cidade vem descrito como tendo se originado do tupi Y’beraba. A gente sempre soube que I, em tupi, é água. Esse Y deve ser uma vogal intermediária entre o I e o U, como no guarani paraguaio.

Uberlândia, no entanto, palavra inventada a partir do começo do nome da outra, juntou “uber” a “lândia”, ecoando uma inexistente (mas não impossível) palavra inglesa “uberland”. Há uma explicação que diz ser “uber” uma corruptela de “úbere”, conotando fartura. Mas a cidade tem tudo para merecer (também) o sentido que “uberland” sugere. Para quem vem de uma cidadezinha recolhida no Recôncavo Baiano, as cidades do Triângulo Mineiro parecem superurbes. Uma amiga mineira se disse curiosa sobre como reagiriam os “caubóis” de Uberlândia ao nosso “Abraçaço”. Na verdade, havia até mesmo uma sensação de cosmopolitismo no ar da sala durante o show.

Filhos de fazendeiros ricos, muitos jovens do Triângulo têm intimidade com festivais da vanguarda pop da Europa. Alguns foram estudar em universidades de primeira no primeiro mundo. E, se na própria Uberlândia a música sertaneja (agora sobretudo e sua vertente “universitária”) é que reúne as plateias mais multitudinárias, a juventude de Araguari é especializada em rock (com bandas indie locais). E Araguari é colada a Uberlândia. Assim, a plateia de “Abraçaço” tinha um jeito de plateia informada e atualizada. Os muitos casais adultos eram educadamente receptivos ao que tínhamos a oferecer — e ninguém parecia estar frustrado por “O leãozinho”, “Sozinho” ou “Você é linda” não constarem do repertório. E a garotada que já dançava um pouco, lá no fundo, desde o começo — e que veio, em pequenas representações, sentar-se no chão perto do palco — conhecia as músicas novas.

Ronaldo Lemos tinha me dito que há em Uberlândia uma igreja projetada por Lina Bo Bardi, a igrejinha do Espírito Santo do Cerrado (lindo nome), que, segundo ele, era a obra favorita da arquiteta italiana-brasileira que foi tão importante para mim e para Bethânia (sem falar em Glauber e todo o resto) na Bahia. Mas não tive tempo de ir ver nada: o atraso que a neblina provocou me pôs para correr do avião para o carro e deste para o palco. A sofisticação nascida da abundância dessa uber-teta (que fica na parte do mapa de Minas que corresponde ao nariz de Getúlio — que, quando eu era menino, nós víamos esse mapa como um retrato do fundador do Brasil moderno) se manifestou numa menina que estuda medicina, toca guitarra, já teve uma banda e conhece todos os grupos de rock da atualidade, além dos que se mantêm atuais pela sua importância histórica.

Escrevo estas palavras ao chegar a Goiânia. Voei de Uberlândia para cá, passando por cima de Brasília. Tendo tido de ir a Uberaba e encontrado com nativos de Araguari, fiquei com a impressão de ver muito do Centro do Brasil. O Centro. Saímos aqui para tentar comer num japonês que é tido como um dos melhores que há fora de Tóquio, mas este estava tão cheio (e com garotos e garotas bonitos sentados à porta, que nos pediram, a mim, a Ricardo Dias Gomes, Marcelo Callado e Pedro Sá, que tirássemos fotos com eles) que nós tivemos que ir à (excelente) churrascaria de Chitãozinho e Xororó. Tudo deu o gosto exato de onde estávamos. Mais que tudo, a conversa que tive com um casal maduro de Uberlândia, que se sente atraído pela novidade política que é Eduardo Campos, teme que a permanência de Dilma signifique a permanência daquilo que Mangabeira chama de “presidencialismo de coalizão” (embora ele seja pró-Dilma e descarte as opções). Era uma conversa “de centro”. Essa palavra, em política, ficou, no Brasil, muito desqualificada. Mas eu gosto quando se pode dizer que alguém é de “centro-esquerda”, “centro-direita”, “centro”. Às vezes assim a conversa fica mais clara.