sábado, 1 de fevereiro de 2014

Poesia e alegria - José Castello

O Globo 01/02/2014

Uma poesia que dança. Uma poesia
que coloca o jogo divertido
das palavras acima do protocolo
dos significados. Uma
poesia nômade, ambulante,
que passeia por vários mundos.
Eis a poesia de Luis Turiba, de quem leio
“Qtais” (7 Letras). Antes de tudo, o império dos
sons, como em “Ser minério é coisa sério”, poema
em homenagem a Minas e aos mineiros. Antes
de qualquer coisa, a busca do novo: “caminhar
é pisar chão/ sem pisá-lo de antemão”. O
poeta é um caminhante — é uma espécie de ambulante
que avança apoiado em seu cajado. Um
poeta libertário, cujo cajado (a língua?) dele
também se desvia. “Meu cajado é libertário/ temos
quase a mesma altura/ caminhando em paralelo/
olhando o mundo às avessas”.

Avançam os dois, “plugados à lei do impulso”,
em uma grande aventura zen. Vão aos tropeções,
mas deles, em vez de tirar dores, tiram lições.
O poeta caminha contra a lógica: “A lógica
dos lógicos já não me interessa/ (...)/ Meu tempo
está no vento peso q não pesa”. Avança sem
uma bússola, parece um sonâmbulo, Turiba nos
faz ver. “Sou cego e calado e escrevo ensimesmado”,
define-se. Ainda assim, cultiva uma intensa
luz interior. Diz a si mesmo: “Não apague a luz
interna e intensifique-se”. Sem direção, resta-lhe
a própria força para construir seu caminho: “levo-
me leve em voos sem lei/ meu fio terra é madeira
de fibra/ sou andarilho”. Carrega um cajado
“alado e desconfiado” e assim privilegia a leveza,
os voos e os grandes saltos. “Um fariseu
distraído/ afável & aviolado”.

Muitas vezes ligamos a poesia ao peso, à densidade,
ao sofrimento — mas é contra essas relações
difíceis que Luis Turiba escreve. É um poeta que
escreve, antes de tudo, para se divertir. A poesia
como brincadeira, como dança sem método e
sem partitura, como improviso. Assim Turiba
brinca enquanto faz poesia, e nós, seus leitores,
nos deliciamos. Vai buscar seus materiais nos cantos
mais remotos — como em “O que é o sol?”, segundo
ele escrito “a partir de um poema oral búlgaro
do século V”. Verdade? Mentira? E isso importa?
Interessa sim a distância que o poeta toma para desenrolar
seus versos. Para erguer-se em seu tapete
voador. Faz uma poesia que voa, mas que é também
uma poesia andante, que rasteja, que cheira o chão
e suas brechas. Seja como for, escreve uma poesia
que canta. Importante definir o
que faz? Não parece. “Ainda não
aprendi teu nome/ Mas já sei
(quase) tudo sobre”, ele diz, descortinando
uma resposta.

Busca um verso “arrítmico”, aos
soluços, aos impulsos. “Quisera
fazer um verso/ com a sublime
arritmia do amor/ um verso míssil/
neurastênico e febril/ ar do
dia anterior à criação do universo”.
Destino dos poetas, não só de
Turiba: estar às voltas com as origens.
“Um verso de trivela/ transverso e subversivo”,
prossegue em seu sonho. “Um verso de fogo e batom/
histórico, histérico e erudito”. Origem (fogo) e
beleza (batom) se misturam para anunciar uma estratégia
que o traz de muito longe e leva para mais
distante ainda. Matéria da poesia: o tempo, que nas
mãos de Turiba se converte em um material maleável
e perigosamente desdobrável.

Uma poesia na qual as identidades se misturam
e é assim que se aproximam, como está dito:
“quem manda em mim/ sou ela”. Poesia da mistura,
mas também da confluência e do diálogo feliz
entre as palavras. Nos versos elas encontram seu
lugar de honra, encontram provavelmente seu
berço. Por exemplo, quando Turiba
brinca assim: “caramba/ carambolas/
sou de jambo/ não
me amora”. Uma escrita contra o
senso, uma escrita de contrassensos:
“agnóstico/ benzo-me
ao olhar o Cristo Redentor”. Exatamente
como somos, seres de
contradição e de desmentidos,
seres instáveis, de pequenas demências,
dos quais a poesia é a
língua mais exemplar.

Há nela um gosto não só pelos
sons, mas pela desafinação. O poeta relata: “Mas
cuíca também falha/ Em plena Sapucaí/ Quebra a
vara, rompe o couro/ Desarma o circo e o estilo”. A
desafinação como uma nova maneira de os sons
se encontrarem e se desencontrarem. Como uma
outra arritmia, que perde o prumo, mas não deixa
de avançar. O poeta, precavido, multiplica seus
instrumentos. “Por isso, digo em sigilo:/ Tenho
duas cuícas/ Florença e Nikita”. Iguais, mas diferentes
— e é dessa diferença que vem a desafinação
inevitável e original. “Enquanto Florença
aflora/ Nikita quica/ E assim floreiam o mundo/
Desafinadas as cuícas”. Também a desarmonia
tem seu valor. Também o desajuste é promotor
de beleza, o poeta nos leva a ver. O mundo não é
uma orquestra afinada e impecável; ao contrário,
é um grande sopro de desencontros, e muita beleza
sai disso.

Um poeta, portanto, que desconfia das excessivas
habilidades. E que privilegia as diferenças.
Por exemplo, a estranheza que ele encontra nas
girafas. “ouvi dizer que elas dormem/ dez minutos
a cada hora/ também pudera, natureza mátria/
com aqueles pescoços quilométricos/ (que
um dia hei de beijá-los)/ um cochilo faz descansá-
los”. Girafas: exceções em um mundo de exceções,
e eis aí a origem da poesia. Nesses desencontros,
nesses desalinhamentos. Em um poema
como “Língua à brasileira”, Turiba evoca Caetano
Veloso, José Saramago, Guimarães Rosa, os irmãos
Campos, tornando difícil que o leitor vislumbre
uma ascendência nítida para sua poética.
Poeta da mistura, Turiba louva seus vários caminhos,
que volta a percorrer como um ermitão
em busca do próprio nascimento.

Aprecia o indecifrável, o vago, aquilo que causa
medo — tudo que os poetas de gabinete veriam
como obstáculo e atrito, ele enxerga como impulso
e leveza. Sabe que “dos signos, a linguagem é a
mais subversiva”. Por isso não se interessa em organizar
o desorganizado, ou em hierarquizar o
que não tem posição fixa. Não: Turiba é um poeta
em que a alegria de escrever (viver) serve de combustível
primeiro. Escreve “por escrever”, e por isso
é tão dono de sua escrita, ainda que ela lhe fuja a
cada verso, ainda que lhe dê rasteiras e subverta
sua própria palavra. As palavras se impõem, e Luis
Turiba sabe ouvi-las. Vê Exu (perigo, mas energia)
“até nas lesmas/ do mago Manoel de Barros”. Exu,
anjo das manhas, em torno de quem o poeta se
contorce para escrever.