domingo, 5 de janeiro de 2014

A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR (NO CALOR)



O Globo 05/01/2014

Colunista Convidado DANIELA MERCURY Aos olhos de quem vê

O Globo 05/01/2014

 
“Ainda nos oferecem camas de
solteiro quando fazemos check-in
em hotéis, nos pedem para
preencher formulários como sr.
e sra., noivo e noiva, pai e mãe’’

Em abril deste ano escrevi no meu Instagram: “Malu agora é minha
esposa, minha família, minha inspiração para cantar.” O motivo?
Malu é uma mulher e se eu não a apresentasse como minha esposa,
ela seria tratada como minha empresária, produtora, amiga, ou
qualquer outra coisa, menos esposa. Infelizmente, mesmo depois
da repercussão do meu comunicado e do nosso casamento civil,
muitas pessoas ainda falam com Malu como se ela fosse minha produtora
ou assessora. Imagine se eu não tivesse falado nada?

Eu sou militante social há 18 anos, trabalhando como embaixadora
do Unicef, embaixadora do Instituto Ayrton Senna e no meu próprio
instituto, o Sol da Liberdade. Agora estou mais inserida na luta contra
a homofobia. Por isso, ao relembrar minhas leituras sobre a sexualidade
humana, pensei, obviamente, no tão popular Sigmund Freud.

Há cerca de cem anos, Freud lançou obras importantes que começaram
a desvendar a sexualidade humana. Em seguida, Lacan
reitera e amplia as descobertas, e o mundo começa a compreender
o ser humano. Freud afirmou que a nossa sexualidade é múltipla e
desordenada. Disse que a pulsão sexual humana é orientada pela
diversidade e parcialidade. Ainda afirmou que o que causa a homossexualidade
é o mesmo que causa a bissexualidade e a heterossexualidade:
a escolha inconsciente do objeto de desejo. E que nenhuma
escolha é mais natural que outra. É uma pena que, um século
depois, estejamos discutindo o preconceito contra homossexuais.

Hoje, eu e Malu estamos casadíssimas no civil, fomos capas das
revistas mais lidas do Brasil, participamos de programas de TV e
demos centenas de entrevistas. Mesmo assim, ainda passamos por
situações que demonstram o quanto estamos longe de tratar com
naturalidade um casal de mulheres ou de homens: tentam fingir
que não nos veem, que não somos um casal. Chamo isso de invisibilidade
social. Ainda nos oferecem camas de solteiro quando fazemos
o check-in em hotéis, nos pedem para preencher formulários
como sr. e sra., noivo e noiva, pai e mãe. Homens paqueram
uma ou outra, ou as duas, ignorando que somos casadas. Alguns
ficam nitidamente confusos e constrangidos e olham para o chão
ou desviam o olhar quando eu a apresento como minha esposa.
Mas por quê? Existe algum padrão para “gente”? Freud diz que
não! Por sabermos que há muito o que fazer para naturalizar a relação
homossexual no Brasil e no mundo, eu e Malu aceitamos o
convite pra escrever o livro “Daniela & Malu: Uma história de
amor” (LeYa), onde expomos nossa intimidade, nossos medos e
fragilidades para que desmistifiquem a relação entre duas pessoas
do mesmo sexo. Duas pessoas bem-sucedidas, inteligentes e bonitas,
que sempre quiseram mudar o mundo e descobriram que um
testemunho vale mais do que mil palavras
.