sábado, 22 de fevereiro de 2014

Folia e hipocrisia - Walter Queiroz Jr.

A Tarde/BA 22/01/2014

Walter Queiroz Jr.
Advogado, poeta, compositor,
membro da Confraria dos Saberes
waljunior44@hotmail.com

A palavra folia vem de uma palavra francesa
(folie) para designar loucura e não
é à toa que dela nos apropriamos como
sinônimo do carnaval. Nossa festa maior, entretanto,
não merece incorporar esse galicismo
ao pé da letra. Nosso carnaval não deveria ser
um evento louco e, sim, um conjunto de momentos
mágicos a favor da comunidade, pedindo
uma trégua à caretice, em favor da espontaneidade
e da catarse pela alegria. A transformação
do carnaval-participação da década de
setenta, quando Brasil e o mundo vinham pra
cá confraternizar descontraidamente, no modelo
atual é um desserviço à causa social e aos
legítimos anseios da nossa cultura popular. Praticamos
hojeumcarnavalmovido por interesses
argentários, num conluio político-empresarial,
privilegiando artistas que, ensandecidos pela
fama e glória, venderam a alma ao diabo.

A fúria eletrônica liquidou com as manifestações
acústicas e um gigantismo irresponsável
tomou conta da avenida. O pioneiro
afoxé Filhos de Ghandy, emblema do nosso
carnaval, transformou-se numa entidade que
passeia mais que dança, até por que já não
ouve os seus próprios agogôs. As rádios compradas
pelo “jabá” marginalizam milhares de
artistas e fabricam sucessos medíocres e que
contribuem para empobrecer o imaginário
das novas gerações. Atitudes hipócritas de
alguns desses artistas, como sair, eventualmente,
sem cordas, tentam transformar em
concessão, uma obrigação que sonegaram durante
décadas, privatizando as avenidas e locupletando-
se com a venda de abadás, a segurança
embutida no preço.

Em todo o Brasil começa a retomada dos
valores dos eternos carnavais, com manifestações
mais leves, e a juventude volta o seu
olhar para a beleza das festas de outrora, mais
líricas, mais críticas e bem-humoradas. Começa
a renovação do cancioneiro carnavalesco,
a exemplo do ótimo Bailinho de Quinta,
novos festivais e as batalhas de confete,
como a que hoje faremos na Associação Atlética
da Bahia, a partir das 13 horas, homenageando
os blocos do Barão e do Jacu, que
estaria completando 50 carnavais.

Racismo, macacos e a imbecilidade - Luiz Mott

A Tarde/BA 22/02/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Chamar negro de touro, gatão, é elogio.
Chamar um negro de macaco é crime
inafiançável no Brasil. Temos presenciado
nos últimos tempos deploráveis gestos de
racismo contra negroides vips, associando-os
aos nossos parentes antropoides mais semelhantes
na escala evolutiva: duas ministras negras,
na Itália e França, foram referidas de
orangotangas por colegas do governo. Nalguns
estádios da Europa, torcedores jogam banana
ou imitam macacos para insultar jogadores
negros. Há poucos dias, no Peru, um estádio
inteiro simulou o “guincho” de macaco quando
o futebolista afro-brasileiro de cabelo rastafári
pegava a bola. Racismo deprimente agravado
por serem os peruanos predominantemente
indígenas.

Essa associação de negros a macacos tem
como substrato ideológico a desumanização
dos cidadãos de pele escura, cabelos crespos e
narizes mais platirrínios do que os brancos e
amarelos. Como se os pretos não pertencessem
à nossa mesma classe homo sapiens, preconceituosamente
indissociáveis da desengonçada
natureza simiesca. Como diz racista provérbio
espanhol, “una mona, aún de seda, mona es y
mona se queda": uma macaca, ainda que vestida
de seda, é e continua sendo macaca.

Às vezes, contudo, somos obrigados a reconhecer
que esses nossos parentes próximos
pouco abaixo na escala evolutiva dão-nos sábias
lições de vida: “cada macaco no seu galho”,
“macaco velho não mete a mão embotija”. São,
contudo, desastrados: “comomacaco numa loja
de cristal”... ou mal sucedidos nalgum mister,
“fulano pagou um mico...”

Inédito episódio na história da Bahia retrata
essa associação simiesca: em 1645, “o
mulato Mateus Soares, pequeno de corpo,
acusado à Inquisição de ser sodomita,
acompanhava seu senhor em comédias fazendo
figura de bugio e dançando com um
pote na cabeça”. Creio ser essa primeira
referência a uma representação teatral nas
ruas da velha Salvador. Lastimavelmente, o
jovem mestiço afrodescendente prestando-
se à perpetuação do mesmo estereótipo
desumanizante da raça etíope.

Do racismo ao contrarracismo - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA 22/02/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da Academia de Letras da
Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Ninguém de bom
senso pode negar a
existência de racismo
no Brasil. Não vamos,
porém, acirrar tão
infame problema
praticando o racismo
ao contrário

Em meu último artigo, adverti que não gostava de escrever sobre racismo pelas paixões que o tema provoca, mas destaquei a “imensa dívida” que a sociedade brasileira tinha para coma população negra. Era uma referência ao legado desastroso da escravidão.

Dois artigos publicados em A TARDE me levaram a tratar do problema, ambos afirmando que pessoas brancas estavam dificultando o acesso aos shoppings de “jovens negros da periferia”, nos chamados “rolezinhos”. Rebati tais acusações, qualificando- as de “racismo ao contrário”. Entre o verdadeiro dilúvio de manifestações que meu artigo provocou, apenas duas eram contrárias, uma assinada por um cidadão que se qualificou com o pomposo título de “superintendente de Direitos Humanos da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos da Bahia”.


Não vou aqui evocar minha biografia jornalística, marcada pelo combate a toda forma de opressão e discriminação racial, o que me levou, como autêntico gladiador da pena, a travar numerosas polêmicas. Em todas, jamais pedi condescendência aos adversários, mas apenas honestidade intelectual. Que jamais distorcessem minhas ideias para obter vantagens na argumentação. Pois bem: foi isto que precisamente fez o superintendente citado.

Disse ele ter eu afirmado que “quem combate o racismo faz racismo ao contrário”. Jamais escrevi tal absurdo. O que escrevi, sim, foi que “precisamos combater no Brasil o pensamento que discrimina a pretexto de combater a discriminação”. Isto está claro diante da acusação que os articulistas mencionados lançaram a supostas “pessoas brancas”, que estariam exibindo “a face perversa” da exclusão ao combater a presença de “jovens negros” nos shoppings.


Reafirmo que tais afirmações delirantes são racistas, pois contribuem para criar antagonismos conflituosos na sociedade. “Rolezinhos” são integrados não apenas por negros, mas por pessoas de raças variadas. Depois, são concentrações de massa que, como tal, podem provocar distúrbios onde quer que se instalem. Gostaria de saber dos acusadores de que forma seria possível, diante de uma invasão dos shoppings, pinçar no meio da turba os “jovens pacíficos” dos arruaceiros violentos que, nos próprios bailes “funks” e nos pagodes da periferia, distribuem pancadaria a torto e a direito e exigem presença policial.


Contenham seus delírios, temerários acusadores! O que desejam agora? Levar o clima de violência e intranquilidade social para dentro dos únicos espaços no país em que os velhos, os moços e as famílias podem andar com relativa segurança, em vez de ficarem expostos ao crime nas proibitivas ruas do Brasil de hoje, conflagradas pela guerra civil urbana que mata com rojão na cabeça ou ainda por balas perdidas e achadas? Só no último fim de semana em Salvador quatro crianças foram assassinadas. Em Guarulhos, um casal foi morto dentro de uma igreja, durante um batizado! No Rio, os traficantes sustentados pelos ricos drogados do Leblon fuzilaram a Rocinha e fecharam o túnel Zuzu Angel com pneus incendiados. É esse clima que desejam ver instalados nos shoppings invadidos?


Ninguém de bom senso pode negar a existência de racismo no Brasil, a deplorável prática iniciada quando os colonizadores começaram a predar não os negros, mas os índios. É prática tão antiga quanto a maldade do homem e uma das suas expressões mais danosas. Já li que Jesus Cristo era mulato de cabelos crespos, tipo comum na Palestina bíblica, mas a iconografia ocidental só o mostra como um belo homem louro de olhos azuis. Não vamos, porém, acirrar tão infame problema praticando o racismo ao contrário. Vamos, sim, praticar o contrarracismo.

A Bahia não é a Roma Negra, nem somos afrodescendentes ou eurodescendentes, expressões importadas que ofendem nossa brasilidade. Somos apenas cidadãos brasileiros, em sua maioria mestiços. Valeria terminar lembrando que a lei Afonso Arinos, de 1951, proíbe manifestações racistas partidas de brancos ou negros em qualquer espaço em que elas se manifestem. Inclusive nos shoppings, onde o que prevalece não é a cor da pele, mas o poder dos bolsos.