sábado, 26 de abril de 2014

Aproximação da poesia - José Castello

O Globo 26/04/2014

UMA PROSA QUE É POESIA. TALVEZ ESSA SEJA A MELHOR MANEIRA DE DEFINIR O NOVO ROMANCE DE VALTER HUGO MÃE

Uma prosa de fronteira, que se
deixa impregnar e definir pela
escrita poética. Uma prosa que
é poesia. Talvez essa seja a melhor
maneira de definir “A desumanização”
(Cosac Naify),
novo romance do português Valter Hugo Mãe.
Uma narrativa que é puro arrebatamento, conduzindo
o leitor — empurrando-o — para os limites
do êxtase, deixando-o, a cada página virada,
fora de si. Impossível ler o romance com serenidade
e temperança. A história de Halla, a
menina que perde sua irmã gêmea, Sigridur, e
com ela morre um pouco, é uma dessas narrativas
que não se lê facilmente. Narrado pela própria
Halla, o romance provoca sucessivos golpes
de admiração em um leitor que se torna cada
vez mais prisioneiro do livro.

“A poesia é a linguagem segundo a qual deus
escreveu o mundo”, diz o pai de Halla. “Nós não
somos mais do que a carne do poema”. Valter
Hugo Mãe adota a mesma filosofia de seu personagem:
não encara a poesia como decoração, ou
sedução, mas fundamento. O pai é um homem
simples da Islândia — onde se ambienta o livro
—, mas um homem que não cede um milímetro
de sua humanização, um homem que combate
suas feridas desumanas escrevendo versos. “Eu
perguntei: posso chamar a vida de poema. E ele
respondeu: podes chamar a vida de poema”. Para
ele, o poema não é uma exceção, o poema é a
matéria do mundo. “Ou podes chamar de normalidade.
A vida é a normalidade e deus é a normalidade.
O poema é normal”.

As palavras desse pai filósofo, que coloca versos
no lugar de cada coisa, regem a escrita de Mãe, ela
também aturdida e submissa à força da poesia. O
pai ensina à filha — sozinha e desamparada desde
a morte de Sigridur — o amor pelos livros. “Os livros
eram ladrões. Roubavam-nos do que acontecia”.
Mas os livros são também generosos, reconhece:
“Oferecem-nos o que não nos acontece”. A
poesia seria não só um instrumento de nomeação
do mundo, do qual nada escapa exceto Deus —
aquele que não pode ser nomeado —, mas um meio
de construção do próprio mundo.

“Éramos gêmeas. Crianças espelho. Tudo em
meu redor se dividiu por metade com a morte”.
Com a perda da irmã, Halla passa a se sentir violentamente
só. Não desgruda do túmulo de Sigridur,
pedaço de chão que as pessoas chamavam de
“criança plantada” e no qual julgavam
que a morta pudesse germinar.
Halla se pergunta se, com
sua morte, a alma de Sigridur se
instalou dentro dela. “Começaram
a dizer as irmãs mortas. A
mais morta e a menos morta”.
Aos 11 anos de idade, Halla é, assim,
vítima de um discreto assassinato.
Passa a ser vista como
a parte viva da irmã que se foi —
morre um tanto. Passa a sentir
como quem habita um inferno e
o inferno são os outros — que não a perdoam por
ter sobrevivido a Sigridur.

Desmente o pai: “O inferno não são os outros,
pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem
sozinho é apenas um animal”. É a solidão —
que ela experimenta de maneira tão radical — que
nos desumaniza. Continua o pai filósofo: “Sem
ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo
pensa tão sem razão quanto pensam os peixes”. O
pai tenta convencê-la de que a solidão não existe,
de que ela é só uma ficção que criamos para escapar
dos outros. O humano é o revelado — e só nos
revelamos para os outros. “E deus era o desconhecido.”
Arremata: “Cada coisa que nos revelasse tornava-
se humana. Apenas o que
nos transcendia podia ser deus”.

A família não aceita a morte de
Sigridur e fala, sem nenhuma piedade,
das “irmãs mortas”. Mas
Halla não se deixa matar. A figura
do amor precoce, sinal da humanização,
se manifesta na presença
estranha e ambígua de Einar,
ser de idade e feições indefinidas,
que lhe causa repulsa,
mas também atração. Halla o vê
como “um ogro malcriado”, mas
isso não impede que se envolvam. Ele vive naquele
limite em que a ingenuidade e a monstruosidade
se confundem. No mundo de Halla as coisas se
dissolvem e se misturam. Quando pensa em deus,
por exemplo, pensa na Islândia. Quando estava
para morrer, Sigridur, retida na mesma confusão,
lhe perguntou: “O que acha que a Islândia quer de
mim?” A irmã morta achava que deus “era o corpo
deitado da Islândia”. Era preciso aceitar essa
ausência de limites entre eles, até porque descobrir
o nome e o significado de deus “não compete
a ninguém”. E Halla respeita essa proibição.

Também a linguagem, Halla descobre, está
imersa na incerteza e na confusão. “As palavras
são objetos magros incapazes de conter o mundo.
Usamo-las por pura ilusão. Deixamo-nos iludir assim
para não perecermos, de imediato, conscientes
da impossibilidade de comunicar e, por isso, a
impossibilidade da beleza”. O tema da beleza está
no centro de “A desumanização”. Pode a beleza se
guardar na feiúra? Pode o repulsivo ser, ao mesmo
tempo, belo? Será a beleza alcançável? A beleza
maior estaria na firmeza da linguagem, que não
existe. “É o que todos almejamos. Que acreditem
em nós. Dizemos algo que se toma como verdadeiro
porque o dizemos simplesmente”. A beleza
não tem segundas intenções. Ela não se guarda
nos grandes arroubos, mas na alma de uma menina
perdida. Também a verdade só se configura
quando é pronunciada por uma menina que não
sabe o que diz. Assim se refletem alguns dos alicerces
da escrita de Valter Hugo Mãe, que desmentem
o mundo prático e arrogante — o mundo de
pessoas cheias de si — em que vivemos. Um mundo
regido por projetos, interesses e intenções secretas.
Indiferente à poesia.

Quanto às palavras, não há como admirar-se de
sua fraqueza. “As palavras não são nada. Deviam
ser eliminadas. Nada do que possamos dizer alude
ao mundo que é”. A verdade não se guarda nas palavras,
mas em suas entrelinhas. Halla pensa nas
pedras: “Nenhuma pedra se entende por caracteres.
As pedras são entidades absolutamente autônomas
às expressões. As pedras recusam a linguagem”.
Talvez se possa tomar como pedra, também,
o objeto de um romance. Não o tocamos. Só a poesia
consegue dele se aproximar. Daí a eficácia da
linguagem poética, muito mais potente que a objetiva.
Esta fecha caminhos, aquela os abre. Princípios
que regem a escrita de Valter Hugo Mãe, agora,
de forma não só intensa, mas atordoante.

SE MEU PIANO FALASSE

CL. Gente Boa O Globo 26/04/2014

CLEO GUIMARÃES
genteboa@oglobo.com.br
COM MARIA FORTUNA, ISABELA BASTOS E THAMINE LETA


João Donato recebe Roberto Menescal e Caetano Veloso numa ‘jam session’ em que estreou instrumento personalizado

No dia em que um piano
novinho chegou à casa
de João Donato, na Urca,
ele recebeu também a visita
de amigos ilustres, como Roberto
Menescal e Caetano Veloso.
Menescal daria só uma
“passadinha”, mas, claro, tudo
acabou no violão. E aí.... O trio
emendou clássicos da bossa
nova, como “O barquinho”, do
próprio Menescal, além de
parcerias de Donato e Caetano
(“A rã” e “O fundo”).

O encontro foi filmado por Tetê
Moraes, que dirige a série “João
Donato”, com roteiro de Lysias
Enio, irmão do compositor. Estreia
no Canal Brasil em dezembro
e celebra os 80 anos do
compositor. “Mostraremos a
primeira valsinha que ele compôs
para a namorada, sua participação
nos primórdios da bossa
nova, e ele hoje, no auge”,
conta Tetê, que também dirigiu
o documentário “Nasci para
bailar”, sobre uma viagem do
músico a Cuba, em 2008.

Antes de a sessão musical começar,
o afinador Ferdinando
Pietro Giuseppe Giaquinto deu
um trato no piano de Donato, o
tal que havia chegado naquele
dia. O instrumento, fabricado
pela Fritz Dobbert, é assinado
pelo músico. É feito de curupixá,
madeira preservada do Acre,
a terra de Donatão, como ele é
chamado pelos amigos. Por
dentro, é todo de jatobá. Tudo
sustentável. Um luxo.

Copa do Mundo estranha
Uma constatação intrigante: em ano
de Copa do Mundo no Brasil, a
Secretaria de Ordem Pública não
recebeu nem um pedido de
autorização para a decoração de ruas
da cidade. Lembra das faixas,
bandeirolas, pinturas no chão e de
todas aquelas manifestações de
patriotismo típicas das outras copas?
Parece que ficaram no passado, pelo
menos na Zona Sul viraram raridade.

Aliás e a propósito

Não há nenhuma proibição ou
restrição da prefeitura para a
decoração das ruas da cidade em
época de Copa do Mundo. O povo é
que não quer mais fazer mesmo.

Por falar em Copa...

A Rio de Paz vai levar 12 bolas da Copa
do Mundo ao Corcovado, onde serão
fotografadas nas mãos de voluntários
com a imagem do Cristo Redentor ao
fundo. Pintadas com cruzes
vermelhas, as bolas representam as
cidades-sede e são as protagonistas da
campanha “É justo?”, criada pela
entidade para questionar os gastos
públicos com a Copa.

‘Caos no Brasil!’

Imagens da guerra recente em
Copacabana foram destaque na versão
online do jornal alemão “Bild” de
anteontem. A reportagem começa com
a frase “Caos no Brasil!”, cita a greve da
PM em Salvador (39 mortos), e dá dicas
de como agir no Rio (“só pegue táxis
oficiais; não visite favelas”). De acordo
com o jornal, Cristiano Ronaldo, da
seleção portuguesa, proibiu a família de
vir, porque o Brasil é muito perigoso.

Com delicadeza
Fernanda Montenegro, que fará uma
lésbica na próxima novela de Gilberto
Braga, “Babilônia”, fez um pedido ao
autor: que sua personagem seja o
mais feminina possível. Fernandona
formará um casal com Nathalia
Timberg e quer passar longe dos
velhos estereótipos da mulher
machona e abrutalhada.

Mundo cão

Há uma cachorrinha da raça bichon
frisé hospedada há nove meses numa
das suítes mais chiques do Copacabana
Palace. Lady Bella acompanha seu
dono, Lord Bowen, que se apresenta
como lorde inglês e decorou o quarto
com fotos da cachorra para ela se sentir
“at home”. Quando o lorde viaja a
trabalho (frequentemente), cinco
funcionários do hotel se encarregam de
cuidar da cadela, que tem uma
alimentação mais rica e balanceada
que a maioria dos brasileiros.

No colinho do Felipão

Entrevistado por Maitê Proença,
Murilo Rosa e pela equipe do
Fantástico, o técnico Felipão
ficou surpreso, quando, ao fim
do papo, Maitê o abraçou e se
sentou em seu colo. “Ih, Dona
Olga vai ficar com ciúme”,
brincaram os jornalistas, numa
referência à mulher do treinador. A
conversa vai ao ar amanhã, na Globo.

Olha ela aí
Filha de CarmenMayrink Veiga,
Antonia Frering interpreta uma
dona de casa inglesa acomodada
com o casamento de mais de 20 anos
na montagem brasileira da peça
“Relações aparentes”, que estreou
 no Sesc Ginástico.A peça de Alan
Ayckbourn fez o maior sucesso
na temporada de Londres.

A próxima vítima
Um mês depois do despejo da
centenária A Guitarra de Prata, a bola
da vez na Rua da Carioca é a loja de
guarda-chuvas Vesúvio, que funciona
há 67 anos no número 35. Como não
houve acordo sobre os novos valores do
contrato de locação, o banco
Opportunity entrou com ação de
retomada do imóvel na 10ª Vara Cível.

Segue a história

A Vesúvio contra-atacou com uma
medida cautelar contra o despejo, o
que tem retardado o processo.

Aqui não, violão

Um abaixo-assinado de vizinhos
pretende acabar com a alegria dos
frequentadores de festas com gente
pelada que estão virando moda na
cidade, como a “Pool me in”, na Casa
Philippe, na Glória. “Eles não têm
alvará para esse tipo de festa”, reclama
o vizinho Wolfgang Kunath, que vem
colhendo as assinaturas. “O barulho é
insuportável e às vezes, só acaba às
três da manhã”. A mansão tem
história: ali viveu a Condessa de
Barral, amante de Dom Pedro II.

‘Fulana recebe as amigas’

A permuta da vez entre famosas
grávidas são os chás de bebê.
Celebridades que esperam neném
ganham das revistas a decoração e os
doces da reunião com as amigas e dão
em troca a exclusividade na cobertura
do “evento”. Até pouco tempo, isso
acontecia com os casamentos, em
trocas que envolviam até a cobertura da
viagem de lua de mel.

Os cadeados do amor
Chegou ao Rio a moda europeia de
colocar, em pontes da cidade, cadeados
com os nomes de casais apaixonados e
jogar a chave fora. Três românticos
fizeram o mesmo na ponte elevada na
ciclovia da Lagoa, perto do Caiçaras.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

ENTREVISTA/JANET BALASKAS » Em defesa do parto ativo

ENTREVISTA/JANET BALASKAS » Em defesa do parto ativo

Obstetra sul-africana defende que mulheres deem à luz na posição que se sentirem mais confortáveis. Segundo ela, o método promove a saúde física e mental das mães



Rodrigo Craveiro
Estado de Minas: 24/04/2014

 


"Em um parto ativo, a mulher tem liberdade para seguir seus instintos. Ela se movimenta, relaxa em qualquer situação que se sinta confortável e dá à luz em posição vertical, ou ajoelhada, de cócoras ou na água" 

"Existe uma guerra entre a maioria dos obstetras e as mulheres brasileiras que querem um parto natural, quando deveria haver parceria e cooperação"  
Em 4 de abril de 1982, uma obstetra sul-africana organizou uma passeata no norte de Londres, durante a qual 60 mil pessoas exigiram o direito da mulher a dar à luz em qualquer posição que escolhesse. O chamado Movimento pelo Parto Ativo acabava de ser criado por Janet Balaskas, uma das mais respeitadas do mundo na área. Foi uma resposta à dificuldade imposta pelo Hampestad’s Royal Free Hospital, que obrigou uma gestante a assinar termo de responsabilidade, isentando quatro parteiras de culpa, quando ela tentava dar à luz em quatro apoios.

No fim, ela cedeu e o parto ocorreu na posição ginecológica. “Eu não fazia a menor ideia de que seria a fundadora do movimento. Ainda acho isso inacreditável”, afirmou Balaskas ao Estado de Minas, durante a passagem pelo Brasil. Em entrevista, ela assegurou que o parto ativo é o mais natural método de concepção e enumerou benefícios para a mãe e o bebê.

Balaskas também criticou a decisão da Justiça do Rio Grande do Sul, que, no fim do mês passado, determinou que uma gestante teria que se submeter à cesariana, mesmo contra a própria vontade. “Eu entendo essa situação como uma violência obstétrica”, comentou. No último dia 10, a sul-africana Janet Balaskas visitou a Casa de Parto de São Sebastião, no Distrito Federal, e promoveu uma palestra na Universidade de Brasília (UnB), com a participação de Maria Esther Vilela, coordenadora do Programa Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde; e de Daphne Rattner, professora da UnB e presidente da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (Rehuna).

Repercussão nacional

A Justiça do Rio Grande do Sul determinou, em 31 de maço, que Adelir Carmen Lemos de Goés, de 29 anos, fosse submetida, contra a vontade dela, a uma cesariana em um hospital de Torres, no litoral norte do estado. Ela estava grávida de 42 semanas e, segundo a juíza que expediu a decisão, Liniane Mog da Silva, “o bebê estava em pé no útero, sendo necessária uma cesariana, por indicação médica”. Adelir tinha a intenção de que o parto fosse natural. Ao ser atendida no Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, ela foi informada da necessidade da cesariana, “quis deixar o hospital para fazer o parto em casa e assinou um termo de responsabilidade”. O Ministério Público foi acionado. Duas viaturas da Brigada Militar e uma ambulância buscaram a gestante em casa. Ela retornou ao hospital acompanhada de um oficial de justiça e foi submetida ao procedimento cirúrgico no dia seguinte. Não houve complicações no procedimento, mas Adelir reclama que teve a escolha do parto natural “roubada”.

Por que a cesariana desperta tanta polêmica e não é considerada o melhor tipo de parto?
Há vários tipos de cirurgia cesariana: a eletiva, aquela feita durante o trabalho de parto, e a de emergência. Atualmente, no Brasil, a taxa de cesarianas está próxima de 60%. É um índice bastante alto. A Organização Mundial da Saúde (OMS) defende que a taxa deve estar entre 10% e 15%. Quando esse índice ultrapassa 15%, os prejuízos são maiores que os benefícios. A cesariana traz riscos tanto para a mãe quanto para o bebê e, mesmo que ela seja às vezes necessária e que salve vidas, um parto como o que você descreve nesta pergunta é uma extração cirúrgica. Não é um parto. Todos os inúmeros benefícios que a natureza traz para a mãe e o bebê durante o processo de parto são perdidos.

Quais são esses benefícios?
Eles incluem os chamados hormônios do amor, que regem o nascimento. No momento do parto, mãe e bebê estão repletos desses hormônios e formam um vínculo forte, que é impossível de ser replicado em uma cesariana. Em um parto natural, o bebê nasce por meio de um ato de paixão e de amor, e a mãe faz sua entrada na maternidade em um estado de êxtase, sentindo-se bem e cheia de energia, em vez de ter que passar por uma recuperação pós-operatória de uma cirurgia de grande porte. A amamentação é mais fácil e mais bem-sucedida; a depressão pós-parto se torna muito improvável de acontecer, e a mãe achará mais fácil cuidar de seu bebê.

O que é o parto ativo e que benefícios ele representa para a mãe e o bebê?
Em um parto ativo, a mulher tem liberdade para seguir seus instintos. Ela se movimenta, relaxa em qualquer situação que se sinta confortável e dá à luz em posição vertical, ou ajoelhada, de cócoras ou na água. Ela pode se soltar e se entregar para o processo natural que vai parir o bebê. O parto não é algo que fazemos — ele acontece. Os principais benefícios são a ajuda da força da gravidade, que torna tudo menos dolorido para a mulher e mais fácil para o bebê; o suprimento de oxigênio para o bebê e para o útero é melhor; os diâmetros da pélvis ficam maiores; e as contrações uterinas se tornam mais eficientes.

Que tipo de precauções é preciso tomar durante esse tipo de parto?
Como não é um procedimento cirúrgico, um parto ativo não exige nenhum cuidado especial em relação à higiene, a não ser o bom senso. O bebê está naturalmente protegido pelas bactérias que estão no corpo da mãe, pois ambos compartilham dos mesmos fatores imunes. Provavelmente, é mais higiênico parir em casa, rodeada por bactérias familiares às quais a mãe e o bebê terão uma resistência natural. No parto, não somos diferentes dos outros mamíferos, e não ouvimos falar de infecções serem um problema comum entre os animais, ou no mundo selvagem.

Então, o parto ativo é o mais natural que existe?
O parto ativo não é nenhuma novidade. Não é um método. As mulheres vinham parindo de forma ativa por milhares de anos em todo o mundo — inclusive no Brasil —, antes de a cirurgia cesariana assumir. Parto ativo é apenas uma maneira de descrever um parto natural. Só há um tipo de parto, e os princípios de um parto ativo são universais e verdadeiros.

Uma gaúcha de 29 anos foi  obrigada pela Justiça a fazer uma cesariana contra a própria vontade. Como a senhora vê esse caso?
Eu entendo essa situação como uma violência obstétrica. Todas as mulheres têm o direito de consentir e de recusar qualquer procedimento feito em seu corpo. Se a cirurgia foi realizada sem o consentimento prévio dela, eu consideraria isso um abuso dos direitos humanos básicos. Isso aponta para a necessidade de uma melhor comunicação e colaboração entre as mulheres e os médicos, e uma compreensão muito mais profunda da fisiologia do nascimento por parte dos médicos e dos pais. No momento, existe uma guerra entre a maioria dos obstetras e as mulheres brasileiras que querem um parto natural, quando deveria haver parceria e cooperação. As mulheres, hoje, são muito mais informadas sobre o parto. Elas têm opiniões bem formadas e desejos em relação ao nascimento de seus bebês. Elas conhecem seus direitos. Penso que os médicos se beneficiariam muito se ouvissem o que as mulheres no Brasil estão dizendo e se tentassem oferecer mais apoio às que querem parir naturalmente, ao mesmo tempo em que oferecem apoio obstétrico quando necessário.

Em que culturas o parto ativo é considerado uma norma?
O parto ativo era a norma em todas as culturas antes do advento da obstetrícia moderna. No mundo de hoje, é difícil encontrar uma região onde ele seja a norma. No entanto, nos lugares onde há uma forte cultura para o parto natural, o parto ativo é parte fundamental. Em tais locais, os resultados geralmente são muito bons, com uma taxa de complicações muito baixa. O parto ativo é seguro, traz satisfação e promove saúde física e mental ótima para o recém-nascido. Isso dá ao bebê uma base de resistência a doenças e um sistema imunológico forte por toda a vida. Essa é uma das muitas razões pelas quais mulheres inteligentes e bem informadas queiram dar à luz naturalmente os seus bebês. Foi isso que me motivou no início. No Reino Unido, estamos em uma situação em que o parto ativo é comum, se não for a norma. Há muito respeito pelas mulheres que fazem essa escolha, e o sistema nacional de saúde lhes oferece, gratuitamente, condições e recursos para utilizar centros para parto normal e para o parto domiciliar planejado.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dom Murilo Krieger, um bom pastor - Maria Stella de Azevedo Santos

A Tarde?BA - 23/04/2014

Maria Stella de Azevedo Santos
Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá
opoafonja@gmail.com

A Bahia experimentou, de novo, uma greve que poderia ter tomado proporções ainda mais drásticas do que as que ocorreram. Eu não gostaria, ou melhor, não poderia tecer maiores comentários sobre o ocorrido, pois não há nada pior do que o “achismo”, isto é, comentar sobre assuntos sem que se tenha envolvimento e, consequentemente, conhecimentos profundos sobre os detalhes que os envolvem. Entretanto, não posso também me eximir de utilizar o referido fato para refletir sobre o importante papel do sacerdote na sociedade. Aproveito, então, para agradecer a interferência de domMurilo Krieger, arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, ao tempo em que parabenizo sua coragem e me solidarizo com sua tristeza demonstrada pelos homens pensarem de maneira individualista e não comunitária.

Dom Murilo Krieger se comportou como um verdadeiro sacerdote. Um sacerdote está no mundo para servir onde se precise dele, por isto é comparado a um pastor nômade, que vai onde o “rebanho” necessita de condução. Sua função implica procurar ouvir e intervir com paciência e compaixão. Tendo calma na medida certa e exercendo sua missão no mundo, o sacerdote recebe como retorno paz e alegria. Digo isso, pois tenho certeza que a tristeza que enxerguei nos olhos de dom Murilo Krieger e que ouvi através de suas palavras durante uma entrevista que deu sobre a greve não terá assento em seu coração.

Os africanos chamam de ixé ixalé o trabalho feito comconhecimento de seus fundamentos. Não só os trabalhos, mas também as opiniões devem ser bem fundamentadas. Por essa razão é que no início do artigo disse que falaria sobre a greve ocorrida fazendo um recorte da importante participação de um religioso. Afinal, as alegrias e dores vivenciadas pelos religiosos são bastante conhecidas por mim.

Ifilelowo é como os africanos chamam o trabalho libertador, aquele que é feito comabnegação. O verdadeiro religioso se entrega de maneira inteira e profunda. Realiza seus trabalhos não como uma carga que precisa ser carregada e, sim, como uma missão que precisa ser cumprida. “O pastor simboliza a vigília; sua função é um constante exercício de vigilância: ele está desperto e vê.” O verdadeiro religioso se coloca na vida como um servo e até mesmo como escravo, uma vez que se dispõe a ficar sob o domínio dos seres superiores. Ele realiza a missão que lhe foi destinada renunciando à sua própria vontade, com desapego do interesse próprio, com generosidade e com sacrifício, pois ele sabe que seu ofício foi consagrado.

Os religiosos constroem pontes, como bem disse dom Murilo. Nossa função é unir, é religar. Somos, cada um, elos de uma grande corrente que nos une uns aos outros e que une os homens aos deuses. Que todos nós, religiosos ou não, façamos nossos trabalhos com alegria, com entrega total e profunda, para que possamos saltar por cima dos obstáculos e seguir em frente.

Para melhor enaltecer o trabalho dos verdadeiros religiosos, inspirando-me na atitude de dom Murilo, tomo como empréstimo o inesquecível rap brasileiro Vive Pra Servir, Serve Pra Viver:

“Sem arrependimento dispenso ressentimento, sempre atento ao ensinamento que eleve o conhecimento. Ter memórias, glórias, histórias, vitórias pra contar é ummotivo pra não cansar, enquanto não se alcançar. É o que vai determinar quando tudo terminar, se tu veio só a passeio ou tentando direcionar. Um dois três já que ninguém veio pra ficar, então resolve, qual impressão você quer deixar? De quem fez o que podia pra cumprir a missão, ou de quem tinha na mão e não prestava atenção... Não saber da própria função, pensar agora pro seu tempo por aqui não ser em vão. Então, ser ou não ser eis a questão, servir ou não servir é o dilema de todo ser vivo... Há males que vêm pra bem, como há bens que vêm pro mal, a distinção do que é real é o ideal essencial.

“Nem adianta se esconder, que a fuga te leva ao nada, perdido na encruzilhada com alma estilhaçada... Porque tem Judas que te ajuda, te sonda e te suga. Não julga!... Que seja, mas que a força esteja com você, pra decidir se vai servir ou se vai se render.”

sábado, 19 de abril de 2014

Um cinema chamado saudade - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA  - 19/04/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da
Academia de Letras da Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Estão em andamento preparativos para o relançamento do livro Um cinema chamado saudade, de Geraldo Leal, já falecido, e do seu sobrinho Luís Leal Filho, cuja primeira edição é de 1997. Trata-se de meritória obra de pesquisa, talvez, pela abundância de dados, sem paralelos no Brasil, e que em boa hora a Assembleia Legislativa da Bahia, pelo seu setor editorial, tão competentemente dirigido pelos dinâmicos Bina e Délio, integrará em seu catálogo.

Não pretendo aqui efetuar uma resenha do livro, que, pela riqueza de informações, mereceria apreciação mais detalhada de críticos de teatro, cinema e historiadores emgeral. Na verdade, o que desejo é evocar a dedicação de duas figuras às coisas de teatro e cinema na Bahia: a primeira é o próprio Geraldo Leal, que, sem formação específica de historiador, foi uma das mais espontâneas vocações de pesquisador que conheci na Bahia.

Quanto à outra figura, vou puxar brasa para a sardinha da minha família, ou seja, pretendo falar um pouco sobre a figura excepcional do meu avô João Oliveira, fundador do Cine-Teatro Jandaia, que a incúria e a omissão dos órgãos ditos culturais do Estado e da Prefeitura de Salvador permitiram que se transformasse numa pirâmide de escombros.

Dentista de profissão, Geraldo Leal viveu grande parte da sua vida imerso nos alfarrábios e documentos existentes no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, tão zelosamente preservados pela sua eficiente presidente Consuelo Pondé de Sena, campeã na luta contra dificuldades tão comuns na vida das instituições brasileiras.

Todas as vezes emque precisei recorrer ao instituto em busca de dados para meus livros, lá encontrei, obstinado e incansável, Geraldo Leal a remexer papéis velhos, desenterrando, de uma pilha enorme de jornais antigos, informações sobre a fundação e a existência de antigos teatros e cinemas baianos, além de compulsar com devoção a pouca bibliografia existente sobre esses assuntos.

Era, além de grande pesquisador, um conversador educado e amável, que sentia prazer em trocar com seus interlocutores informações variadas sobre temas comuns, que sempre enriquecia com observações pertinentes. O que estivesse ao alcance das suas pesquisas ele colocava a serviço do interesse dos demais frequentadores do instituto. Não se limitava a assuntos ligados a seus livros ou áreas de conhecimento.

Prestimoso, era uma referência para contatos úteis, uma fonte permanente de incentivos e de informações. Além dos seus incomparáveis trabalhos sobre cinema e teatro na Bahia, ocupou-se largamente das coisas do nosso passado, pois a sua mais forte vocação era revolver o legado da vida baiana de antigamente para fazê-lo retornar à convivência do presente.

Foi o interesse de Geraldo Leal pelas primeiras manifestações do cinema na Bahia que o levou ao encontro da grande figura do meu avô João Oliveira, um autêntico pioneiro do cinema brasileiro. Empresário de sucesso emmúltiplos ramos de atividade, homem rico que morava na Vitória e já naquela época possuía sofisticados automóveis, nos quais levava os sete filhos a passear nos embrionários desfiles carnavalescos de Salvador, João Oliveira enterrou fortuna e saúde no desafiador projeto de erigir na Bahia, no início dos anos 40, o mais belo cinema e teatro da sua época, o Jandaia, num terreno que possuía na Baixa dos Sapateiros.

Não era uma simples casa de espetáculos. Era um palácio “art nouveau”, embelezado com alfaias e rico acervo ornamental trazido da França. O sistema de iluminação interna do Jandaia não tinha paralelos, consistindo em fiações embutidas com lâmpadas coloridas à mostra, que acendiam alternativamente. A plateia acomodava nas cadeiras, galerias e camarotes de luxo mais de 2.500 confortáveis unidades. A ornamentação das paredes e do imenso teto, obra audaciosa de engenharia, era feita com estátuas de belos relevos de mulheres nuas em estuque, assinados por artistas franceses.

Era, pois, uma obra de arte. Hoje, como tantas coisas na Bahia, é uma lembrança sepultada em ruínas.

Semana Santa de outrora - Luiz Mott

A Tarde/BA - 19/04/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Na infância e juventude dos/das coroas
nascidos como eu no século passado
(sou de 1946), Semana Santa e Páscoa
eram coisa muito mais solene do que o atual
consumismo pós-moderno. Começava mesmo
na quarta-feira de Cinzas, com a cruzinha
de cinza na testa e abstinência de carne nas
sextas-feiras da Quaresma.

A procissão de Ramos, no domingo que
antecede a Páscoa, era penitência gostosa,
festiva, lembrando a entrada gloriosa de Jesus
em Jerusalém. Os ramos de palmeira eram
guardados para afastar doenças e as ciladas
do demônio. Quinta-feira Santa, chamada na
Bahia de “maior”, era dia soleníssimo de visitar
igrejas, assistir à missa da instituição da
eucaristia e a cerimônia do lava pés: confissão
e comunhão obrigatórias.

Na Bahia há a tradição persistente do banquete
com tudo que é comida de azeite, incluindo
obrigatoriamente bacalhau e vinho
tinto. Nada dessas comilanças esdrúxulas na
minha Pauliceia de outrora.

A sexta-feira Santa era dia de passar fome:
no tempo de minha mãe e avó, não se comia
quase nada, quandomuito, fazia-se a consoada:
“leve refeição noturna, sem carne, em dia de
jejum”. Dia proibido de varrer a casa, interditado
cumprir o dever conjugal e se divertir.
Nas rádios, só música clássica, triste. Nos cinemas,
filmes da Paixão de Cristo. Às 15 horas,
cerimônia da adoração da santa cruz, seguida
da procissão do SenhorMorto, comcantoria da
Verônica e o reco-reco das matracas.

No sábado santo, na vigília pascal, o longo
ofício das trevas e solene acendimento do
círio, matéria-prima para confecção dos valorizados
agnus-dei, esses pequeninos patuás
católicos, antídotos contra as tentações infernais.
Comunhão pascal obrigatória.

À meia-noite, hora oficial da ressurreição
do crucificado, muito alarido de sinos, buzinas,
gente na rua batendo pedra nos postes
de ferro. Nas periferias ainda se queimava o
Judas. Ceia com leitoa assada, pururuca.

No domingo de Páscoa, os deliciosos ovos
de chocolate da Lacta. Nos lares mais abastados,
da Kopenhagen. Aleluia, aleluia!

Noll em viagem - José Castello

O Globo - 19/04/2014

Poucos livros que conheço retratam com tanta dramaticidade o nascimento da literatura quanto “Lorde”, romance que João Gilberto Noll publicou em 2004 pela editora Francis, ganhou o prêmio Jabuti em 2005, e agora é relançado pela Record. O romance ilustra também a nova figura do escritor como um eterno viajante que, sufocado por uma multiplicidade de destinos, muitas vezes já nem sabe mesmo onde está, ou por que viaja.

“Lorde” conta na primeira pessoa a história de um escritor brasileiro que chega a Londres a convite de um cidadão inglês desconhecido. Não são claros os objetivos da viagem — mas ele supõe que incluam uma agenda literária. A chegada já lhe traz a intuição constante do fracasso: “algo me dizia que ele iria faltar”. A partir dali, o escritor se aventura não em uma zona de conhecimento, mas de desconhecimento. Região turva e sem direção, ambiente inóspito no qual a literatura também nasce.

O personagem de Noll — como um escritor qualquer diante de sua folha em branco — nunca sabe o que o aguarda. Espera-o uma tarefa secreta, que parece estar além de suas forças, mas a qual, ainda assim, ele precisa cumprir, ou tentar cumprir. Esse esforço dá nascimento ao livro, que nada mais é do que o resto inesperado de uma busca cega. Sente-se pressionado, “tendo eu que me preparar para uma tarefa que poderia me exigir muito além do que eu poderia oferecer”. O escritor está sempre aquém do livro que imagina. Seus dotes são insuficientes. Seus recursos não bastam para dar conta da tarefa a que se propõe. E, no entanto, é assim, nessa zona de penúria, e “sem condições”, que ele deve escrever.

Também a viagem a Londres, que antes prometia algum tipo de consagração, só lhe devolve a mesma solidão em que já vivia no Brasil. Troca uma solidão por outra. Enfim, o anfitrião inglês resolve lhe mostrar a capital britânica. “Ele sabia o que eu mesmo já não sabia mais”. Às cegas, o escritor se entrega a um ritual de sagração que é também a chegada a um exílio. Quando entram no apartamento que lhe reservaram, o escritor se dá conta de que lhe falta um espelho. Sua identidade começa a se esfacelar. “Ah, eu estava na cidade de Churchill e seu charuto, murmurei, não deveria esquecer, deveria fazer algum exercício para a memória”. Mas quanto mais convoca sua ajuda, mais ela lhe falha. A literatura nasce assim: de um lugar desconhecido, com propósitos não controláveis e intenções obscuras. O escritor acha que caminha numa direção, quando caminha em outra.

Tateia — como o personagem em Londres — em busca de algo que não consegue pegar. “Não que eu fosse um idiota completo, de nada lembrasse”. Mas a verdade é que a vida começa a lhe faltar, e é aí que a escrita encontra um lugar para se estabelecer, um vão para nascer como um rascunho da verdade. Ronda pelo bairro da periferia em que se hospeda, continua sua busca de um espelho, mas tropeça em migrantes e se embrenha numa atmosfera turva.

“Queria me ver depois da viagem, ver se eu ainda era o mesmo”. Quando enfim pode se reconhecer, se desconhece: “Eu era um senhor velho. Antes não havia dúvida de que eu já tinha alguma idade. Mas agora já não me reconhecia, de tantos anos passados”.

A partir dessa ignorância de si, o escritor se embrenha em um turbilhão de acontecimentos cada vez mais bizarros. Segue em busca de uma identidade que teima em lhe escapar e, por fim, se dá conta de que é um dândi — um “lorde” — perdido em um mundo estrangeiro.

Passa a desconfiar que, em Londres, “já é outro”, mas não consegue nomear esse outro em que se transformou.

“Ah, eu me enganava de novo, o fato é que eu perdia a direção”, constata. Condição primeira da escrita, essa perda de direção.

Este vazio é a possibilidade de acolhimento de uma prosa que o preencha. Busca “uma precária garantia de que não cairia na sarjeta”, mas não existe garantia alguma. Tudo o que lhe resta é seguir em frente. Assim também caminha o escritor enquanto escreve: sem fiança, sem confiança, sem nada que o permita existir com leveza.

A entrada no mundo da ficção que a aventura do protagonista metaforiza é experimentada como um susto. “Ele sabia o que eu mesmo já não sabia mais”, diz o personagem de Noll, sublinhando a importância da ignorância na experiência literária. “Tudo o que eu vivera até ali parecia estar indo embora. Parecia só existir aquilo, uma casa desconhecida que teria de ocupar, uma língua nova”. Nesse mundo de sombras e de frágeis silhuetas, ele conclui que “é preciso saber olhar”.

Reaprender a olhar, e também se desapegar das ideias iniciais, rascunhos, projetos gloriosos que, diante do texto, se dissolvem. “Eu não tinha saudade do que deixara no Brasil nem de nada em qualquer esfera”, diz.

Aos poucos, o personagem original se decompõe, se fragmenta, abrindo caminho para outro homem, que ele mesmo desconhece. “Tinha vindo para Londres para ser vários”, conclui diante do cenário em fragmentos pelo qual transita. Tornando-se outro, ele se transforma em objeto. Objeto de que? Da ficção, que avança sobre o terreno e ocupa os espaços. A própria linguagem, ele experimenta, está em decomposição. Já não há nada conhecido, e todas as garantias estão desfeitas. “Eu tinha vindo nesse raio de mundo para isso, para preencher esse intervalo que na verdade não tinha fim”. Abre-se um abismo, e esse abismo é a própria ficção.

A aventura do personagem de Noll torna-se, a partir daí, insuportável, chegando a beirar o absurdo. É, enfim, uma travessia do desconhecido que, se abre uma rachadura no mundo estável, abre também um lugar para um novo mundo. “Só poderia então desejar que aquele impasse perdurasse pelo resto dos dias”, medita. O impasse é sua salvação. É diante da realidade insolúvel que ele pode, enfim, por falta de alternativa, criar. A criação se torna assim um destino, e não um ponto de partida. Uma meta, e não uma escolha.

Por fim, um erotismo forte toma conta de “Lorde”, como que a indicar que tudo se resolve no corpo ou em seu entorno. Que é na carne que as piores, mas também as melhores coisas se desvelam. É ali, chegando a si mesmo, que o homem enfim se constitui.

| Não te leves demasiado a sério, mas leva a sério o mundo - GONÇALO M. TAVARES

 O Globo 19/04/2014

CORRER E EXISTIR

“Um grupo de pessoas andava a passear e encontrou Nasreddin Hodja. Perguntaram-lhe:

— Quanto tempo levamos até à aldeia mais próxima?

— Andem — disse-lhes ele.

— Mas quanto tempo?

— Andem.

Não conseguiram arrancar-lhe mais nada além desse “andem” e deixaram-no ali.

Meia hora mais tarde chegaram à aldeia seguinte.

Ouviram atrás de si barulho de passos precipitados. Voltaram-se e viram Nasreddin que chegava a correr.

Sem fôlego, parou junto do grupo e disselhes:

— Demora uma meia hora.

— Mas porque não nos disse antes?

— Porque — respondeu Nasreddin — não sabia a que velocidade caminhavam.”

(História recolhida por Jean-Claude Carrière)

O HINO, A BANDEIRA

O hino e a bandeira, a bandeira e o hino.

A bandeira, qualquer bandeira, parecendo,

ao longe, um quadro mole em que as cores representariam uma espécie de outra paisagem, não exterior.

A bandeira de um país não é, de fato, um quadro realista, mas sim simbólico. O mais simbólico.

E sim. Se queres saber se há muito ou pouco vento fixa os olhos na bandeira, nos movimentos que ela faz — “as bandeiras são o vento tornado visível (…) os povos servem-se das bandeiras a fim de chamar seu o ar que paira sobre as suas cabeças”, escreve Elias Canetti. Eis, pois, o que representa a bandeira de um país que é levantada num estádio após uma vitória desportiva: subitamente, aquele bocado de ar fica com as nossas cores. Um retângulo de ar que é ocupado por uma bandeira. Parece pouco, mas é isso mesmo: o espaço aéreo de um outro país está ocupado pelo nosso país (um retângulo pequeno, a bandeira, sim, mas ocupa muito espaço mental porque, durante um minuto, é o centro — aquilo para onde todos olham).

E há ainda o hino, que não é nada irrelevante. Entre bilhões de associações de sons possíveis eis que surge a canção que reconhecemos.

E assim estamos, nesta cerimônia simples, na coroação de um vencedor olímpico, diante da ocupação temporária de olhos e ouvidos dos outros. Os olhos veem a bandeira, os ouvidos ouvem o hino. E esta ocupação temporária de olhos e ouvidos — os órgãos essenciais da atenção humana — é significativa. Invasão pacífica portanto: em vez de um exército a entrar em território alheio, ocupação — durante um minuto — dos olhos e ouvidos alheios. Olhos e ouvidos dinamarqueses, chineses, australianos (etc.) a verem e ouvirem a bandeira e o hino de um outro país. Pacífica ocupação visual e sonora do espaço aéreo estrangeiro por um minuto. É tempo suficiente? Sim.

1 - CORRIDA EM LINHA RETA VERSUS CORRIDA EM CÍRCULOS

Há dois tipos de corrida, isto é: duas formas de percorrer o espaço:

1 - Corrida em linha reta.

2 - Corrida em circunferência ou noutra forma “curva”, em que o ponto final é o mesmo do início.

E se viver for percorrer um espaço? Aqui está uma pergunta. Não é isso? Então o que é? É percorrer um tempo, resposta possível. Correr sobre um tempo, é isso? Mas como se corre sobre o tempo? É difícil pensá-lo a grande escala, mas uma corrida, a maratona por exemplo, é isso mesmo: é correr por cima do tempo, correr por cima do relógio, do cronômetro. O chão deixa de ser informe e neutro e passa a ser Tempo, tempo objetivo. Numa corrida percebemos então o que significa ainda não estar morto: é ter tempo a correr debaixo dos pés. E eis, pois, que correr muito, andar pouco ou ficar quieto ganham novos sentidos. É impossível correr mais rápido do que o tempo, por definição — mas podes correr ao mesmo ritmo do tempo, correr menos que o tempo, ou não correr, simplesmente. Neste sentido, duas formas de corrida são duas formas de existir sobre a terra. Duas formas completamente distintas. Resistência ou velocidade? Chegar rapidamente ao destino ou, no limite: avançar sempre, sem parar, tentando apenas não cair. As provas de atletismo resumem duas formas de estar vivo.

1A - Corrida em linha reta

Correr em linha reta: chegar o mais rápido possível a um ponto que está afastado — muito ou pouco — do ponto de partida.

— Corrida em linha reta curta — exemplo: corrida de cem metros.

— Corrida em linha reta longa — corrida de longo curso que não termina no ponto de partida (exemplo: atravessar uma cidade de um lado ao outro).

Qualquer que seja a distância, a verdade é que a corrida em linha reta esquece de onde partiu e só quer chegar ao destino. Aqui, então, o ponto de partida é isto mesmo: aquilo a que rapidamente se vira as costas. Esta indiferença em relação à origem, ao início, este não dar importância ao que está atrás de nós, deve merecer reflexão. Porque tal pode ser entendido como uma espécie de falta de memória. De onde parti, onde comecei? Eis aquilo de que j não me lembro e que já não importa nas corridas em linha reta. A corrida em linha reta — como nos 100 ou 200 metros — lembra até
uma fuga; tem, podemos dizer, o mesmo sistema mental da fuga (afastar-me o mais rápido possível do ponto onde estou!). Ao contrário, a longa corrida, como os dez mil metros, é para homens mais tranquilos.
Expliquemos porquê.

1B - Corridas em que se volta ao ponto de partida (circunferências mais ou menos imperfeitas)

Pois há então que dizê-lo: as corridas em circunferência (mesmo que muito imperfeita) são as mais sensatas. Façamos, então, um pequeno desvio e falemos de filosofia.

O filósofo Heidegger chamava a atenção para o que é filosofar: filosofar é andar em círculos, um itinerário longo, infinito, que regressa sempre ao ponto de onde partiu. Pois bem, explica ele, a filosofia anda em círculos porque está sempre à volta do centro. Ou seja, porqueestá sempre em redor do essencial. A filosofia, poderia dizer-se, traça uma circunferência cujo centro são os grandes temas humanos, ao contrário, por exemplo, de muitas ciências que avançam em linha reta — sempre em frente! Estas ciências, como é evidente, não têm centro porque uma linha reta, por definição, não tem centro.

E note-se que o essencial é aquilo para onde eu estou virado (nunca se vira as costas ao essencial); e, se é assim, em termos geométricos o centro de uma circunferência é o elemento para onde todos os pontos da linha da circunferência estão virados. Uma adoração sem Deus no centro.

Há, assim, uma diferença básica entre uma modalidade de atletismo como a corrida de cem metros, e uma modalidade como os 400 ou os 10 mil metros. Nestas modalidades, mesmo que não se trace uma circunferência, meta e partida estão no mesmo lugar. E esta característica é essencial.

São modalidades atlético-filosóficas, poderíamos dizer. Ao contrário dos 100 e 200 metros que são, continuando nesta lógica classificativa, modalidades atlético-científicas — (modalidades que têm o sistema mental da ciência: sempre em frente, é o caminho!). O atleta de dez mil metros nunca se afasta do centro — está sempre às voltas do essencial — mesmo que, por momentos, pareça afastar-se. E, além disso, corre muito, corre o mais rápido possível para chegar ao ponto de onde partiu. Parece um absurdo, mas é mesmo assim.
Do outro lado estão os velocistas.

2 – A CALMA DO ATLETA

De que é feita a calma? Disto: nada de espiritual ou psicológico — há que contar pelos dedos as pulsações cardíacas, eis tudo. A calma como um ritmo fisiológico — os metros por segundo que o sangue de um corpo percorre.

E as experiências individuais — correr a maratona, subir os Alpes, ver um filme, participar numa batalha — no fim, feitas as contas, não são o que sucede no exterior, são, sim, objetivamente, as pulsações cardíacas. Experiência individual não é o que se passa em frente ao corpo — é a consequência interna, no organismo, dos acontecimentos exteriores. Diante do mesmo acontecimento, duas pessoas têm reações orgânicas completamente distintas — um treme e grita, outro fica indiferente. Um tem 45 pulsações cardíacas, outro, cento e trinta. A experiência significativa é, então, aquela que altera brutalmente as pulsações cardíacas. Eis uma definição objetiva, quantitativa, neutra — mas definição.

(No entanto, se a aplicássemos em todas as situações, reduziríamos a vida pessoal a um gráfico de pulsações cardíacas. Em vez de um álbum de fotografias com os Alpes, Veneza e a mulher por quem nos apaixonamos, um gráfico de batimentos cardíacos por minuto. Aqui — dirá o dedo entusiasmado apontando para um número — aqui, quando me apaixonei: cento e vinte pulsações!)

Pois sim. A antiga definição de sabedoria poderia ser, afinal, uma mera constância nos batimentos cardíacos por minuto. O sábio como aquele que não se exalta, não se enerva. O sábio, no fundo, como um super-atleta, o atleta mais bem treinado para a Existência. A Existência entendida aqui como prova não Olímpica, mas prova, mesmo — exige esforço, força, velocidade, flexibilidade e capacidade de resistência.

(Texto que partiu de um texto-homenagem a Carlos Lopes, maratonista português que ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos)

Encontros e fantasmas da madrugada - Frei Betto

 O Globo 19/04/2014

Meu último encontro com Gabriel García Márquez e Mercedes, sua mulher, foi em Havana, a 11 de dezembro de 2008. Ele parecia cansado e já demonstrava sinais da enfermidade que o consumiria.

Conheci-o na capital de Cuba, em fevereiro de 1985. Perguntei-lhe se havia terminado seu novo romance, “O amor nos tempos do cólera”.

— Terminei o texto linear. Agora trabalho nos acertos.

Gabo havia enviado o texto a Fidel, que pouco depois chegou à casa onde nos encontrávamos. Ansioso, indagou se o Comandante já havia lido os originais.

— Sim, e com muita atenção — disse Fidel.

— Descobri um erro crasso.

Gabo ficou lívido.

— Você escreve que um barco saiu de Cartagena transportando toneladas de ouro. Fiz alguns cálculos. Um barco da época, todo de madeira, teria afundado no próprio porto.

Em novembro de 1985, Gabo me chamou à casa de protocolo 61, onde se refugiava para escrever, e mostrou-me seu discurso para a abertura do congresso de intelectuais. Uma irônica e divertida história de congressos.

— Sugiro a você ressaltar o múltiplo aspecto da cultura popular na América Latina — opinei. — Como cultura de resistência, solidariedade, protesto, jogo e festa.

Ele me fez subir para o segundo andar da casa, ligou seu Macintosh e acrescentou ao texto a sugestão.

— Em que período do dia você prefere escrever? — perguntei.

— Pela manhã, após banhar-me, vestir-me e tomar um vasto café.

Era a primeira vez que eu via o computador com a grife da maçã. Fiquei maravilhado diante daquela máquina. Ele me mostrou como funcionava e insistiu para que eu comprasse uma. Depois, “roubou” de Mercedes um exemplar de seu romance “O amor nos tempos do cólera”, a ser lançado em breve, e me presenteou com uma dedicatória.

Em julho de 1986, participei em Havana de uma recepção oferecida por Fidel a um chefe de Estado da África. Às três da madrugada, Gabo e eu deixamos o Palácio da Revolução e cada um se dirigiu à casa em que se hospedava.

Meia hora depois, quando eu já pegava no sono, soou o telefone da cozinha. Fui atender:

— Companheiro, aqui é da casa de García Márquez — disse uma voz anônima. — Ele está indo para aí.

Por que Gabo viria ao meu encontro àquela hora? Aguardei 20 minutos, bêbado de sono. Nenhum Prêmio Nobel vale o preço do meu sono. Como não apareceu, voltei à cama após deixar a porta da casa encostada.

Na manhã seguinte, fui informado de que na casa de Gabo haviam recebido telefonema de alguém que dissera: “Frei Betto pede que venha urgente à casa dele”.

Ao contrário de mim, que voltara a dormir, Gabo atendeu ao chamado e ficou até as 7h da manhã na varanda da casa em que eu estava hospedado, conversando com amigos que me acompanhavam na viagem.

Nunca entendi por que os fantasmas da madrugada pretenderam nos manter despertos e juntos... Gabo poderia ter aproveitado o estranho episódio para um de seus primorosos contos.

domingo, 6 de abril de 2014

"A cesárea deve ser exceção e não regra" - Marilena Pereira

A Tarde/BA 06/04/2014
Revista Muito 
Fabiana Mascarenhas

 

A obstetra Marilena Pereira defende o parto natural


Ela já perdeu a conta do número de partos que assistiu em 30 anos de carreira como obstetra. Mas, há pelo menos 20, Marilena Pereira tem priorizado trazer crianças ao mundo de maneira natural. Muitas delas nascidas em domicílio, no aconchego da família. Formada pela Ufba, seu interesse pela área surgiu após a leitura de um trabalho sobre parto de cócoras do médico curitibano Moysés Paciornik, que a ajudou a entender que este era o caminho para não se tornar mais uma obstetra a aumentar o número escandaloso de cesáreas realizados no país. O que começou de maneira intuitiva e sigilosa - por conta do temor das críticas dos colegas - popularizou-se diante da demanda de mulheres que desejavam ter filhos de forma natural. A experiência acumulada a colocou entre as referências em parto natural no Brasil e representante do Movimento Nacional pela Humanização do Parto. Atualmente, é coordenadora de obstetrícia do Centro de Parto Normal da Mansão do Caminho, no qual assiste partos pelo SUS. É também obstetra da Maternidade Climério de Oliveira, além de atender pacientes em sua clínica particular. Duas décadas depois, o cenário é outro, e ela diz que já não teme possíveis críticas.
 

Há médicos que fazem duras críticas ao parto humanizado, sobretudo em domicílio. Para eles, é arriscado para a mãe e o bebê. Como a senhora lida com essas críticas?
Quando comecei, há cerca de 20 anos, havia muito receio. Sabia que não estava fazendo errado, mas temia a crítica dos colegas. Me formei dentro do modelo medicalocêntrico. No meio do processo, conheci o trabalho do médico curitibano Moysés Paciornik e passei um tempo no hospital dele. Me apaixonei. Sabia que era daquela forma que gostaria de atuar. Também participei de uma conferência da Rede Nacional pela Humanização do Parto (Rehuna). Um cenário novo se descortinou para mim porque vi que existiam, de fato, evidências científicas. Encontrar a medicina baseada em evidências foi uma transformação. Isso me deu mais segurança para continuar. Inicialmente, fazia tudo de forma intuitiva e sigilosa, mas, diante da enorme demanda das mulheres que queriam ter os filhos de forma natural, o meu trabalho se popularizou. Foi a partir daí que comecei a ganhar o apoio de outros profissionais e dos pais. Hoje já não temo as críticas dos colegas. O médico que critica não sabe do que está falando, não conhece o assunto.


Mas há,de fato,estudos que comparem a taxa de mortalidade dos partos hospitalares com os domiciliares?Sim. Estudos recentes mostram que há diferenças de desfechos desfavoráveis, tanto para a mãe quanto paraobebê, quando se compara o parto hospitalar com o domiciliar. Mas quando um parto domiciliar é assistido por profissionais capacitados, que sabem lidar com emergências, os riscos são pequenos. A vantagem de estar em ambiente hospitalar é que, se alguma complicação ocorrer, a possibilidade de resolução é mais rápida. Mas a mulher pode optar por ter seu filho no hospital, se dessa forma se sentir mais segura. Isso não a impede de ter um filho de forma natural. Só não se deve tirar dela esse direito e colocar sempre a cesárea como melhor opção.


Quais as complicações mais comuns em um parto domiciliar?
As complicações de qualquer parto. A parada de progressão é um exemplo (quando a mulher está em trabalho de parto e para a dilatação). Mas temos formas de acompanhar essa evolução e ver até quando se pode esperar. Só quando o risco é grande, optamos pela remoção para um hospital. Também pode ocorrer febre ou algum sinal de infecção materna ou alteração da frequência cardíaca do bebê. Essas são as mais comuns. Uma hemorragia pós-parto também, mas é menos comum. Nesses 20 anos, por exemplo, nunca tive nenhuma remoção para hospital por hemorragia. E há também uma série de complicações que podem ocorrer em uma cesárea.

Em quais situações a cirurgia deve, de fato, ser indicada?
As indicações são poucas. Diabetes e pré-eclâmpsia, sim, mas não necessariamente. A cesárea deve ser indicada se o bebê está em situação transversa (atravessado), placenta prévia oclusiva total (quando a placentafechaocolo uterino), prolapso de cordão (quando ele se exterioriza), e em casos de herpes genital ativa. Qualquer outra indicação deve passar por avaliação criteriosa.


O que seria um parto humanizado?Aquele que respeita as decisões da mulher, no qual o médico não é a figura central. Um parto em que ela possa contar como suporte emocional de uma equipe e o acompanhamento da família, em que possa decidir a forma como vai ter seu filho, que nãoseja somente em posição de litotomia (deitada coma barriga para cima e as pernas levantadas), sem ter o parto induzido ou acelerado com ocitocina ou em uma episiotomia (corte do períneo para supostamente facilitar a passagem do bebê). O parto não era ligado à medicina. Como tempo foi que deixou de ser algo familiar e íntimo para ser medicalizado.

Creio que a senhora concorda que recusar uma recomendação médica é uma decisão difícil. Como lidar com isso?
Primeiro, cominformação. Se a mulher souber em quais situações a cesariana é indicada, ela vai poder ter noção dos riscos. O médico, de fato, é a pessoa que deve orientar os pais, mas a decisão sobre o tipo de parto deve ser da gestante e da família. Uma das coisas que o Movimento pela Humanização do Parto mais preza é o direito à escolha. Mas, na cultura brasileira, só o médico toma decisão, o paciente só obedece.


A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que apenas 15% dos partos sejam cesáreas.Narede privada,oíndice é de 82%. Há uma epidemia?
Sim,sem sombra de dúvida.Mais de 50% de nascimentos realizados no país é por meio desse tipo de cirurgia. A cesárea é extremamente importante, salva inúmeras vidas,mas deve ser exceção e não regra. Isso ocorre,em parte, porque ela passou a ser aceita culturalmente como um modo normal de dar à luz, mas, originalmente, foi criada para aliviar condições adversas maternas ou fetais, quando há riscos para a mãe, o bebê ou para ambos.

O que faz os médicos incentivarem suas pacientes a optarem pela cesárea?
São vários os motivos. Obstetras são pagos apenas pelo parto e não pelas inúmeras horas de acompanhamento, embora hoje isso não seja totalmente verdadeiro–vários planos de saúde remuneram, embora pouco e com restrições.Um parto normal pode durar mais de 24 horas; uma cesariana
dura cerca de 40 minutos. Há o modelo de assistência obstétrica do país, a falta de leitos nos hospitais, a formação do médico, voltada para a patologia e a intervenção, enfim, são muitas coisas.

Um dos argumentos mais usados é que a cirurgia foi solicitada pela própria mãe.
É a cultura da cesariana a pedido da mãe, uma cultura que não é verdadeira, já que há estudo mostrando que 70% das gestantes gostariam de ter filho de modo natural

Muitas mulheres associam parto normal a dor, e a maioria não quer sentir dor.
Muitas desconhecem que há uma série de técnicas de relaxamento para aliviar a dor.O fato de o parto ser em um local acolhedor ,no qual a mulher tem privacidade, segurança e liberdade, contribui para atenuar o desconforto. Ter o apoio de uma enfermeira obstétrica e de uma doula – que auxilia a mãe no parto – também é importante. Há massagens, bolas e banhos que são aliados. Durante a gravidez, fazer atividades comoioga, caminhada,hidroginástica, alongamento ajuda a preparar a musculatura da vagina e da pélvi spara o nascimento. Há ainda a possibilidade de analgesia farmacológica.


A senhora é coordenadora de obstetrícia do Centro d eParto Normal d aMansão do Caminho, no qual realiza partos pelo SUS.Existe algum critério para a gestante ser aceita no centro?
Não. O centro faz parte da Rede Cegonha, programa do Ministério da Saúde, e está aberto para qualquer pessoa. Em 2 anos e meio, já assistimos cerca de mil nascimentos, com alto índice de segurança e satisfação, embora ainda tenhamos uma demanda aquém da nossa capacidade. Para saber mais informações, as pessoas podem entrar em contato pele telefone 71-34098333.

No documentário O Renascimento do Parto, o obstetra e pensador francês Michel Odent fala sobre a ocitocina, o chamado hormônio do amor, e sobr e como o tipo de parto interfere nas emoções. Fale um pouco sobre isso.
Há pesquisadores que mostram que, nos partos com intervenção ou na cesárea, há a perda da liberação natural de hormônios próprios do processo do parto, principalmente da ocitocina, ou hormônio do amor, comodiz MichelOdent. Esse hormônio, liberado pela mãe durante o trabalho de parto, não é apenas responsável pelas contrações uterinas, mas por preparar a mãe para a formação do vínculo com seu bebê e para a amamentação. Esse amor, que ali começa a ser estabelecido, será o protótipo de todas as formas de amor que esse indivíduo irá desenvolver ao longa da vida.


Colunista Convidado: ELIANE BRUM Letras que traem


sábado, 5 de abril de 2014

O golpe militar e eu - Luiz Mott

A Tarde/BA 05/04/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Tinha 17 anos quando os militares tomaram o
poder. Eu era então seminarista
no Convento Dominicano de S. Paulo, a
ordem mais esquerdista de nossa história, a
mesma que acobertou Marighela e outros subversivos.
Alguns meus irmãos de hábito foram
presos e torturados. Deixando o convento, entrei
na mais marxista das faculdades da USP,
Ciências Sociais, a aguerrida Maria Antônia,
adversária belicosa da Universidade Mackenzie,
então, baluarte da extrema direita, commuitos
membros do CCC (Comando de Caça aos Comunistas).
Tive como mestres Florestan Fernandes,
FHC e outros marxistas caçados e exilados
pela ditadura. Participei de reuniões da
Ação Popular, Polop, JUC, grupos clandestinos
de oposição aos “gorilas”, como então chamávamos
aos milicos. Meu pai, italiano antifascista,
sempre foi de esquerda; meus irmãos
gêmeos eram anticomunistas e meus dois cunhados,
marxistas-leninistas. Escondemos no
sótão de minha casa um enorme baú com
muitos livros marxistas de um subversivo caçado
pelo Dops.

Entre 1965-1968 participei de uma dezena
de passeatas pelo centro da Pauliceia Desvairada,
cujos brados eram “abaixo a ditadura!”
Fora Aliança para o Progresso! Quebramos
muita vidraça, sobretudo de bancos
norte-americanos; jogávamos rolhas e bolinhas
de gude pra fazer cavalos e cavaleiros da
PMcaírem no chão. Numa destas passeatas, eu
raspara a barba pra não parecer comunista,
debalde: fui preso e fichado com centenas de
outros manifestantes, noite terrível numa cela
do Dops. Minha foto saiu na manchete do
Estadão, cinco agentes me agarrando. Fui preso
uma segunda vez, acusado de planejar
atentado contra o consulado norte-americano
da avenida Paulista.

Ainda em 1982, nos estertores dos anos de
chumbo, consta no Dops minucioso relatório
de um agente relatando minha palestra sobre
sexualidade para enorme auditório na Unicamp:
a ditadura desconfiava desse barbudo
pioneiro domovimento de libertação gay, cujos
militantes mais anarquistas e radicais gritavam:
“o coito anal derruba o capital!”

A Ucrânia e o czar da KGB - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA 05/04/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da
Academia de Letras da Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Estou em viagem que deverá ser demorada,
mas achei que devia deixar
estas notas sobre a crise que
envolveu a Ucrânia, por ter visitado aquele
país em 2011 e conhecer bastante a
Rússia. Durante a minha agradável permanência
em Kiev, a capital da Ucrânia,
e na histórica cidade de Odessa, jamais
imaginei que as relações entre os dois
países chegariam ao nível de desgaste
dos últimos meses, mas uma coisa ficou
muito clara para mim: os ucranianos detestam
a Rússia, sobretudo pelo traumático
legado do período stalinista. O mesmo
sentimento antirrusso domina hoje
os países bálticos: o comunismo soviético,
por onde passou, não deixou boas
lembranças.

Putin tem muitos admiradores na Rússia
porque, sob sua administração, o país
conseguiu superaras dificuldades econômicas
da décadade 90. Mas o resto do
mundo não se esquecede que o governante
desenvolveucarreira pregressa
no sinistro âmbitoda KGB, órgão repressor
de má fama,ligado à segurança
do estado soviético.Completam o quadro
a tradição autoritáriado czarismo e os
horrores políticos dostalinismo. As novas
lideranças ucranianas pugnavam por uma 
abertura para o Ocidente, contra a
tradição histórica do opressor garrote comunista.

Considerada um dos celeiros do mundo,
a Ucrânia sofreu na II GuerraMundial
a brutal agressão do hitlerismo durante
778 dias, como, em tempos bem mais
recuados, foi invadida por mongóis, poloneses,
lituanos, turcos e cossacos. O
neto de Gengis Khan destruiu a parte alta
da cidade, dividida, como Salvador, em
dois planos. A sobrevivência do país
diante de tantos infortúnios acentuou o
sólido nacionalismo do seu povo.

Um dos mais impressionantes monumentos
de Kiev é o museu ao ar livre da
II Guerra Mundial, repleto de murais e
esculturas, armas em geral do conflito,
além de uma imponente estátua simbolizando
a Mãe Rússia Vencedora, que
rivaliza com a maior, construída em Stalingrado,
de 85 metros de altura (o elevador
Lacerda tem 70 metros).

A Rússia começou em Kiev, antes que
Moscou se tornasse a capital do Império
Russo. A bela e agitada cidade, de largas
avenidas e elegantes bulevares, tem cerca
de 1.500 anos. Foi a capital dos rus, povo
eslavo oriental, nos séculos XIV e XV, bem
como área de influência do Império Bizantino,
que até hoje marca a vida da capital
com o rico legado da sua cultura,
patente na profusão dos esplêndidos mosaicos
das suas igrejas, notadamente na
catedral de Santa Sofia, obra-prima da igreja
ortodoxa. No centro da catedral esplende
uma impressionante imagem em mosaicos
da Virgem Maria, mais bela do que a
existente na Santa Sofia de Istambul. Relata
a lenda que o poder da sua beleza intimidou
os invasores mongóis, obrigados a
recuar diante do impacto causado pela imponência
da Virgem.

Outro monumento público grandioso
de Kiev é o Memorial Golodomor, construído
para registrar a miséria da Grande
Fome de 1932-1933, que matou mais de
quatro milhões de ucranianos pela política
de expropriações do stalinismo. Se
a reforma agrária se impunha na Rússia
pela brutal tradiçãoagrícola da escravidão
dos mujiques,foi entretanto executada
coma violênciaque caracterizava
as ações stalinistas,disseminando o terror
no celeiro ucranianoe na União Soviéticaem geral.

Visitei demoradamenteo extraordinário
parque Golodomor,sob uma emoção
que me levou às lágrimas.
Jamais poderãoser esquecidas a
exuberância da sua documentação e a comovente
profusão de monumentos denunciando
a fome coletiva na Ucrânia. Entre
estes, destaque para a estátua de uma menina
subnutrida, que abala o visitante logo
na entrada do parque, pela notável capacidade
do artista de imprimir o sofrimento
da fome na solidez do cimento. Anjos esculpidos
em pedra branca margeiam a ala
central do museu, que se completa numa
área subterrânea.

Para anexar a Crimeia, Putin evocou o
patriotismo dos russos lá radicados. Curiosamente,
foi assim que Hitler iniciou
a II Guerra Mundial: alegando defender
os alemães dos sudetos tchecos e da cidade
livre de Dantzig, na Polônia. Omundo
mudou pouco nestes setenta anos e a
violência humana continua a mesma.