sábado, 7 de dezembro de 2013

João Paulo - Eu já tenho candidato

Eu já tenho candidato
João Paulo
Estado de Minas: 07/12/2013

 
Jesus Apolonia e Angel Ronquilla durante o Mundial de Futebol de Rua no México: craques da vida real   (Tomas Munita/AP)
Jesus Apolonia e Angel Ronquilla durante o Mundial de Futebol de Rua no México: craques da vida real

A eleição é só no ano que vem, mas já tenho meu candidato: José Genoino. Não se trata apenas de um político sério e devotado ao Brasil, mas de um homem que teve coragem para enfrentar a ditadura com o risco da própria vida. Não é desses que, como muitos, hoje se multiplicam a cada ano a inventar um passado que não viveram e uma luta da qual não participaram. Ele não vai ser candidato, eu sei, mas votarei em alguém como ele.

Genoino teve que renunciar ao cargo. Está doente. Foi examinado por médicos para ver se poderia cumprir sua pena em casa. Havia uma torcida que vinha do Supremo Tribunal Federal para que ele voltasse para a cadeia. Quando a Justiça se torna vingança ou obsessão pelo castigo, alguma coisa anda errada. Não foi isso que a humanidade aprendeu com a história.

O presidente do STF, Joaquim Barbosa, parece determinado em seu empenho de fazer justiça, mesmo que para isso passe por cima da lei e afaste, por exemplo, o juiz natural de execuções penais para obter uma obediência mais cega e alinhada. Ver Genoino doente ser considerado um homem que foge às responsabilidades é no mínimo um erro de julgamento.

Não se trata sequer de voltar ao caso do mensalão. Já está julgado. O que chama a atenção é o rebaixamento do senso de justiça às conveniências de certa cobrança por punição que vem dos meios de comunicação de forma orquestrada e daí chega até as pessoas quase como histeria sem compaixão. Realizado o julgamento e determinadas as penas, o que deveria se esperar era a recuperação da institucionalidade, não a procrastinação dos efeitos da sentença como um opróbio.

Curiosamente, o destaque alcançado pelo presidente do STF acabou criando uma paradoxo. De um lado, impulsionado pelo estilo rígido e autoritário, o ministro Joaquim Barbosa passou a ocupar o lugar sempre reservado aos heróis construídos pela mídia: foi alçado a candidato à Presidência da República, sem passar pela via da política, nos moldes messiânicos típicos dos momentos de crise. No entanto, o mesmo homem que havia se tornado modelo de retidão foi sumariamente esnobado pelos partidos, que se apressaram em afastar qualquer possibilidade de aproximação.

É explicável: a recusa à política, típica dos comportamentos autocráticos, poderia corroer por dentro os partidos, que se tornariam em um ato muito menor que seu candidato ungido. Não cabe, no estilo de Joaquim Barbosa, a saudável capacidade de precisar dos outros ou conviver com a discordância. O Judiciário, sobretudo a câmara mais alta, padece por definição de um certo orgulho de origem: ela é instituída, mas no momento que passa a operar se torna defesa de qualquer controle.

Parece que vai ficando claro com o tempo que os mandatos vitalícios dos tribunais, sobretudo nas cortes mais elevadas, são um risco. O que a experiência possibilita em termos de conhecimento, a permanência na posição retira em favor de certa postulação de acerto por antonomásia. Os ministros do STF não são os mais preparados, tem ficado claro a cada dia, mas os mais bem relacionados. Com isso fica bamba a segurança jurídica e a independência política.

O STF não é apenas um órgão técnico, a forma de ingresso dos magistrados deixa clara sua vinculação política e a necessidade, portanto, de alternância. Além disso, um erro de origem teria como ser consertado sem que fosse necessária uma crise institucional. Com mandatos com prazos definidos, os julgadores estariam sujeitos às mesmas determinações dos outros mandatos. Melhor ainda se fossem eleitos, como é comum em alguns países com forte tradição judiciária. Por que, ao lado da reforma política para o Legislativo e o Executivo, não se pensa em estender o mecanismo democrático para o Judiciário?

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No ano que vem, a Copa do Mundo vai consagrar uma trajetória de equívocos: submissão aos interesses de uma organização privada (Fifa) e corrupta de acordo com processos internacionais, gastos desnecessários em obras desnecessárias, gastos exorbitantes em obras necessárias, supressão de leis nacionais (beber em estádio e livre comércio) em favor de patrocinadores privados, e por aí vai. O hediondo teatro da briga de torcidas (do mesmo time, o Cruzeiro) no domingo passado, em Belo Horizonte, foi uma prova do que pode o álcool em território de emoções anabolizadas pela rivalidade.

É sempre bom lembrar que a Alemanha não mudou em nada suas regras internas e o que os EUA, quando sediaram o torneio, puseram traves em campos de beisebol e futebol americano e deixaram a bola rolar. Aqui se derrubam estádios e se constroem estádios, que caem e matam brasileiros antes de ficar prontos. Essa conversa é velha, ainda que necessária até que o bom senso das manifestações volte a ocupar as ruas.

O pior, para quem gosta de futebol, é que os jogos serão de um esporte que já foi futebol e hoje é outro tipo de peleja, mais bruto e rápido. Mas nem tudo está perdido. Em julho do ano que vem, ao lado do torneio da Fifa, o Brasil recebe outro campeonato muito mais interessante, o Mundial de Futebol de Rua 2014, que traz seleções de jovens das Américas Latina e do Norte, da África e da Ásia. A Europa, sede da Fifa, não manda seus times. Eles não devem conhecer o futebol de rua, ou “callejero”.

Não é um jogo qualquer. É na verdade uma prática sociopedagógica, que ao lado da diversão (pode acreditar, futebol é divertido, não é só guerra e comércio) se volta para ações comunitárias e para a inclusão social dos participantes. Entre os países que praticam o futebol “callejero” estão Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Costa Rica, Equador, Colômbia e Panamá.

Como toda experiência social, as regras são negociadas entre as equipes e existem para tornar o esporte mais rico de significação humana. Além dos gols, contam para o placar final o alcance das metas estabelecidas, que podem ser a paz, a alegria, a solidariedade, a inclusão. O jogo limpo é melhor que o jogo vitorioso. Curiosamente, não existe juiz no futebol de rua. As dúvidas são arbitradas coletivamente. Como na vida.

Qualquer semelhança com a antiga pelada que você jogava com os amigos não é coincidência, mas preservação do mínimo de humanidade que ainda existe em cada um de nós.

A espada e a paz - João Paulo

A espada e a paz

Livro sobre a dimensão histórica de Jesus, Zelota, do historiador iraniano Reza Aslan, defende a raiz política da mensagem do nazareno. Obra vem causando polêmica em todo o mundo

João Paulo

Estado de Minas: 07/12/2013
 
Cristo Redentor, no Rio de Janeiro: uma das imagens mais conhecidas do maior revolucionário de todos os tempos   (Yasuyoshi Chiba/AFP)
Cristo Redentor, no Rio de Janeiro: uma das imagens mais conhecidas do maior revolucionário de todos os tempos

Jesus não é um só. Há o Jesus de Nazaré, homem pobre, trabalhador braçal, com todas as marcas de seu tempo, identificado com correntes contestadoras do domínio romano na Palestina: um ser político, de tendências revolucionárias, defensor da fé judaica. E há também Jesus, o Cristo, que depois de sua morte foi chamado de o “filho de Deus”, que está na base de uma nova religiosidade e fundou uma linhagem espiritual. Um Jesus da espada; um Jesus da paz.

Passados mais de 2 mil anos, o primeiro Jesus, um entre muitos messias que lutaram contra Roma e morreram na cruz, se tornou apenas uma sombra, o grande mestre do cristianismo, que tem sua obra descolada das origens políticas para dar relevo à mensagem de natureza religiosa e universal. O Jesus histórico é principalmente um judeu, com as paixões e contradições de seu tempo. O Cristo que emerge dos evangelhos é um mestre espiritual pacífico, que foi afastado de seu nacionalismo judaico para ser identificado com questões que não são deste mundo. Um Jesus que os romanos podiam aceitar sem temor de vingança pelo massacre de Jerusalém.

Um Jesus da política e um Jesus da fé.

Essa é a tese central do livro Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan, livro que vem causando polêmica. A explicação do desconforto e reação iracunda de alguns leitores é, mais uma vez, política: Reza Aslan é iraniano e muçulmano. Depois de bate-bocas em programas de televisão nos Estados Unidos e rejeição por parte de críticos católicos, o autor se viu em meio a situações de preconceito que envolvem os temas ligados à sua origem e fé. Pareceu, a seus críticos, que Reza Aslan escreveu seu livro para atacar o cristianismo e enxergar nele uma matriz revolucionária que mistura política e religião, o que seria característica de sua interpretação da história. Afinal, com alguma honestidade, os muçulmanos sabem que história e religião não se separam.

Mas Reza, que foi cristão na juventude e mora em Nova York, é um especialista em história das religiões, formado em Harvard e autor de obras importantes sobre o tema. Seu livro não é um ataque a Jesus, muito menos sofre de excesso de interpretação baseado em poucos fatos. Ao contrário, trata-se de um livro de história, erudito e extremamente legível, sustentado por ampla bibliografia. Cada capítulo ganha, ao final do trabalho, um verdadeiro ensaio bibliográfico atualizado, que sustenta as afirmações e interpretações do autor.

A busca da pluralidade de fontes se justifica. Sabemos muito pouco sobre o Jesus histórico a partir de depoimentos de seus contemporâneos. Os primeiros testemunhos escritos sobre Jesus de Nazaré vêm das epístolas de Paulo, escritas pelo menos 20 anos depois da morte de Jesus. Em seguida vêm os evangelhos, que, com exceção de Lucas, nem sequer foram escritos pela pessoa que os nomeia (um caso típico de obras pseudoepigráficas, comuns no mundo antigo) e datam de décadas depois da morte de Jesus. Em outras palavras, os evangelhos não foram escritos por testemunhas oculares da palavras e ações de seu personagem central: são obras de uma comunidade de fé. Não são fato, são reconstruções teológicas. Ou seja, eles nos dizem sobre Jesus, o Cristo, mas nada esclarecem sobre Jesus, o homem.

Reza Aslan mostra como foram escritos os evangelhos canônicos (Marcos, Mateus, Lucas e João), expõe suas contradições, esclarece sobre as fontes (entre elas o Q), além de revelar a origem de uma verdadeira biblioteca de escritores não canônicos, sobretudo a partir do século 2, que apresentam novas perspectivas sobre a vida de Jesus de Nazaré. Mas é ao agregar outras fontes – sobre a história de Jerusalém, a religião judaica e o Império Romano – que o autor dá a dimensão de seu projeto. O que seu livro revela é uma história dos primeiros séculos, tendo Jesus como foco. De certa forma, pode-se ler Zelota como uma biografia política de Jesus e seu tempo. Mais ainda: uma investigação sobre os motivos que levaram com que o Jesus histórico fosse substituído pelo Cristo.

Quarta filosofia O título do livro já uma pista. Zelota vem de zelo, uma inspiração para movimentos típicos dos judeus contrários ao domínio romano na região. Espécie de quarta filosofia – ao lado dos filisteus, saduceus e essênios –, os zelotas compunham um partido que tinha com compromisso inabalável com a libertação de Israel do jugo romano e com a afirmação do Deus único dos judeus. Zelo: era isso que reivindicavam para si, um cumprimento rigoroso da Torá e a recusa a servir a qualquer outro mestre. Ser zeloso era, desta forma, seguir as pegadas dos heróis do passado.

No entanto, o que era heroísmo para os judeus era crime para os romanos. O autor vai mostrar como se dava essa difícil convivência, com o domínio político na mão de Roma e o comando religioso a cargo do sacerdote do templo. A descrição do Templo de Jerusalém é impressionante, com sua movimentação humana, superstições, jogos de poder, fé e até centro de negócios, como um verdadeiro banco a fazer circular o dinheiro de várias regiões. O templo era ainda espaço de negociação entre o ocupante e povo subjugado, preso ainda aos pesados impostos devidos a Roma.

Eram comuns os profetas que se insurgiam contra esta ordem. Considerados messias (a categoria abrangia centenas de pessoas dispostas a anunciar o fim do domínio romano e conclamar à revolta), esses homens eram heróis para seu povo, mas bandidos para Roma. Eram geralmente presos, torturados e mortos de forma violenta, decapitados ou crucificados. Jesus foi um desses messias. Como explica Aslan, a placa na cruz de Jesus, com os dizeres “Rei dos judeus”, não era um sarcasmo, mas uma sinalização do crime pelo qual estava sendo crucificado. O crime de Jesus foi buscar o poder político. Possivelmente, o mesmo crime do “bom” e do “mau” ladrão mortos a seu lado. Ladrão talvez seja uma tradução para a palavra grega lestai, que significa bandido, a mesma designação dada ao insurrecto Jesus.

Zelota é rico em informações. O autor leva para o contexto original situações que hoje fazem parte de uma rica mitologia, como a profissão de Jesus, suas origens familiares, o local de seu nascimento, os milagres, a relação com João Batista, o poder de Herodes, o nascimento virginal, a escolha dos apóstolos, as discípulas, o debate de Jesus com os rabinos, a expulsão dos comerciantes do templo etc. Algumas palavras atribuídas a Jesus, como as proferidas acerca do poder de César (“a César o que é de César, a Deus o que é de Deus’’) ganham novo significado: deixam de ser um reconhecimento da separação entre matéria e espírito para se afirmar como cobrança da devolução da terra ocupada aos judeus, seus legítimos donos por determinação de Deus a seus filhos diletos. O que soava como universal era na realidade uma defesa particular da herança de um povo em sua aliança com o criador.

Por que o Jesus que nos legou a tradição surge separado de seu povo e de suas reivindicações políticas, tão claras quando se examina a história separada das envoltórias da fé? Para Reza Aslan, depois de combater por décadas as insurreições, o governo central de Roma envia tropas que dizimam o templo e escravizam o povo, massacrando tudo que encontraram pelo caminho. Uma devastação completa, que destrói Jerusalém e expulsa seu povo da terra de seus antepassados. A partir do ano 70 d.C., exilados da terra prometida por seu Deus, os judeus passam a viver como párias e entre pagãos do Império Romano.

Uma operação levada adiante pelos rabinos, a partir do século 2, vai criar um divórcio entre o judaísmo nacionalista messiânico (que levou à destruição de Jerusalém) e a fé judaica, que se volta para dentro, na tradição do judaísmo rabínico. O livro substitui o templo. Outro movimento vai atingir os cristãos, que para também se separar da identificação revolucionária de sua origem, e com o objetivo de afastar a violência do poder romano, passam a transformar Jesus de um judeu revolucionário em um líder espiritual pacífico. O que era interesse político e terreno passa a ser causa espiritual e salvação para uma outra vida. Algumas décadas depois da morte de Jesus, os seguidores não judeus de Cristo eram muito mais numerosos que os seguidores judeus. Em um século, a ligação entre judaísmo e cristianismo desapareceu.

Zelota busca a recuperação do Jesus histórico. Para isso, com as armas da pesquisa e da interpretação, questiona superstições, limpa floreios literários, faz a genealogia de textos e dá a real dimensão ao que é fato histórico e o que é teologia e mito. Pode parecer uma empresa questionável, já que o Jesus da fé venceu e se tornou hoje a realidade para centenas de milhões de pessoas. Mas a história não precisa de outra justificativa que não a busca da verdade.

Jesus foi um líder revolucionário – talvez o maior de todos os tempos – e um líder espiritual, ao mesmo tempo. Os dois universos não se separavam. Que o Jesus histórico, judeu, zelota e revolucionário, em sua luta permanente contra as injustiças, surja rico de significação humana é um alento a mais para quem tem fé em Jesus, o Cristo. E um exemplo a ser seguido pelos que não creem, mas querem um mundo melhor ainda nesta vida.
 (Editora Record/Reprodução)

Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré
• De Reza Aslan
• Editora Record
• 304 páginas, R$ 36,90